Por João Bernardo
Originalmente publicado como terceira seção do capítulo 2 da parte 3 do livro Labirintos do Fascismo: nas encruzilhadas da ordem e da revolta (Lisboa: Edição do Autor, 2015, pp. 615-638), de João Bernardo, que autorizou sua reprodução na série especial de artigos publicados pelo Passa Palavra em comemoração aos cem anos da Revolução Russa. Foram mantidas a grafia e a sintaxe originais, mas as notas foram renumeradas para se adequar ao formato de um artigo dividido em partes, que serão publicadas semanalmente. Leia as demais partes da série clicando aqui.
A política prosseguida na Ucrânia constituiu o primeiro caso notável de subordinação da revolução internacional às prioridades nacionais russas, e ali se revelaram também pela primeira vez de maneira flagrante as consequências desta orientação. A Rada, parlamento nacionalista da Ucrânia independente, estabelecida em Kiev, dera o seu apoio às tropas brancas, o que levou os soviéticos a enviar-lhe um ultimato em Dezembro de 1917[1]. Alguns dias depois os bolchevistas ucranianos formaram em Kharkov um governo rival, e os nacionalistas perderam rapidamente as simpatias populares, em benefício do governo de Kharkov[2]. O próprio primeiro-ministro do governo da Rada, Vinnitchenko, reconheceu mais tarde que naquela época «a grande maioria da população ucraniana estava contra nós» e que, quando os bolchevistas expulsaram o governo nacionalista em Fevereiro de 1918, se evidenciou «a antipatia extraordinariamente forte das massas populares para com a Rada central»[3]. Com o apoio das tropas vermelhas, o governo bolchevista ucraniano mudou-se para Kiev, mas em Março o exército alemão invadiu o país, pondo os bolchevistas em fuga da capital e instalando como chefe de Estado um aristocrata cossaco que se preocupou bastante mais em agradar aos seus protectores germânicos e em defender os interesses dos latifundiários e dos camponeses ricos do que em materializar os sonhos dos nacionalistas. Este regime soçobrou com a derrota alemã na guerra mundial e, depois de um breve interlúdio nacionalista, a autoridade dos bolchevistas afirmou-se de novo. Durante o final de 1918 e o começo de 1919 os soldados soviéticos entraram na Ucrânia e em Fevereiro de 1919 estavam em Kiev, onde a população os acolheu entusiasticamente[4]. Khristian Rakovsky foi então nomeado para chefiar o governo soviético ucraniano e poder-se-ia julgar que, perante uma tal adesão popular e depois do desastre do regime cossaco e da perda de prestígio dos nacionalistas, os comunistas beneficiassem de uma posição sólida. Mas sucedeu exactamente o contrário, e em Julho o Exército Vermelho revelou-se incapaz de impedir o avanço das tropas brancas, tendo de abandonar Kiev em Setembro. O que se passara para comprometer a base de apoio dos bolchevistas ucranianos?
A Ucrânia havia sido a principal produtora de cereais do império russo[5] e, com a fome ameaçando Petrogrado e Moscovo, os dirigentes bolchevistas, apesar de terem reconhecido a independência da Ucrânia, cobiçavam-lhe o trigo. «Se querem comida», escreveu Radek na Pravda em Janeiro de 1918, «gritem “Abaixo a Rada!”»[6]. Foram estes os precedentes da estratégia de «explorar ao máximo a Ucrânia», decidida por Lenin em 1919 e aplicada por Rakovsky, com o objectivo de ajudar a resolver os trágicos problemas de abastecimento com que a Rússia se defrontava. «Fomos para a Ucrânia numa época em que a Rússia soviética atravessava uma crise de produção extremamente grave», reconheceu Rakovsky mais tarde. «O nosso procedimento na Ucrânia resumiu-se a uma exploração máxima, que devia contribuir para atenuar a crise». Indignada pela pilhagem sistemática a que a submetiam, a esmagadora maioria da população ucraniana virou-se muito naturalmente contra os comunistas, que tiveram de retirar perante os soldados brancos. Ora, este recuo constituiu um factor decisivo para a derrota dos trabalhadores na Europa central, já que impediu o Exército Vermelho de se ligar ao movimento comunista na Roménia e na Hungria[7]. Com uma política que não tivesse por objectivo a exploração da Ucrânia seria talvez possível uma revolução ucraniana vitoriosa em 1919 e, se tal tivesse sucedido, parece indubitável que ficariam em situação difícil os contrarrevolucionários romenos e húngaros e, portanto, talvez tivesse sido outro também o destino da república dos conselhos bávara. Mas a história não se faz no condicional.
A orientação seguida por Lenin e Rakovsky na Ucrânia não constituiu um caso único. A 4 de Junho de 1920, Trotsky, comissário do povo para a Guerra, enviou uma nota secreta ao comissário para os Negócios Estrangeiros, Tchitcherin, com cópias para Lenin, Kamenev, Krestinsky e Bukharin, dizendo o seguinte: «Todas as informações sobre a situação em Khiva, na Pérsia, no Bukhara e no Afeganistão confirmam o facto de que uma revolução soviética nestes países causar-nos-ia no momento presente as maiores dificuldades […] Até a situação a Ocidente estar estabilizada e até melhorarem as nossas indústrias e transportes, uma expansão soviética para Leste poder-se-á revelar não menos perigosa do que uma guerra a Ocidente […] uma revolução soviética potencial a Leste é-nos hoje vantajosa principalmente como um elemento importante nas relações diplomáticas com a Inglaterra. Daqui se conclui que: 1) a Leste devemos dedicar-nos ao trabalho político e educativo […] e ao mesmo tempo aconselhar toda a prudência possível quanto a acções calculadas para exigir o nosso apoio militar, ou capazes de exigi-lo; 2) temos de continuar por todas as formas a insistir através de todos os canais possíveis na nossa disposição de chegar a um entendimento com a Inglaterra quanto ao Leste»[8]. Existem outros indícios da utilização do movimento revolucionário como um trunfo no jogo entre potências. No seu diário Berkman anotou, em 24 de Fevereiro de 1920, uma conversa com Karakhan em que o então vice-comissário do povo para os Negócios Estrangeiros lhe disse que na Índia «o movimento era revolucionário, se bem que, em sua opinião, tivesse um carácter nacionalista, e podia ser explorado para colocar a Inglaterra em xeque»[9]. Vejamos como se materializaram tão sábias diplomacias.
Enquanto a Pérsia, tal como havia sucedido no tempo dos czares, serviu de arena para as rivalidades entre a Grã-Bretanha e a Rússia, o governo de Moscovo sustentou o embrionário movimento comunista local e na Primavera de 1920 prestou auxílio militar ao nacionalista revolucionário Kuchik Khan e ajudou-o a criar uma república soviética independente na província de Gilan, no norte do país, onde ele gozava de grande popularidade[10]. No Outono, porém, as relações de Moscovo com Teerão melhoraram consideravelmente e, embora continuassem a apoiar a república de Gilan, os dirigentes bolchevistas decidiram limitar as actividades do pequeno Partido Comunista Persa e deram-lhe instruções para declarar que a revolução naquele país só se tornaria possível depois de ter sido completada a fase burguesa das transformações socioeconómicas[11]. Era exactamente esta a tese que os menchevistas haviam defendido na Rússia e contra a qual Lenin devotara toda a sua vida política, mas promover o menchevismo alheio passara a satisfazer os interesses nacionais dos bolchevistas russos. Em Fevereiro de 1921 um golpe de Estado estabeleceu em Teerão uma ditadura nacionalista e modernizadora, e embora o novo regime fosse ferozmente anticomunista e perseguisse sistematicamente a extrema-esquerda, o governo soviético assinou com ele um tratado que reconhecia a Moscovo o direito de intervir militarmente na Pérsia se outra potência — ou seja, a Grã-Bretanha — invadisse o país com intenções hostis aos soviéticos e se o governo persa não fosse por si só capaz de evitá-lo. Entretanto, para provarem à ditadura de Teerão as suas boas intenções, os dirigentes soviéticos suspenderam o apoio prestado aos comunistas persas e aos nacionalistas revolucionários da república de Gilan[12]. Aliás, como as tropas britânicas abandonaram a Pérsia em Maio de 1921, os soviéticos, segundo o tratado que tinham acabado de assinar, ficavam obrigados a retirar as forças militares que protegiam Gilan. No Verão desse ano Kuchik tentou marchar sobre Teerão, contando ainda com o auxílio de certos dirigentes do Partido Comunista Russo, mas a expedição foi um fiasco e em Setembro o governo soviético cancelou-lhe o aval político e chamou os seus soldados. Muitos anos depois Victor Serge, que fora amigo de Blumkin, revolucionário com uma curta vida recheada de aventuras e peripécias extraordinárias, recordou o que ele lhe contara acerca destes acontecimentos: «A minha história na Pérsia? Éramos algumas centenas de russos andrajosos […] Um dia recebemos um telegrama do comité central: Parem tudo, já não há revolução no Irão […] Se não fosse isso, tínhamos entrado em Teerão». Em Outubro de 1921 o regime de Teerão, com a aprovação de Moscovo, ocupou militarmente Gilan e enforcou Kuchik[13]. Lá ficou ele, balançando na ponta da corda, a expiar as vicissitudes da nova diplomacia russa, como uma quantidade infindável de sacrificados assinalaria depois os numerosos zigues e os outros tantos zagues.
Uma duplicidade do mesmo tipo inspirou a política soviética relativamente à Turquia. Depois de ter aproveitado habilmente um movimento de contestação camponês que em 1919 e 1920 havia levado à formação de um exército próprio e à criação de inúmeros sovietes locais, Mustafa Kemal conseguiu no final de 1920 e no começo de 1921 desarticular esse movimento, liquidar ou dispersar os chefes principais e assimilar o que restava das suas bases sociais de apoio. Logo em seguida desencadeou a repressão contra as organizações comunistas que, embora pequenas, eram vigorosas, e em Janeiro de 1921 enviou agentes ao território soviético para assassinarem a figura mais importante do comunismo turco, Mustafa Suphi, juntamente com dezasseis dos seus camaradas[14]. Nada disto esfriou a crescente simpatia que os bolchevistas nutriam por Kemal e pelo seu regime. Como comentou um historiador, «ficava demonstrado pela primeira vez, e decerto não pela última, que os governos podiam tratar drasticamente os partidos comunistas dos seus próprios países sem que isto os fizesse perder as boas graças do governo soviético, se elas se devessem a outros motivos»[15]. Com efeito, o preâmbulo do tratado soviético-turco, assinado em Março de 1921, sublinhava a solidariedade dos dois países «na luta contra o imperialismo» e um dos artigos proclamava a existência de uma «afinidade mútua entre o movimento de libertação nacional dos povos do Oriente e a luta dos trabalhadores da Rússia por uma nova ordem social»[16].
Mustafa Kemal continuava entretanto a soprar o quente e o frio. Alguns meses depois da assinatura do tratado o governo turco informou Moscovo de que decidira libertar todos os comunistas presos e entregar à justiça os responsáveis pelo assassinato de Suphi[17]. Os soviéticos apoiaram militarmente a Turquia numa fase já adiantada da guerra com a Grécia em 1921-1922, e em consequência disto, e também devido à ajuda prestada pela diplomacia soviética por ocasião da conferência de Génova, o Partido Comunista Turco pôde gozar de oito meses de actividade legal, depois de mais de um ano de intensa perseguição. Mas em Outubro de 1922, derrotados os gregos, quando lhe interessava aproximar-se da Grã-Bretanha e deixara de necessitar do auxílio soviético, Kemal recomeçou a caça aos comunistas[18]. Em Novembro desse ano, numa das sessões do 4° Congresso do Komintern, o chefe da delegação turca lastimou que o seu partido continuasse a ser vítima da repressão, apesar de ter obedecido às indicações do 2° Congresso e ter apoiado o governo de Kemal[19]. Mas os dirigentes do Komintern mantiveram-se inflexíveis e Radek recordou aos seus camaradas turcos as instruções que lhes haviam sido dadas: «A vossa primeira tarefa, logo que se tiverem organizado como partido autónomo, consiste em apoiar o movimento pela liberdade nacional na Turquia»[20]. O que sucedia, porém, quando os chefes do «movimento pela liberdade nacional» dispensavam de maneira musculada o apoio dos comunistas locais? Sem se embaraçar com estes detalhes, o Congresso erigiu a Turquia em «bastião avançado do Oriente revolucionário»[21]. E no 12o Congresso do Partido Comunista Russo, em Abril de 1923, Bukharin considerou que a Turquia «apesar das perseguições aos comunistas, desempenha um papel revolucionário devido ao facto de ser um instrumento destrutivo relativamente ao sistema imperialista considerado como um todo»[22]. Segundo esta admirável dialéctica, um regime podia ser classificado como revolucionário por considerações geopolíticas, quando a sua orientação externa era favorável ao Estado soviético no confronto com outras potências, sem que em nada importasse o seu carácter contrarrevolucionário no plano social interno, o único em que tais questões deveriam ser aferidas.
Na sequência do que haviam feito em Brest-Litovsk, os governantes soviéticos prosseguiam uma política nacionalista que buscava um apoio internacional, e não uma política que subordinasse os interesses nacionais a uma estratégia internacionalista. Exilado na Alemanha, o menchevista Martov, que os contemporâneos situavam à direita dos leninistas mas que a lição da história mostra a ultrapassá-los várias vezes pela esquerda, declarou em Outubro de 1920, no congresso que levou à cisão do USPD, sem receio de ser desmentido por Zinoviev, presente no mesmo lugar: «Os bolchevistas consideram a conservação do seu poder como a única garantia de êxito da revolução mundial e isto leva-os a recorrer a todos os meios, mesmo os mais suspeitos e duvidosos, para manter o seu poder, sem terem em conta o efeito desses meios no desenvolvimento da revolução mundial» [23].
O bolchevismo conseguiu dar um carácter nacional a uma revolução que havia começado por ser internacionalista. De então em diante, nas demais experiências revolucionárias o comunismo nunca deixou de estar ligado ao nacionalismo, enquanto nacional-bolchevismo, numa tensão capaz de atrair para um campo único os dois pólos opostos.
Notas:
[1] E. H. Carr (1966) I 299-301.
[2] Id., ibid., I 303-304.
[3] Citado em id., ibid., I 303-304 e 310 n. 1.
[4] Id., ibid., I 304-306.
[5] Id., ibid., II 55.
[6] Citado em id., ibid., I 301.
[7] A estratégia de «explorar ao máximo» a Ucrânia e as consequências políticas e militares que daí resultaram encontram-se expostas em P. Broué (1996) 149, 152-156, 158 e 160-161. A citação de Rakovsky vem na pág. 161.
[8] J. M. Meijer (org. 1964-1971) II 209. Pretendeu I. Deutscher (1972) II 331-332 que Trotsky fora o primeiro dirigente bolchevista a propor, num memorando secreto endereçado ao comité central em Agosto de 1919, que o eixo da actividade revolucionária fosse transferido para o Oriente e referiu (vol. II, págs. 340-341) a nota secreta de 4 de Junho de 1920, sem no entanto a transcrever e atenuando um pouco o seu flagrante cinismo. Convém saber que os arquivos onde se encontra essa nota ainda não tinham sido publicados na época em que Deutscher escreveu a biografia de Trotsky, embora ele tivesse sido autorizado a consultá-los.
[9] A. Berkman (1987) 60.
[10] E. H. Carr (1966) III 244-245.
[11] Id., ibid., III 292-293.
[12] Id., ibid., III 293-294.
[13] Id., ibid., III 465. A passagem citada das Mémoires d’un Révolutionnaire, 1905-1941, de Victor Serge, encontra-se em J. Rière et al. (orgs. 2001) 711.
[14] E. H. Carr (1966) III 298-301. Conta-se que durante a Grande Guerra a publicação em Istambul de uma versão abreviada do Manifesto do Partido Comunista levara o sultão a emitir uma ordem de captura de «certos conspiradores subversivos disfarçados sob o pseudónimo de “Karl Marx e Friedrich Engels”». Ver T. A. Jackson (1936) 291. Em poucos anos as mudanças políticas ocorridas na Turquia haviam colocado no poder uma classe dominante capaz de distinguir as sombras das realidades.
[15] E. H. Carr (1966) III 301.
[16] Citado em id., ibid., III 303.
[17] Id., ibid., III 303-304.
[18] Id., ibid., III 468-470.
[19] Id., ibid., III 473-474.
[20] Citado em id., ibid., III 476. No mesmo congresso Bukharin, citado por S. F. Cohen (1990) 174, defendeu que a União Soviética podia «estabelecer alianças militares com um país burguês a fim de enfrentar outro país burguês».
[21] Citado em E. H. Carr (1966) III 478.
[22] Citado em id., ibid., III 479.
[23] Citado em id., ibid., III 392. Ver igualmente P. Broué (2006) 442.
Referências
Alexandre Berkman (1987) Le Mythe Bolchevik, Baye: La Digitale – Calligrammes.
Pierre Broué (1996) Rakovsky ou la Révolution dans tous les Pays, [Paris]: Fayard.
Pierre Broué (2006) The German Revolution, 1917-1923, Londres: The Merlin Press.
Stephen F. Cohen (1990) Bukharin. Uma Biografia Política, 1888-1938, São Paulo: Paz e Terra.
Isaac Deutscher (1972) Trotsky. I: Le Prophète Armé (1879-1921), 2 vols., Paris: Julliard e Union Générale d’Éditions (10/18).
T. A. Jackson (1936) Dialectics. The Logic of Marxism, and its Critics — An Essay in Exploration, Londres: Lawrence and Wishart.
Edward Hallett Carr (1966) A History of Soviet Russia. The Bolshevik Revolution, 1917-1923, 3 vols., Harmondsworth: Penguin.
Jan M. Meijer (org. 1964-1971) The Trotsky Papers, 1917-1922, 2 vols., Londres, Haia e Paris: Mouton.
Jean Rière e Jil Silberstein (orgs. 2001) Victor Serge. Mémoires d’un Révolutionnaire et autres Écrits Politiques. 1908-1947, Paris: Robert Laffont.