Os amantes do vintage, da autogestão de bandas de rock, do “faça-você-mesmo”, estão presos a um modo de produção ultrapassado e arcaico. Por Um Jovem
Você usa Facebook? Assiste a séries no Netflix?
A relação das pessoas com as mercadorias tem se tornado mais íntima com o avanço da tecnologia. Se antes se chegava a aprender algo sobre a composição química do shampoo, é cada vez mais comum que todo tipo de indivíduo esteja em contato direto com uma ampla modalidade de mercadorias ao defecar: o celular é um portal poderoso. Você tem um celular? Entre as mais comuns, como uma máquina de lavar, um carro, também cada vez mais serviços, como usar uma rede social, boa parte dos conteúdos que circulam nestas redes, mercadorias, infinitas formas de gastar dinheiro. De fato, em vez dos saudosos tempos em que tínhamos que tomar o shampoo com as mãos para informar-nos, e toda a experiência terminava aí, hoje o avanço tecnológico nos permite intermediar esta relação com um aparelho que reconhecerá esta mercadoria por sua imagem e lhe permitirá, neste mesmo instante, comprar uma nova unidade, que será debitada em seu cartão de crédito e enviado à sua casa. Você faz compras por internet?
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Quando no meio do século XX alguns intelectuais alemães escreviam sobre a indústria cultural, se referiam à industrialização da cultura: a aplicação de lógicas produtivas no âmbito das artes e a decorrente padronização direcionada ao consumo de massas. As implicações estéticas e culturais, ademais de políticas, desta industrialização já eram sentidas então, e podem ser aprofundadas nas análises das obras que hoje encontramos em qualquer prateleira virtual (você usa Youtube? Spotify?) – mas o que nos interessa neste pequeno devaneio é outra coisa.
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Indústria cultural. Industrialização da cultura. Como um carro, uma nova banda de rock nos anos 60 podia ser desenhada a partir de um conceito, a partir de um orçamento de projeto, um público-alvo, as expectativas de rentabilidade, os custos de matéria-prima e o tempo de vida útil do produto no mercado. Um filme podia ser pensado para um certo segmento do público, uma zona geográfica particular, certa quantidade de salas de cinema; os atores-matéria-prima são pensados para atrair certo público-alvo; incluía-se nos gastos as campanhas de promoção, podia-se espremer os lucros vendendo os direitos para os canais de TV após o fim da rentabilidade nas salas de cinema.
Qualquer pessoa minimamente atenta sabe que, entrado o século XXI, nosso cenário é diferente. Se antes a indústria cultural, em seus termos produtivos, era composta essencialmente por produtores, estúdios (de cinema ou de música), seu pessoal técnico, departamentos jurídicos e de marketing, agentes de venda, promotores, organizadores de eventos variados, jornalistas – dedicados à produção e promoção das mercadorias (bandas [músicas, discos, celebridades, shows], filmes [estreias, atores, festivais]), isso mudou.
A grande questão desta história é a conjugação cada vez mais íntima entre a produção cultural e o marketing: as publicidades se vão utilizando cada vez mais dos recursos das artes, colonizando seus espaços, como a rádio, televisão e cinema; suas formas, nos comerciais, jingles e endorsement (quando uma celebridade promociona uma marca através da associação de sua própria marca enquanto mercadoria cultural). Por sua vez, seguindo a mesma linha que já vinha sendo aplicada nas mercadorias prosaicas, os produtores culturais começam a segmentar os consumidores e buscam entender tendências e linguagens para alcançar todos os públicos-alvo. Essa racionalidade tem uma história muito intrigante que começa nos anos 30, relatada no documentário “O século do self”: com inspiração na psicanálise, inventa-se o grupo focal – reunião de consumidores, “gente comum”, em um grupo dirigido que busca extrair todo tipo de informação a respeito destes consumidores, especialmente os conteúdos inconscientes, os afetos e as fantasias mais comuns que estão presentes na relação destas pessoas com o tipo de mercadoria que se está desenhando.
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O que é a industria cultural hoje? Podemos falar da música atual, do cinema, das artes; mas em termos destes produtos, nada mudou muito. As inovações no campo das máquinas pessoais tornam muito mais acessíveis as pequenas produções, que inclusive chegam a ter qualidade técnica próxima as das produções das grandes empresas. Os filmes, as bandas, não são em essência diferente do que eram há 50 anos, os youtubers são mini-celebridades como qualquer ator B de televisão, os jogos de computadores transmitidos ao vivo têm também suas celebridades e seus virtuosos – o que existe é uma vertiginosa oferta de produções artesanais ou de baixíssimo capital. Se algo caracteriza a dinâmica atual, não é mais o jogo das novidades, das rupturas “jovens” e do interesse pelo impactante, como talvez o foram os Beatles, Élvis, Guerra nas Estrelas e outras imagens capazes de mobilizar massas[1]. Os grandes ídolos dão espaço hoje para uma plêiade de mini-ídolos. Se trata de oferecer a cada segmento um produto que esteja de acordo com sua particularidade, sua identidade. É a “customização” de tudo: as bandas e os filmes para mulheres brancas entre 30-40 anos com renda anual de US$20.000, para negros empreendedores, para favelados, para universitários sensíveis às causas sociais, etc.
Para lhe vender o shampoo, a empresa precisou que você tirasse uma foto ou o colocasse em frente à câmera do seu celular. Para lhe vender uma música, não é suficiente tirar uma selfie e receber a música que combina com seu rosto. É necessário entregar todos os seus dados, os seus gostos, quais músicas costuma ouvir, sua idade, seu lugar de residência, a composição de sua família, o local onde trabalha, os eventos nos quais participa, as outras mercadorias que costuma consumir. Pois frente a uma oferta tão enorme, frente a um mundo tão complicado, somos consumidores muito seletivos: nossa identidade depende do que consumimos, das coisas que “gostamos” e frequentamos na vida real e na virtual. Tomar cerveja ruim, usar um celular velho, roupa feia, carro feio, viajar para lugares desinteressantes, etc, etc, tanto ao vivo como nas imagens compartilhadas. Na sociedade do consumo, o consumo se torna a performance social por excelência, e como tal, é avaliada continuamente pela comunidade. Sendo assim, cada vez mais vigiados por nós mesmos e por aqueles que nos rodeiam, agora não apenas em presença senão virtualmente, somos consumidores seletivos, atentos ao significado profundo de cada mercadoria. E nossa necessidade de preencher vazios, mentais, espirituais, afetivos, nos leva a escutar música como se fosse trilha sonora da vida, a ver infinitos vídeos, filmes e séries como descanso mental, como forma de afogar a angústia de não trabalhar, de não ter o que fazer, de estar sozinho, mesmo quando acompanhados.
Perdendo o domínio sobre a produção e o controle sobre a venda (cf. conflitos práticos e políticos sobre a propriedade intelectual), a indústria cultural hoje se tornou o grupo focal global, de onde as corporações extraem todo tipo de dado sobre os consumidores, desde dados concretos até as fantasias e afetos, expressos nos padrões de consumo de produtos que se transformam assim nos novíssimos testes psicológicos. Associados às redes e aos serviços de comunicação, o novo produto desta indústria é a big data e seu cliente verdadeiro não é mais o consumidor/espectador, que é quase isento de qualquer intercâmbio monetário para realizar este consumo, senão as corporações que por sua vez, sim, buscam os intercâmbios monetários com a massa de proletários, disputando frações do salário global[2].
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Os amantes do vintage, da autogestão de bandas de rock, do “faça-você-mesmo”, estão presos a um modo de produção ultrapassado e arcaico: esta é sua fantasia como consumidores seletivos (ou como produtores de mercadorias para um público-alvo seletivo). Hoje a indústria cultural não são os músicos, os técnicos de luz, camerógrafos, compositores, etc. Hoje a indústria cultural são centenas de milhares de trabalhadores na Índia programando e realizando a manutenção dos sistemas de reprodução de músicas, vídeos e filmes; são jovens que se autoempreendem como força de trabalho, inventando aplicativos a nível local, regional, nacional e global, coletando dados ou trabalhando para a manutenção dos sistemas de coleta. Novas formas de coleta de dados estão sendo desenvolvidas a cada instante pelos departamentos criativos, são a vanguarda deste capital dinâmico. A “leitura” do shampoo é uma destas novas formas. Pokemon Go é outra. Em termos ideológicos, esta indústria está interessada em fazer com que os consumidores entreguem o máximo de dados possível de forma engajada. Para cada nova forma de engajar multidões em uma nova modalidade de coleta de dados, milhares de trabalhadores responsáveis por manter o sistema e organizar os dados, sentados em frente aos computadores em grandes salas, em grandes edifícios ou em suas casas, em locais apertados e sem ventilação, usando computadores próprios ou das empresas, adquirindo doenças pelas más posturas, tempo excessivo em frente do computador, miopia, ansiedade. Para cada nova música da Rihanna, bilhões de reproduções em streaming, de interações virtuais com hashtags, de clicks, de reclamações, de downloads, erros, que alguém deve resolver, mensagens que devem ser respondidas.
A função que o esquematismo kantiano ainda atribuía ao sujeito, a saber, referir de antemão a multiplicidade sensível aos conceitos fundamentais, é tomada ao sujeito pela indústria. Ela executa o esquematismo como primeiro serviço a seus clientes. Na alma deveria funcionar um mecanismo secreto, o qual já prepara os dados imediatos de modo que eles se adaptem ao sistema da razão pura. O segredo foi hoje decifrado. Se também o planejamento do mecanismo por parte daqueles que agrupam os dados é a indústria cultural e ela própria é coagida pela força gravitacional da sociedade irracional – apesar de toda racionalização –, então a maléfica tendência é transformada por sua disseminação pelas agências do negócio em sua própria intencionalidade tênue[3].
Notas
[1] “Pode ser que já não existam rupturas e que a experiência do ‘choque do novo’ tenha ficado definitivamente para trás? Esta angústia tende a derivar em uma oscilação bipolar: a esperança do ‘messianismo brando’, de que existe algo novo por vir, decai na convicção de que não há nada novo que possa jamais ocorrer. O foco muda então da Próxima Coisa Importante para a Última Coisa Importante. E quando foi que ela ocorreu exatamente? Que tão importante era?” (M. Fisher, Realismo Capitalista, Caja Negra Editora, p. 24; pode ser lido na tradução em espanhol)
[2] Existe uma anedota, provavelmente verídica, do homem que recebeu seguidamente publicidade de roupas e acessórios para recém-nascidos por correio físico. Indignado por ser o destinatário de tal publicidade, aproveitou que estava no shopping e foi queixar-se na loja de departamentos responsável pelas malas diretas. O gerente pediu desculpas pelo engano e foi checar no sistema. Ao ver os dados, perguntou ao homem se ele não estava esperando um filho ou neto. De nenhuma maneira, respondeu o homem, indignado. Ao chegar em casa comentou o ocorrido com sua filha. Havia um par de semanas que ela tinha feito o teste. A loja de departamentos soube antes que o futuro avô. No futuro nossos descendentes darão risada de nosso espanto frente a este tipo de episódio. Se é que muitos de nós nos seguimos espantando.
[3] A Indústria Cultural (T. Adorno e M. Horkheimer), p. 5.