Patriarca Kirill, colega de Putin na ex-KGB, encarregado de unificar as igrejas ortodoxas na Nova Rússia de Putin

 Por Pablo Polese

“A História é o produto mais perigoso que a química do cérebro elaborou. As suas propriedades são bem conhecidas. Faz sonhar, embriaga os povos, gera-lhes falsas memórias, exagera-lhes os reflexos, nutre-lhes as velhas mágoas, atormenta-os no repouso, condu-los ao delírio das grandezas ou ao da perseguição e torna as nações amargas, arrogantes, insuportáveis e vaidosas”

Paul Valéry

Introdução

Essa série resultou de um estudo que começou com o tema “Trump” e o interesse em acompanhar com mais rigor os noticiários e análises estrangeiras (em especial The Economist e Foreign Affairs) sobre a conjuntura, tanto em termos de geopolítica quanto em termos de desenvolvimentos econômicos recentes. A eleição do novo presidente estadunidense me deixou – e creio que não só eu – um tanto perplexo, em especial por conta da soma de fatores: Trump nos EUA, Brexit na Inglaterra, possível Le Pen na França, Temer por aqui, Macri na Argentina, extrema-direita nalguns países menores europeus, tensões no pacífico e Putin na Rússia. Como podem ver, as leituras acabaram me levando a focar no último caso, pois conforme eu me informava parecia mais e mais evidente que o “caso russo” precisa de atenção. A princípio eu não planejava escrever nada a respeito, estava tão somente lendo e “coletando material”, mas por fim pareceu necessário divulgar alguns dos achados e conclusões da relativamente rápida pesquisa. Como a intenção textual veio apenas depois, aconteceu num ou noutro momento de eu ter as anotações (em grande volume) e depois, na composição do texto, não ter indicado exatamente de onde tirei uma ou outra ideia e informação. Isso a princípio mostrou-se um problema, mas como fui capaz de identificar as citações colocando-lhes as devidas aspas só restaram “sem dono” algumas ideias mais ou menos comuns em distintas análises. Daí algumas passagens da série onde me refiro a “analistas” que dizem isso ou aquilo. O texto final acabou tendo quatro partes: 1) A escalada conservadora, 2) A economia da Federação Russa, 3) Putin: o homem e a missão, e 4) a política externa russa. Com a série espero conseguir alertar para algumas tendências atuais em desdobramento, as quais temo que caminhem no sentido de um ganho de expressividade de formas de fascismo tão ou mais perigosas que as formas clássicas, o que é bastante preocupante para os anticapitalistas. Não tive condições, aqui, de desenvolver ou mesmo comentar o importante conceito de fascismo, por isso gostaria de indicar o aprofundado estudo de João Bernardo, Labirintos do fascismo (Disponível aqui), onde ele destrincha temas e nos mostra os perigos do fascismo pós-fascista, a começar por suas múltiplas convergências com o que atualmente consideramos “esquerda”. Vamos então ao texto.

A escalada conservadora na Rússia

Em seu terceiro mandato, o presidente russo Vladimir Putin mantém firme uma “escalada” ou “viragem conservadora”. Aos 100 anos da Revolução de 1917, não há quem discorde do fato de que o conservadorismo é uma característica marcante da Rússia dos dias de hoje. Gozando de legitimidade entre a população, o conservadorismo está elevado a ideologia não-oficial do governo Putin, o que traz implicações seríssimas tanto para a política interna quanto externa do país que já foi dos sovietes. A “volta ao conservadorismo” pode ser vista como o miolo de um conjunto de dispositivos políticos usados pelo Kremlin para enfrentar seus problemas internos, em especial a luta contra uma oposição liberal e a necessária legitimidade do regime. Entretanto, o conservadorismo, enquanto pilar político, lança tentáculos mais poderosos, terminando por fornecer armamento ideológico para estratégias mais amplas e de longo prazo: enquanto na política interna contribui para a consolidação do federalismo russo, reforçando vertentes nacionalistas dentro e fora do país, na política externa expõe a Rússia como forte aliada para a direita e extrema-direita europeia, asiática e norte-americana.

Depois da intervenção militar na Ucrânia em 2014, que resultou na anexação (na visão ocidental) ou reintegração (na visão russa) da Crimeia e Sevastopol à Federação russa, as relações entre o Kremlin e o ocidente entraram em uma nova fase de tensionamentos. Em resposta ao que foi considerado uma afronta ao direito internacional e à soberania da Ucrânia, o ocidente aplicou contra a Rússia um conjunto de sanções políticas e econômicas, esperando que as críticas internacionais rendessem uma mudança na postura de Putin e nos rumos do regime russo. A intervenção militar planejada na Ucrânia tinha como pré-requisito a aceitação popular russa e, em especial, uma unidade política por parte das elites russas. Com a intervenção militar e a “retomada” da Crimeia pesou sobre a Rússia um conjunto de pressões internacionais e internas, mas o governo resistiu e, por fim, com a aceitação popular das ações do Estado russo o governo Putin terminou por adquirir enorme legitimidade. Assim, o sucesso da empreitada na Ucrânia e sua aprovação em terras russas mostraram que há na Rússia um conservadorismo altamente consolidado moral e politicamente. Isto não significa que todos os políticos russos e a maioria absoluta da população sejam inegavelmente conservadores, mas sim que o conservadorismo está elevado, naquele país, ao status de “zona de conforto” em uma espécie de “compromisso” ideológico e político nacional, sem o qual as ações na Crimeia teriam tomado rumo distinto. Noutras palavras, a aceitação da “opinião pública” da política externa agressiva levada a cabo por Putin – fato que pode ser observado em diversas reportagens – nos leva a perceber o grau de fraqueza e desarticulação de algo como uma esquerda anticapitalista ou ao menos anti-imperialista russa. Esse fato por si só já poderia preocupar a todos aqueles que no momento estão a comemorar o centenário da revolução soviética, mas veremos ao longo desta série que a esquerda anticapitalista mundial tem motivos que extrapolam em muito a mera decepção com a destruição de algo como um “legado soviético” de lutas e conquistas progressistas a favor dos trabalhadores. Os desenvolvimentos políticos atualmente em marcha na Rússia são seríssimos.

 

Pode-se dizer que o “conservadorismo social” se tornou a ideologia semi-oficial do partido no poder na “Rússia Unida”, pois, muito embora tenha praticamente desaparecido dos documentos oficiais do partido, recebe aprovação da própria boca do Presidente. Em uma entrevista de 2013 (Ver aqui) Vladimir Putin descreveu-se nos seguintes termos:

Eu acho que é perfeitamente possível dizer que eu sou um pragmático com uma inclinação conservadora. […] O conservadorismo certamente não significa estagnação. Conservadorismo significa defesa de valores tradicionais, mas com um elemento adicional necessário com vista ao desenvolvimento. Parece-me que esta é uma coisa absolutamente essencial. E, como regra geral, a situação no mundo, em quase todos os países, é tal que os conservadores detêm os recursos, os fundos e o potencial de crescimento econômico. Então os revolucionários chegam e dividem tudo isso de uma maneira ou de outra. “Revolucionários” é algo relativo, claro. Podem simplesmente ser representantes de movimentos de esquerda, partidos de esquerda ou podem ser radicais genuínos. Em seguida, dividem as coisas e todos estão satisfeitos. O período de desilusão começa quando parece que tudo está usado ou estragado e se precisa começar a ganhar as coisas novamente. As pessoas o percebem e novamente chamam os conservadores. Mais uma vez eles colocam seu ombro na roda, começam a trabalhar, começam a construir as coisas de novo e então dizem a eles “Ok, isso é o suficiente, você ajudou muito. Agora é hora de dividir”. Este é o círculo constante dentro da política.

Repare-se que Putin elenca o conservadorismo como plataforma moral e diretriz para o curso da política, defendendo o desenvolvimento econômico com ênfase na “tradição russa” e em valores conservadores. Além disso, ele define o conservadorismo em contraposição ao radicalismo, em especial o de esquerda, legitimando sua posição com a boa e velha máxima de que antes de gastar é preciso trabalhar e ganhar. Trata-se de uma weltanschauung, uma cosmovisão ou visão de mundo. Noutro contexto, o líder russo disse o seguinte:

No mundo, há cada vez mais pessoas defendendo a nossa posição sobre a defesa dos valores tradicionais. Naturalmente que esta é uma posição conservadora. Mas, nas palavras do filósofo Berdyaev, o sentido do conservadorismo não é o de impedir o movimento para a frente e para cima, mas de impedir o movimento para trás e para baixo, para a escuridão caótica, para o retorno ao estado primitivo.

O enquadramento das questões relativas ao desenvolvimento em termos místicos: “a escuridão”, o “caótico”, o “movimento para baixo”, o “retorno” a “estágios” primitivos, animalescos, etc., é a forma de tratamento típica da extrema direita, em diversos contextos históricos. O sujeito citado por Putin, Nikolai Berdyaev (1874 – 1948) (Ver aqui), foi um religioso e filósofo russo que no início do século XX era adepto do “cristianismo ortodoxo”, sendo autor de uma obra que remete a termos como “realismo místico”, defesa da liberdade pessoal, desenvolvimento espiritual, ética cristã, e caminhos “informados pela razão e guiados pela fé”. Tendo vivido a revolução de 1917, o filósofo se posicionou em algo que considerava nem a favor do bolchevismo, nem do czarismo, defendendo o “cristianismo existencialista”. Atualmente, Berdyaev é reconhecido por muitos do país como “o líder espiritual da nova era Putin”.

Patriarca Kirill, colega de Putin na ex-KGB, encarregado de unificar as igrejas ortodoxas na Nova Rússia de Putin

A Rússia tem como religião oficial a Igreja Ortodoxa Russa, também chamada de Patriarcado de Moscou (Ver aqui). Em 1993 a Igreja Ortodoxa Russa canonizou São Lourenço de Chernigov, adepto de São Teodósio (para quem “nunca devemos louvar a religião de qualquer outra pessoa, e em nenhum caso devemos nos unir com os católicos ou sair da Fé Ortodoxa”), e autor de profecias muito lembradas durante a Guerra da Rússia contra a Ucrânia, em virtude de defenderem que a palavra que “designa nossa terra nativa e nossas pessoas, é Rus’ e russo” e que “é absolutamente necessário saber, lembre-se, e não se esqueça de que aconteceu o Batismo da Rus'(Rússia), e não o batismo da Ucrânia. Kiev é uma segunda Jerusalém e a mãe das cidades russas. A Rus’ de Kiev foi em conjunto com grande Rússia. Kiev sem a grande Rússia e separada da Rússia é completamente impensável”(Ver aqui). A relação entre Igreja e Forças Armadas Russas é tão próxima que é comum a presença de missionários nos fronts (levando a “necessária paz espiritual”), batizando soldados e mesmo as armas a serem por eles usadas nos combates. Não é de se surpreender, já que o Exército russo introduziu uma inovadora Capela Ortodoxa Aero-móvel com padres paraquedistas (Ver aqui) e nos EUA já existe até mesmo uma “versão militar” do Novo Testamento para Cristãos Ortodoxos (Ver aqui). Acerca da fé dos russos, recentemente foi divulgado um estudo intitulado Russians Return to Religion, but Not to Church (Ver aqui) onde se compara dados dos anos de 1991, 1998 e 2008 coletados pela International Social Survey Programme. O relatório mostra que entre 1991 e 2008 a porcentagem de adultos russos que se identificam como cristãos ortodoxos aumentou de 31% para 72%. No mesmo período, a população russa que não se identifica com nenhuma religião caiu de 61% para 18%. Ainda de acordo com o relatório há um pequeno aumento no número de pessoas que se identificam com outras religiões, como o Islamismo, o Catolicismo e o Protestantismo.

Os ideólogos do “conservadorismo russo moderno” afirmam que a fórmula “Autocracia, Ortodoxia e Nacionalidade” expressa a essência da tradição russa, e que nesta fórmula a autocracia “não é apenas o poder do monarca, mas também o governo independente, a independência do país e do seu governante”.

Buscaremos demonstrar a seguir que o conservadorismo, embora não-oficialmente, pode ser alçado à posição de ideologia nacional no atual estágio de desenvolvimento social, econômico e político russo. Para muitos analistas, o presidente Putin é um “conservador liberal” que defende um governo forte, centralizado e baseado na lei. O conservadorismo seria, assim, a cosmovisão norteadora das ações de Putin e do Estado e sociedade russos. Marlène Laruelle, por outro lado, defende que o movimento conservador advogado pela elite russa e por Putin, em especial, “não tem a ambição de reformular a sociedade russa. É uma ideologia do menor custo, visando a maioria conservadora e esperando criar um novo espaço de consenso despolitizado, que tem a vantagem adicional de oferecer ao país uma nova corda em seu arco em termos de marca internacional”.

De fato, Putin não alterou as principais ferramentas históricas da elite política do Kremlin: o pragmatismo na política doméstica, a realpolitik nas relações internacionais e uma “crença niilista que reforça o cinismo, o clientelismo e o consumismo”. Além disto, com a marcante mudança na sociedade russa de início do século XXI e o surgimento de uma minoria liberal que ambiciona a plena inclusão na política, algo de igual peso ideológico precisava ser colocado no tabuleiro, e o conservadorismo dirigido às massas teria desempenhado tal papel. A questão das intenções conscientes da elite russa quando adota o conservadorismo enquanto ideologia de Estado nos é, entretanto, algo secundário. O que nos preocupa e precisamos analisar com cuidado é o fato de que o que antes de Putin eram manifestações patrióticas mais ou menos inofensivas tem caminhado rumo à conversão em apelos nacionalistas, o que traz consigo a ameaça da própria reestruturação ou dissolução de um país multinacional e multi-confessional. Alguns pensadores defendem, inclusive, que, perdendo o controle da carroça, os elaboradores da política russa teriam identificado o perigo e isso teria levado o governo a combater as tendências mais explosivas de conservadorismo – por que não dizer, proto-fascista – por meio do apelo a um de seus irmãos menos agressivos, um “conservadorismo moral” que, naturalmente, tem a intenção de fortalecer o status quo.

A questão complexa é que enquanto o “conservadorismo moral” é quase apenas uma “metanarrativa” que respeita hierarquias sociais, não questiona a legitimidade do Kremlin, estigmatiza minorias sexuais menos ameaçadoras do que minorias étnicas e carece de potencial desestabilizador, o conservadorismo “em geral” é uma prática social muito concreta, que envolve violência e políticas públicas e tende a fortalecer as ideologias nacionalistas. Marlène Laruelle defende que o governo russo usa o conservadorismo como ferramenta de governo que se mostrou capaz de – no curto prazo – marcar pontos tanto em face das políticas internas repressivas quanto com respeito à política externa ofensiva e anti-ocidental. A difundida ideologia conservadora permite que o governo critique as elites americanas e europeias por não refletirem a opinião de sua própria maioria conservadora. Nesse sentido, o discurso da política externa russa é semelhante ao que a direita europeia e os republicanos conservadores e partidários do Tea Party nos Estados Unidos defendem.

O fato é que tem aumentado a “russofilia” nos círculos de direita europeus, e embora seja verdade que o conservadorismo é difundido pela mídia estatal e órgãos do governo russo, a verdade é que, em parte, o governo está atendendo a um apelo ideológico que vem das massas. O jornalista russo Andrei Kolesnikov conta que “o establishment político russo tem estado ansioso para suprir a ideologia exigida pelas massas. Em março de 2015, 49% dos russos deram crédito a Putin para restaurar o país ao seu status de grande potência. Nos últimos quinze anos, o regime tem “se beneficiado de um nível relativamente estável e elevado de demandas por ideologias conservadoras”. Depois de quase uma década de “transição democrática” e de ruptura da ordem socioeconômica do Socialismo soviético (uma forma de Capitalismo de Estado) para o Capitalismo russo, “a demanda popular por algo abstratamente conservador estava pronta para vir à tona”.

Andrei Kolesnikov também coloca a questão acerca de como esta mudança é séria a longo prazo, examinando as chances de o “projeto conservador” ser substituído por um liberal, o que, em termos concretos, significa perguntar quando haverá finalmente alguma modernização russa: “a modernização começa com a eliminação do pensamento mitológico e sacro; requer uma reavaliação sóbria e um retorno à verdade e uma visão de mundo realista. Depois disto, uma visão do futuro e um programa estratégico com um objetivo final e um roteiro podem surgir”.

Nem movimento natural decorrente do fim da URSS, nem movimento não-natural imposto pelos órgãos midiáticos, o “giro conservador” na Rússia está a acontecer no quadro de uma via de mão dupla, onde as autoridades e a sociedade convergiram para o conservadorismo enquanto expressão final de um compromisso ou “contrato social” de escala nacional. Grosso modo, as autoridades creditam à sociedade o direito ao conservadorismo moral enquanto a sociedade considera que é dever das autoridades dirigir um curso conservador nas políticas domésticas e externas. É essa cosmovisão, embrenhada nas massas, que permite a Putin levar a cabo uma política externa que em tudo pode ser chamada de imperialista.

Observando-se o modo de governar de Putin, podemos observar que o pragmatismo do presidente russo depende de uma firme base moral conservadora. Um bom indicativo do modo como esse “conservadorismo moral” se concretiza enquanto ideologia pode ser notado nesta fala de 2014, onde Putin declara que “a Criméia, o antigo Korsun ou Chersonesus e Sevastopol têm inestimável civilização e mesmo sacra importância para a Rússia, tal como o Monte do Templo em Jerusalém o tem para os seguidores do Islã e do Judaísmo. E é assim que sempre o consideraremos”. (Discurso presidencial à Assembléia Federal, 4 de dezembro de 2014). Ora, elementos místicos justificando uma intervenção militar que resulta na anexação de um território. Não se trata de disparate ou elucubrações do comandante russo, e sim de um modo de pensar presente na população que vive em uma sociedade onde o Cristianismo Ortodoxo estabeleceu raízes profundas (para se ter uma ideia, os bolcheviques, em momentos de crise econômica e social, se viram obrigados a tolerar a existência de Igrejas no país dos sovietes, e em 1943 – portanto durante a 2ªGuerra – Stálin se viu forçado a restabelecer a legalidade da Igreja Ortodoxa/Patriarcado Russo). Não foi por acaso, portanto, que o nível de aprovação de Putin foi, nos últimos anos, duas ou três vezes superior às dos principais políticos ocidentais. Putin é um estadista habilidoso, mas não se trata de manipulação das massas, e sim de convergência de interesses e afinidades políticas e ideológicas.

O WCIOM (Centro de Pesquisa da Opinião Pública da Rússia) publicou em 2014 um relatório chamado “A nebulosa natureza do conservadorismo russo”, onde observa que, em resposta à pergunta “O que vem à sua cabeça quando você ouve a palavra ‘conservador’ ou ‘pessoa conservadora’?”, 38% dos entrevistados citaram características positivas, 32% negativas e 31% ficaram indecisos. Questionados sobre se descrever alguém como conservador era algo positivo ou negativo, 43% responderam que era positivo e 37% disseram que era negativo, com 21% de indecisos. Não podemos notar, portanto, uma clara adoção da ideologia conservadora, e sim uma clara cisão ideológica da sociedade russa. Há que se notar, entretanto, que o Centro de Pesquisa notou uma dinâmica interessante na atitude para com o conservadorismo entre novembro de 2003 e fevereiro de 2014 (quando ocorre a intervenção militar russa na Ucrânia): o número de pessoas que acreditavam que “o conservadorismo é o que permite a preservação dos costumes e tradições de um país, a estrutura social existente e o progresso suave e ininterrupto” passou de 44% para 56%. Ao mesmo tempo, o número de pessoas que acreditam que o conservadorismo “não permite que a sociedade avance” também cresceu, de 27% para 31%.

 

A tendência à aguda polarização também é reveladora com respeito às respostas à pergunta “Você simpatiza pessoalmente com as ideias de conservadorismo ou não?”. Em 2003, 37% responderam “definitivamente Sim” ou “provavelmente Sim”, enquanto 33% responderam “provavelmente não” ou “definitivamente não” e 30% estavam indecisos. Já em 2014, 48% responderam “sim”, 35% responderam não, e apenas 17% permaneceram indecisos. Os dados mostram que, apesar de um evidente aumento de simpatia por ideias conservadoras, a atitude em relação à “marca” ideológica “conservadora” permanece extremamente ambivalente. Isto, na análise de Leonid Polyakov, significa que “para que o conservadorismo se torne a ideologia nacional que realmente determina as prioridades da política interna e a direção da política externa, o Kremlin terá de tornar explícito o conteúdo latente que está contido nessa meta-narrativa”.

Uma das implicações da “viragem conservadora” reside no fato de que as autoridades se dirigem aos cidadãos russos como se tivessem um objetivo fundamentalmente novo ligado à “soberania” constitucional. Assim, estariam a oferecer-lhes “um formato estável para o engajamento político, não apenas como apoiantes votando pelo status quo uma vez a cada poucos anos, mas como verdadeiros senhores de seu próprio destino político e dos líderes políticos associados”. Desta forma, o povo russo acredita que tem, pela primeira vez nos últimos cem anos da história russa, a oportunidade de deixar de ser as “massas passivas que estão constantemente sendo conduzidas para um futuro brilhante”, seja por comunistas “iluminados” em 1917 ou por liberais “iluminados” em 1991. Não por acaso, em um discurso que tinha como tema “A maioria moral contra a minoria ativa”, o cientista político russo Serguêi Markov, que foi membro de 2009 a 2012 da Comissão Presidencial da Federação Russa para combater as tentativas de falsificar a história em detrimento dos interesses da Rússia, observou que “o conservadorismo russo difere do clássico britânico pelo fato de o britânico procurar o seu apoio na aristocracia, enquanto o russo o procura no povo”. Por outro lado, a nosso ver o modus operandi do conservadorismo das elites e dos trabalhadores russos politicamente assume vestes de “poder popular” que enfatiza não o comum, mas o individual. Os pontos de contato entre este conservadorismo e aquele dos “coxinhas” brasileiros são notáveis, entretanto este não é o local para desenvolver essa ideia.

 

Em síntese, portanto, de acordo com a excelente análise de Leonid Polyakov, “o conservadorismo, como identidade nacional expressa através de uma ideologia, torna-se um meio de apresentar a própria nação como ‘soberana’, como definida por Jean-Jacques Rousseau em seu tratado O Contrato Social”, e nesta chave analítica, “não importa quão estranho ou inaceitável pareça a escolha russa de seu modo de vida, padrões morais ou sistema político se julgado pelos cânones das democracias liberais ocidentais ou pelos gostos da minoria liberal russa, este é seu direito soberano” (grifos meus).

O novo modelo de integração do pluralismo cultural da sociedade russa no quadro do federalismo do Estado Russo é outro aspecto da política interna de Putin que torna mais explícito o perigoso potencial estratégico da “viragem conservadora”. A mistura étnica e religiosa da Rússia, apenas comparável à da Índia, é simultaneamente um poderoso recurso de desenvolvimento e fonte de conflitos. Não por acaso ocorreu a criação, em março de 2015, da Agência Federal para os Assuntos da Nacionalidade, visando a prevenção e manejo de conflitos étnicos ou religiosos nas regiões da Rússia. Aqui, as ideias de Vladimir Putin sobre a Rússia como uma “civilização única”, apresentada em janeiro de 2012 durante a campanha eleitoral, mostram suas intenções. Tratando do tema, Putin afirmou que “a nação russa se define como uma civilização multiétnica mantida unida por um núcleo cultural russo”, buscando forjar uma “terceira via” entre o “projeto multicultural ocidental” que, na opinião de Putin, falhou, e o projeto alternativo de “Estado-nação” construído “unicamente na identidade étnica”. A princípio, portanto, a estratégia do imperialismo russo não tem um viés racista tout court.

O federalismo russo foi herdado dos bolcheviques e pode, numa interpretação conservadora, receber um novo ímpeto. Na URSS formulou-se o princípio segundo o qual todas as repúblicas (repúblicas federais e repúblicas autônomas dentro da RSFSR) eram “nacionais em forma e socialistas em conteúdo”. Os ideólogos do Partido acreditavam que tudo o que era nacional no futuro daria lugar ao surgimento de uma “nova comunidade histórica”, um povo soviético mundial e sem nacionalidade. Foi justamente a ascensão dos movimentos nacionalistas induzidos pela Perestroika um dos fatores que destruíram a URSS por dentro, portanto, em teoria, Putin não deve ver com bons olhos os movimentos que ajudaram no colapso soviético (que ele chama de “maior tragédia da história mundial”). Mas lembremos que o homem se qualifica – e de fato o é – como um sujeito pragmático (aprofundaremos essa questão na parte 3 da série, dedicada à missão de Putin). O fato é que, sob a lente do conservadorismo russo atual, pode-se “girar a velha fórmula da URSS de cabeça para baixo e definir a civilização russa como uma federação de entidades que são nacionais em conteúdo e conservadoras na forma”. Um desenvolvimento que certamente não traria nada de bom para as forças sociais anticapitalistas de dentro e fora da Ásia.

Ativistas dos direitos civis LGBT agredidos e presos em manifestação em julho de 2013 na Rússia

Outro aspecto da “viragem conservadora” da Rússia aparece na mudança clara nas prioridades de política externa do Ocidente para o Leste e para a região da Ásia-Pacífico. O “pivô para a Ásia” promete mudanças profundas no discurso conservador russo (Ver aqui, aqui, aqui, aqui e aqui) Leonid Polyakov explica que a fórmula conservadora de Putin (desenvolvimento conforme às tradições nacionais) é uma combinação quase perfeita tanto para as modernizações asiáticas que já ocorreram (no Japão, Coreia do Sul, Taiwan e Cingapura) quanto para as esperanças e intenções dos próximos projetos de modernização no Oriente e Sudeste Asiático. Mais importante ainda, esta fórmula refletiria perfeitamente a experiência da República Popular da China, principal parceiro estratégico da Rússia de hoje. Não por acaso um dos principais intelectuais chineses, o professor Feng Shaolei, perguntou ao presidente Putin o que particulariza o conceito russo de conservadorismo e também “se este será um conceito dominante para a modernização da Rússia ou algo temporário, por um período específico”.

 

Pois bem. Apresentados os fatos e argumentos, resta alguma dúvida sobre a “escalada conservadora” vivida pela Rússia? Se sim, um fato recente ocorrido no país talvez afaste de nossas cabeças os pontos de interrogação: depois de promulgar em 2013 a “lei-anti-gay” (Ver aqui, aqui e aqui), onde proíbe manifestações pró-LGBT e a propaganda a favor de “relações sexuais não-tradicionais” para menores, fazendo crescer o número de ataques contra a comunidade LGBT, o país está prestes a descriminalizar a agressão contra a mulher. Os legisladores argumentam que “isso se encaixa com os valores tradicionais”. O Parlamento russo (Duma) votou em janeiro a descriminalização da violência doméstica contra membros da família, a menos que se trate de uma ofensa/agressão reincidente ou cause sérios danos médicos. Algumas reportagens informam que a mudança é parte de um “retorno ao tradicionalismo patrocinado pelo Estado”. Existem russos que defendem a noção liberal de direitos individuais, mas a tendência, estamos vendo, é outra. Os ativistas alertam que a descriminalização vai legitimar o abuso: “a mensagem geral para os cidadãos russos é que a violência doméstica não é um crime”, diz Andrei Sinelnikov do Centro Anna, uma instituição de caridade preventiva contra a violência.

O debate em torna da descriminalização começou em 2016, quando o governo despenalizou a “bofetada”, a forma menos violenta de agressão familiar segundo as leis russas. A Rússia é um dos três países da Europa e da Ásia Central que não têm leis visando especificamente a violência doméstica, que é tratada como qualquer outra forma de agressão, o que desconsidera o fato de que os cônjuges e as crianças são mais vulneráveis do que outras vítimas. Quando decriminalizou a “bofetada”, em junho de 2016, a Duma decidiu abrir uma exceção para os casos de abuso doméstico, tornando-os sujeitos à mesma sentença máxima de dois anos que é atribuída em casos de ofensas motivadas por motivos raciais. Isso agradou os grupos da sociedade civil russa que estavam empenhando-se por regras mais duras orientadas à defesa das mulheres e crianças, mas deixou a Igreja Ortodoxa Russa furiosa. As Escrituras e a tradição russa, diz a Igreja, consideram “o uso razoável e amoroso do castigo físico como parte essencial dos direitos dados aos pais pelo próprio Deus”. Os grupos conservadores que defendem a descriminalização da bofetada/palmada dizem que querem evitar que “pais sejam encarcerados”, e argumentam que é errado que pais enfrentem uma punição mais dura por bater em um filho do que a que um vizinho receberia se o fizesse.

Sob a pressão de tais grupos, os deputados apresentaram um projeto de lei que torna a primeira instância de agressão leve, que não faça danos duradouros, uma violação administrativa com multa de 30.000 rublos (US$502), serviço comunitário ou uma detenção de 15 dias. O projeto também retorna o crime para o campo do “processo privado”, onde a vítima é responsável por coletar provas e construir o caso. Se as ofensas e agressões se repetem aí, sim, se tornam uma infração criminal, mas apenas dentro de um ano a partir da primeira incidência, dando aos abusadores e agressores um passe livre para bater nos parentes uma vez por ano. Vyacheslav Volodin, o porta-voz da Duma, diz que o projeto ajudaria a construir “famílias fortes”. A segunda leitura do projeto em 25 de janeiro de 2017 ganhou 385 de 387 votos. Após a terceira leitura ele será assinado por Putin.

 

Tal como no Brasil, a violência doméstica tem profundas raízes culturais no país de Putin. “A violência não é apenas uma norma, é o nosso estilo de vida”, diz Alena Popova, defensora das leis contra a violência doméstica. Tal como no Brasil ou em qualquer outro lugar, é sempre difícil medir a escala do problema, mas de acordo com o Ministério do Interior da Rússia, 40% dos crimes violentos acontecem dentro da família, um dado impressionante se observarmos que mais de 70% das mulheres que chamam a hotline do Centro Anna nunca relatam seus casos à polícia. A prática do processo privado, que obriga as vítimas a navegar nos obstáculos burocráticos, evidentemente desestimula as denúncias.

Por fim, um fato que é por si só significativo: parte da oposição às leis de violência doméstica decorre de um receio em permitir que a polícia e o judiciário corruptos da Rússia tenham mais poder sobre a vida privada familiar. Portanto, em algum sentido, o legado bolchevique de um Estado onipresente pesa hoje a favor do ganho de expressividade de tendências políticas conservadoras e socialmente atrasadas na Rússia.

O ganho de expressividade do conservadorismo na Rússia é um problema não só para os trabalhadores russos, mas de todo o planeta, a começar pelo fato de que lança a sombra do retrocesso com respeito a conquistas históricas da classe trabalhadora em termos de direitos e garantias.

Os fundamentos do crescente conservadorismo e do ganho de expressividade de políticas e cosmovisões retrógradas na Rússia devem ser procurados na dinâmica de desenvolvimento econômico do país, assunto do próximo tópico.

Continue lendo a série completa aqui.

Fontes

A análise desta primeira parte da série se baseou em especial no excelente trabalho de Leonid Polyakov intitulado “Le «conservatisme» en Russie: instrument politique ou choix historique?”, publicado em dezembro de 2015 em Russie Nei Visions nº 90 (disponível aqui), além de outros artigos e reportagens publicados em periódicos de circulação internacional, com destaque para Foreign Affairs, The Economist e AlJazeera.

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