Mas por que as condições peculiares que criam a própria economia capitalista são tão importantes na hora de perpetuar a violência sexual e outras formas de opressão da mulher? Por Maya John
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A classe e sua insatisfação: a formação de estupradores e de vítimas
A principal noção que teríamos que criticar nas feministas é, concretamente, a de que a igualdade social pode ser alcançada mediante a erradicação da estratificação de gênero, sem necessidade de fazer nada mais para erradicar as desigualdades de classe. De fato, poucas vezes afetadas pela pobreza, a maior parte das mulheres de classe média e das feministas só são conscientes das desigualdades que as afetam diretamente, ou seja, as relações desiguais nos lares e nos locais de trabalho, entre elas e os homens de sua mesma classe. Por isso, pensamos, a tendência a considerar o patriarcado como um sistema de opressão global e independente encontra uma maior aceitação entre os extratos superiores da sociedade, onde as mulheres estão em melhor situação material, semelhante à dos homens de sua classe. Em tal situação, o que elas enfrentam principalmente não são as condições materiais derivadas da classe a que pertencem, mas as diferenças de gênero entre elas e os homens de sua classe. Ao se verem menos afetadas pela estratificação de classe, as mulheres dos estratos superiores têm maior predisposição a perceber as desigualdades de gênero como um conjunto de atitudes e comportamentos com uma capacidade independente para dar lugar a um sistema de relações de opressão e desigualdade de gênero. Não é surpreendente que, ao invés do que ocorre com suas irmãs operárias castigadas pela miséria, seja mais custoso para as mulheres de classe média compreender e se organizar contra as bases materiais sobre as quais repousa a opressão da mulher. Estão, antes, dispostas a se organizar para clamar contra “mentalidade de gênero”, “cultura sexista”, etc.
Assim, pois, para as feministas, a erradicação da violência sexual será possível quando o homem e a mulher forem iguais:
Homens = Mulheres
Ou basicamente, os homens e as mulheres são iguais dentro de suas respectivas classes.
Homens (capitalistas) = Mulheres (capitalistas)
Homens (de classe média) = Mulheres (de classe média)
Homens (trabalhadores) = Mulheres (trabalhadoras)
As feministas, pois, imaginam um mundo sem violência sexual, sem focar de maneira concreta a questão das demais desigualdades. Passam por alto o fato de que a violência sexual não pode ser erradicada enquanto exista a sociedade dividida em classes, e portanto menosprezam ou evitam a questão do predomínio das desigualdades de classe.
Ao deixar de lado as estratificações de classe, podem afirmar que:
Homens (proletários) = Mulheres (de classe média)
Homens (capitalistas) = Mulheres (proletárias)
Homens (capitalistas) = Mulheres (de classe média)
Homens (de classe média) = Mulheres (proletárias)
Salta à vista a falácia implicada em assumirmos que a igualdade entre homens e mulheres da mesma classe é o mesmo que a igualdade de homens e mulheres de classes distintas. Evidentemente, a violência sexual e a opressão da mulher seguirão de pé enquanto as divisões de classe que alimentam a desigualdade de gênero não forem erradicadas. Por exemplo, enquanto as mulheres operárias dependerem dos capitalistas e dos homens de classe média para conseguir um emprego, e enquanto sigam discriminadas no mercado de trabalho, seguirão em condições de ser violadas quando os homens de classe superior quiserem se aproveitar de sua situação explorável de mulheres operárias. Do mesmo modo, enquanto persistirem as divisões de classe, as famílias operárias continuarão sobrecarregando as mulheres operárias com a escravidão doméstica para reduzir os custos de sua sobrevivência, uma carga que reduz estas mulheres a situações de submissão que podem facilmente ser exploradas pelos operários de sua própria família. Fica claro então que, enquanto não abordarmos as divisões de classe, não poderemos erradicar as desigualdades de gênero predominantes. O que necessitamos neste momento, portanto, é uma crítica rigorosa da estratificação de classe provocada pelo capitalismo. Se não a fizermos e se seguirmos nos limitando a combater os sintomas, isto é, as normas patriarcais (lakshman rekhas [o termo vem da mitologia indiana e é modernamente usado no sentido de uma norma inquebrável — PP), em lugar da própria enfermidade, a violência sexual continuará enquanto nós ficamos roucos de tanto gritar “vamos recuperar a noite”.
Mas por que as condições peculiares que criam a própria economia capitalista são tão importantes na hora de perpetuar a violência sexual e outras formas de opressão da mulher? Em primeiro lugar, a situação econômica tão rigorosa imposta à classe operária provocou níveis fenomenais de frustração e agressividade entre os homens da classe operária. Estes homens não têm acesso aos típicos lugares de encontro, como as universidades, os campus, os contatos nas redes sociais, os pub modernos, etc., pois carecem de tempo ou dinheiro para isso. Depois de muitas horas de duro trabalho mal remunerado, mal alimentados e mal vestidos, os homens de classe operária não estão em condições de atrair as mulheres da classe superior, que estão em condições de poder exercer uma escolha ativa na hora de buscar parceiros. A este respeito, a desigualdade dos homens da classe operária frente aos homens e mulheres de classe superior, especialmente em termos sexuais, cria constantemente um espaço para possíveis crimes. Com pouco tempo para o coito, expostos a enormes quantidades de sexo por parte dos meios de comunicação capitalistas, os homens da classe operária não só estão condicionados para arrebatar sexo contra a vontade das mulheres e crianças, mas também são propensos a submergir-se em relações sexuais não-românticas que estão muito longe dos sentimentos de amor e reciprocidade, e que basicamente, pois, são relações perfeitas para o mau sexo. Demos uma olhada nos estereótipos da juventude operária e camponesa, cruzando armazéns abandonados, clareiras, edifícios em ruínas e parques fantasmagóricos. Sim, estes são precisamente os lugares onde nossa miserável juventude se inicia no sexo, iniciações que normalmente implicam uma atividade sexual rápida, indiferente e insensível.
Isto nos leva à questão de como estas mesmas severas condições não tardam em provocar vítimas femininas, as quais devido a suas carências econômicas não podem arcar uma vida segura que as mantenha distante dos homens frustrados e agressivos de sua classe (operária), homens que se cruzam diariamente (como seus maridos, pais, irmãos, colegas, “amantes” etc.). Ao contrário das mulheres de status superior, que podem bancar os gastos de um ambiente social e físico melhor e menos criminal (condomínios fechados, transporte pessoal etc.), as mulheres operárias se veem obrigadas a sobreviver em condições mais hostis (bairros menos vigiados, ruas mal iluminadas, dependência dos serviços públicos e de um transporte público massificado etc.), onde facilmente podem ser vítimas de assédio, violência sexual, etc. Tendo em conta suas condições de vida, estas mulheres operárias não estão em condições de proteger-se dos homens de classe superior capazes de explorar sua vulnerabilidade. Por isso podemos dizer que a maior parte das violações representa a convergência daqueles homens mais frustrados e excitados da sociedade, por um lado, e por outro aquelas mulheres e crianças mais vulneráveis da sociedade, ou seja, as mulheres operárias e seus filhos. Esta deprimente realidade explica o fato de que as vítimas de estupro costumam ser mulheres pobres.
Para elucidar de que forma exatamente o selvagem processo de produção capitalista gera estas graves desigualdades sexuais entre diferentes classes, o melhor é construir-se uma ideia da vida diária dos homens da classe operária. Se têm emprego, muitos levantam de madrugada; percorrem longas distâncias até as fábricas situadas nos cinturões industriais de Faridabad, Gurgaon, Gaziabad, Noida, Okhla, etc. Outros, os que não trabalham na fábrica, também podem ser vistos correndo de madrugada para chegar ao trabalho nos centros comerciais, nos subúrbios, na construção, as fábricas clandestinas do centro de Nova Délhi, garagens, postos de gasolina etc., situados geralmente longe dos subúrbios pobres onde residem estes homens. Muitos deles são eventuais, trabalhadores jornaleiros temporários que não sabem se terão trabalho no dia seguinte. Portanto, muitos deles vivem um dia por vez e muitas vezes não podem trazer suas famílias para a cidade com eles. Ganhando o básico para subsistir em troca de uma jornada laboral média de 12 horas ou mais, poucos podem se casar como e quando queiram, ou trazer esposa e filhos do campo. Os que têm família na cidade se veem obrigados a viver em pequenas habitações, muitas vezes sem janelas. De fato, as famílias operárias costumam ser formadas pelos mais velhos, os irmãos menores, as cunhadas, irmãs solteiras etc., e portanto famílias inteiras acabam vivendo em apertados edifícios de apartamentos como sardinhas enlatadas. Estas condições de vida desumanas e a tremenda sensação de alienação que vem junto com todas as horas de trabalho desumanizado tornam muito difíceis as relações igualitárias entre homens e mulheres, e entre os seres humanos em geral.
Como o capitalismo resolve esta crise emergente nos homens da classe operária, que não têm tempo para cultivar relações humanas e nem estão em condições de satisfazer suas necessidades sexuais e as de suas parceiras? Bombardeia-lhes com imagens sexuais (você pode ver, mas quem se importa se tem ou não tempo para fazer?). De fato, a crise sexual que surge com o capitalismo parte precisamente do fato de que a maior parte da juventude passa o dia pensando em sexo e, claro, sem praticá-lo. Esta repressão se desenvolve sob a forma de uma personalidade pouco saudável. Para o capitalismo, o importante é que estes homens vejam sexo para entreter-se e “se satisfazer”; um entretenimento que sorridentemente vem a contribuir para os bilhões de dólares ganhos pela indústria do pornô, da prostituição e de bebidas alcoólicas. Assim, pois, o fato alarmante que não devemos ocultar é que o capitalismo cria animais por um lado, e vítimas por outro. Este círculo vicioso não só mantem encurraladas as pobres mulheres operárias (e ocasionalmente as de classe média), mas também os homens operários.
De fato, basta dar uma volta pelos cinturões industriais para ver estes asquerosos cinemas B oferecendo sessões de pornô durante todo o dia. Sem dúvida, os atos das estrelas masculinas do pornô destes filmes de cinemas B acabam fazendo parte das fantasias dos homens. O mesmo ocorre com os atores masculinos mais famosos, cujo “stalking” às heroínas nos filmes, entre outras amostras de lumpenismo (assobiar, encarar, chamar a atenção), inspiram lumpenismo e fantasias sexuais sobre os corpos das mulheres e sobre como supostamente elas gostam de ser tratadas. Todo o cinturão industrial está cheio de lojas de bebidas, situadas estrategicamente em certos pontos de passagem, estradas etc. Nestes pontos de passagem e também nas mercearias próximas dos bairros operários, podemos nos deparar com vendedores de lenços, cintos e DVDs. Sua coleção de DVDs seguramente inclui o famoso pacotão de 5 filmes, uma combinação de pornô, ação violenta e thriller. E certamente também encontraremos ali algumas revistas pornô, cuja única finalidade é a de servir de decoração convidativa para a masturbação. Ao folhear periódicos como Punjab Kesari ou JagranCity, ou suplementos de outros jornais, o leitor comum pensaria que neste país a sexualidade é estupenda e se expressa sem rodeios. Ao mesmo tempo, não poderia deixar de angustiar-se ao ver que na vida real não há possibilidade de desfrutar desta sexualidade mostra-tudo/livre-para-fazer-tudo.
Claro, para nos darmos conta do quão profundo é este problema (de civilização) que se ergue ante nós, seria preciso observar a clientela comum dos prostíbulos da zona de G.B. Road, em Nova Délhi. Finalmente, a tudo isto há que somar as radiantes imagens das atrizes/modelos em quase todos os anúncios das cidades, desde os que vendem desodorantes até os que exibem uma bicicleta ou cuecas. Bombardeado com imagens hiperfemininas que convertem a sexualidade e o corpo das mulheres em um objeto, é um milagre se o homem comum (saturado de trabalho e insensibilizado) da classe trabalhadora conseguisse aprender a respeitar o corpo das mulheres e suas necessidades. Enfim, frustrados por estas desigualdades, sobretudo em termos sexuais, muitos destes operários tratam de realizar suas fantasias em qualquer buraco rachadura ou buraco disponível. E aí é quando se produzem muitos casos de estupro e assédio, quando as vítimas propícias ou vulneráveis (donas de casa cansadas, crianças, uma mulher solitária voltando do trabalho, uma prostituta, etc.) terminam convertendo-se em objetos sobre os quais se descarregam as fantasias e necessidades sexuais de homens expostos única e permanentemente a formas objetivadas do corpo feminino, enquanto por sua vez lhes roubam o tempo (entre outras coisas necessárias) para cultivar as relações com o próximo[45].
Em semelhante contexto, quando uma mulher sexy de classe média se encontra em uma situação explorável, há muitas possibilidades de ser agredida sexualmente. E se é agredida, não será porque os assaltantes querem pôr sua feminidade em retirada, mas porque normalmente andam buscando uma vagina, boca ou qualquer orifício para enfiar suas genitais. Assim, as agressões sexuais a mulheres de classe média por parte de homens de classe operária representam em verdade os esforços destes homens por satisfazer seus desejos sexuais e por descarregar as frustrações que geram as desigualdades sociais e econômicas ligadas à classe a que pertencem. Nestas condições, o desejo sexual também pode facilmente se misturar com o ódio de classe, aumentando a brutalidade da agressão. Não obstante, longe de constituir agressões classistas, estas agressões sexuais são expressão desta frustração sob uma forma individual. Isto significa que as desigualdades sexuais, econômicas e sociais, produto da estratificação de classe, não só são capazes de evitar uma reação política coletiva, classista e consciente da classe operária explorada, como também de provocar um tipo de reação individual, não política e sexista, como essas brutais agressões mediante as quais os homens de classe operária submetem momentaneamente as mulheres de classe superior. Evidentemente, ao destacar o papel das divisões de classe e suas intrincadas consequências, não pretendemos justificar o predomínio da violência sexual na sociedade. O que ocorre é que dado que a estratificação de classe é a causa de tal violência, a questão de como combatê-la é essencial para os que realmente querem erradicar a violência sexual pela raiz[46].
Dito isto, que há com os homens de classe média que agridem suas esposas, namoradas, colegas de trabalho etc.? Neste caso, a aculturação dos homens de classe média na agressão sexual tampouco se pode explicar simplesmente recorrendo à noção abstrata de patriarcado. De fato, isto nos leva à questão de por que as noções de hierarquia sexual fazem parte da consciência masculina. Há que se assinalar que a origem da violência sexual perpetrada sobre as mulheres de classe média por homens de sua mesma classe também está ligada às desigualdades que a divisão de classes provoca. Isto explica por que muitas destas violações acontecem em um contexto em que as mulheres de classe média entram em um mercado laboral extremamente inseguro, para ajudar na renda familiar e melhorar suas perspectivas de casamento; ou durante os encontros, cujo objetivo é encontrar um companheiro do mesmo status; ou quando as próprias mulheres assumiram normas familiares que dizem que “a família deve estar unida” etc. Em todo caso, todos são um produto histórico do capitalismo. Para termos uma ideia: a pressão que a sociedade dividida em classes gera na hora de buscar parceiros entre os membros da mesma classe empurrou as mulheres a uma situação de compromisso, sob o qual tendem a se somar à feminidade patriarcal e a assumir normas que submetem seus interesses aos interesses de seus maridos. Nesta posição de compromisso (ficar bonita para ir trabalhar, encontros às cegas, ignorar as insinuações sexuais de seus colegas masculinos, tolerar companheiros “superprotetores” etc.), as mulheres de classe média se tornam mais vulneráveis à opressão exercida pelos homens de sua mesma classe.
Não obstante, é imperativo reconhecer o fato de que a opressão pela qual passa a mulher de classe média não pode se equiparada à exploração e opressão que as trabalhadoras aguentam. Ao contrário do que afirma a crença popular de que os interesses e as experiências de todas as mulheres são equiparáveis, é difícil, se não impossível, comparar a situação de Priyanka Chopra com a de Soni Sori, ou para o caso, a de uma mulher que é diretora de um banco do grupo ICICI [Industrial Credit and Investment Corporation of India] com a de uma trabalhadora fabril. É difícil supor que existe tal equivalência, pois ainda que o gênero possa estar imbricado na base do poder, as desigualdades que originam são algo acidental comparado com a posição de classe que ocupam as mulheres. Assim, pois, embora os homens tenham privilégios sobre as mulheres de sua mesma classe, as mulheres das famílias de classe média, de famílias burguesas e as mulheres dos países capitalistas avançados vivem em condições materiais e têm oportunidades muito mais parecidas às dos homens de sua classe que às das mulheres operárias, as mulheres de uma tribo ou as da casta Dalit. E esta divisão de classe é precisamente a razão pela qual a mulher comum de classe média costuma conceber a igualdade em termos de salários idênticos aos dos homens de sua mesma classe, mais que em termos de igualdade entre seres humanos (incluída a igualdade entre ela e um homem operário).
Assim, esta noção de igualdade é tão somente uma forma que as mulheres de classe média têm para combinar seu discurso aparentemente radical com seus sentimentos de culpabilidade por pertencer a uma classe mais alta. De fato, é a ausência de enfoque classista entre as feministas de classe média o que deu lugar a esta noção (distorcida) de igualdade, e o que pavimenta o caminho para uma forma de fazer política baseada no esquecimento, por parte das mulheres, de suas diferenças de classe. Lamentavelmente, entre os mais ardentes seguidores desta política da igualdade estão algumas organizações de “esquerda”[47]. Em verdade, as reivindicações que surgem a partir desta noção de igualdade não oferecem nenhuma saída às mulheres mais vulneráveis de nossa sociedade. Ao contrário, estas políticas mal colocadas lembram o típico esquecer pequeno-burguês da exploração de classe e seus efeitos debilitantes.
É essencial, portanto, que sejamos conscientes do papel que joga a classe tanto na forma como no conteúdo daquilo que se denomina igualdade e liberdade. Se deixarmos isto de lado, cairemos nas formas de política feminista que omitem a verdadeira crítica de nossa sociedade. Como sociedade, só podemos lutar formidavelmente contra as raízes da violência sexual se aceitamos com todas suas consequências o fato de que a sexualidade humana está conformada pelo capitalismo, e que as relações humanas estão influenciadas pela divisão de classes. O combate contra a violência sexual é, pois, uma luta contra o capitalismo; a luta pela libertação sexual baseada na igualdade é, portanto, uma luta pela liberação sexual de todos os homens e mulheres: e a batalha pela igualdade entre gêneros separados, hoje em dia, é uma batalha por uma sociedade sem classes.
(continua…)
Notas
[45] É preciso partir destas violações cotidianas para poder identificar o que as pessoas comuns experimentam como “estupro”. Como se disse, este tipo de violação constitui a maioria das que se cometem em nossa sociedade, e tem um conteúdo sexual indubitável, pois normalmente o que o agressor está buscando é a satisfação sexual. Mas o que há nas violações que são facilmente identificadas como “estupros de poder”, por exemplo as que se produzem durante as conquistas militares, a ocupação de territórios, os levantamentos, a repressão das revoltas, a guerra civil, a reação racial ou de casta, etc.? O primeiro que há que se assinalar é que estes casos se produzem em circunstâncias excepcionais, e portanto constituem uma parte concreta do conjunto das violações que são produzidas na sociedade. E o que é mais importante, inclusive nestes casos o estupro está ligado ao sexo, pois não é tão somente uma expressão de hostilidade ou vingança, mas também um produto da extrema vulnerabilidade das mulheres aprisionadas, política e socialmente submetidas, assim como da impunidade oferecida aos homens pelas guerras ou pelos conflitos armados.
[46] O fracasso da esquerda na hora de desenvolver uma crítica cultural ao capitalismo e a suas consequências sobre o comportamento humano permitiu que as forças da direita lograssem maior apoio entre as massas. O discurso direitista da “ocidentalização”, o “consumismo”, etc., que se baseia numa noção reificada do que é a cultura moderna, que não tem em conta a divisão de classe predominante na sociedade, tocou os sentidos das pessoas, que estão desorientadas pela desigualdade socioeconômica e o hedonismo dos ricos. Em realidade esta maioria (oprimida) facilmente influenciável pela direita está em oposição à (protestante) classe média influenciada por certas perspectivas feministas. O desafio para a esquerda consiste em apresentar uma crítica do impacto cultural, sexual e social do capitalismo para, por um lado, arrancar essa maioria das garras da direita, e por outro, evitar que se consolidem as políticas feministas no seio da classe média.
[47] Entre as chamadas organizações de esquerda estão estes “novos” socialistas que decidiram “mudar a linguagem da esquerda”. Veja-se o panfleto publicado por New Socialist Initiative em sua Conferência fundacional, 22-24 fevereiro de 2013. Em linha com estas perspectivas políticas (omitir a classe, ecletismo) alguns se dedicam a defender um “novo” socialismo (de bares) para que os pubs sejam acessíveis aos pobres e estes possam deixar de se sentir pobres de vez em quando. Veja-se Amrapali Basumatary (2013), “Come Frolic with Me in the Streets of Nova Délhi”. O texto foi reeditado por Critique, em março de 2013. Amrapali Basumatary sugeria que a subvenção massiva dos pubs para que todas as classes possam frequentá-los poderia ser um projeto emancipador na medida em que permitiria que os pobres mostrassem a cara neles “de vez em quando sem se sentirem pobres”. Seus argumentos omitiam tanto a questão das divisões de classe como as desigualdades que provocam. A este respeito, não tem dúvidas ao afirmar que “a liberdade não está nem pode estar limitada à questão do orgulho/vergonha nacional/classista”. Está claro que unindo as classes em torno à luta contra os tabus associados à bebida, as agudas contradições entre seus distintos interesses terminarão sendo resolvidas e isso nos levará a uma vida melhor. Em outras palavras, os homens e as mulheres pobres deixarão de se sentir rechaçados e agitados pelas desigualdades sociais, sexuais e econômicas, o que presumivelmente nos levará à redução dos bárbaros desejos de agredir as mulheres que desfrutam de melhores condições de vida(!).
As imagens que ilustram este artigo foram realizadas na instalação True Rouge (1997) do artista Tunga