Uma experiência de autogoverno conduzida por um anarco-comunista durante a Guerra Civil na Ucrânia. Por Nick Heath
Svirid (Spiridon) Dementiyovich Kotsur nasceu em 30 de janeiro de 1890 (porém outras fontes dão sua data de nascimento em 1886), na vila cossaca de Subotiv (Subbotovo, em russo) no cantão de Chyhyryn (Chigirin, em russo) sob o governo de Kiev. Ele parece ter trabalhado como agricultor. Tornou-se anarco-comunista e, durante a Primeira Guerra mundial, foi membro de um grupo anarquista em Katerinoslav. Por terem roubado um banco, Kotsur foi condenado à prisão, servindo por doze anos em kartoga (trabalhos pesados) na Sibéria. Após a Revolução de Fevereiro de 1917, ele retornou a Subotiv e se envolveu em atividades políticas, organizando um destacamento de cossacos livres. Aparentemente, ele era um bom orador, com o dom de inspirar suas plateias. Em outubro de 1917, foi delegado no Primeiro Congresso de Cossacos Livres.
Em 1918, organizou destacamentos contra o hetman Skoropadsky[1] e seus seguidores austríacos e germânicos, coordenado com as fileiras vermelhas sob o comando de Fedor Navodnichev, para construir seu próprio destacamento. Em dezembro daquele ano, Kotsur aderiu ao levante geral convocado pelo Diretório de Petliura[2] contra os austro-germânicos e Skoropadsky. Mas após a vitória do levante no início de janeiro de 1919, ele revoltou-se contra o Diretório e capturou a cidade de Chyhyryn, que fica a 8 verstas [medida de distância russa, equivalente a 1,1 km] de sua terra natal, Subotiv. Chyhyryn tinha uma população de cerca de 17-18 mil pessoas à época, sendo 5-6 mil dentre eles judeus, em sua maioria pobres. Era um centro de artesanato e tinha doze manufaturas de couro. Kotsur prendeu a Guarda do Sovereign (milícia local), removeu os oficiais de Skoropadsky e apontou comissários políticos e militares. De acordo com o Heifetz, Kotsur tinha a simpatia da população local. Dois dias depois, juntou-se a ele o destacamento do bolchevique Tikhonenko. Ele organizou um regimento de Cossacos Vermelhos, que tornou-se o sustentáculo do poder soviético na região. Em fevereiro de 1919, esse regimento somava 1095 pessoas, armados com 900 rifles, 12 metralhadoras, 3 canhões, e era visto como parte do Exército Vermelho. O regimento operava um trem blindado, A Estrela, na estrada de ferro Znamyanka-Bobrinsk. Lutou contra as forças nacionalistas do ataman[3] Volokh.
A República Soviética Independente de Chyhyryn foi declarada por Kotsur em julho. Aparentemente, outros líderes guerrilheiros da região, como Ilchenko, Satana e Hveschuka, reconheceram sua autoridade.
No início de março de 1919, o regimento dos “Cossacos Vermelhos” de Chyhyryn estabeleceu-se no front para lutar contra os petliuristas. Envolveram-se em batalhas desde Fundukliivka até Volochisk. Em junho de 1919, se reorganizaram como o 414º Regimento, ao qual foi incumbida a tarefa de liquidar o regimento de haidamaques de Kholodny Yar[4]. Contam que eles dispersaram as unidades da Cheka nos condados que estavam pelo caminho. Um tentativa das tropas de Kholodny Yar forçarem a rendição do destacamento de Kotsur, retirando-se do front, terminou fracassada. Ao final de julho, Kotsur, apoiado por tropas Vermelhas, liderou um ataque contra Kholodny Yar vindo de Subotiv, capturando Medvedivka e seguindo para Melniki. As forças de Kholodny Yar repeliram a ofensiva, sofrendo 11 baixas no processo. As perdas de Kotsur envolveram 80 assassinados.
As forças de Kotsur, baseadas em Chyhyryn, enfrentaram nessa época as tropas do ataman Grigoriev[5], fazendo-as recuar de Subotiv e Chyhyryn (Grigoriev, é claro, estava prestes a ser executado pelos makhnovistas devido ao seu antissemitismo).
O irmão mais novo de Svirid, Petro Kotsur, foi um dos fundadores das Unidades de Defesa Populares na região de Chyhyryn no início dos anos 1900. Essa organização saiu de dentro Partido Social-Revolucionário Ucraniano e tinha como objetivo a fusão das questões da terra e da nação, a construção de uma revolta ucraniana geral, e a obtenção da autonomia para a Ucrânia.
Entre 1919-1920, os irmãos Kotsur participaram de muitas batalhas contra os denikinistas[6], e posteriormente contra os Vermelhos. Em setembro de 1919, Svirid Kotsur e seu destacamento se juntaram ao Exército Insurgente de Nestor Makhno, dando cobertura militar às forças makhnovistas ao seu norte. A cavalaria de Kotsur atacou as forças Brancas em Elisabetgrado, Znamenka, Bobrinec e Hrestinovku, derrotando-as. Em janeiro de 1920, os bolcheviques voltaram à região do Dnieper e Kotsur declarou que, como um “combatente contra os Brancos”, ele os receberia e apoiaria. Em fevereiro de 1920, Kotsur estava novamente enfrentando os petliuristas. Em conexão com sua Campanha de Inverno, o exército UNR [Exército Popular Ucraniano, petliurista] publicou uma ordem de que “todas as unidades de Kotsur devem ser consideradas inimigas e, se possível, desarmadas.” Deste modo, nos dias 18 e 19 de fevereiro, os homens da Divisão Zaporozsky desarmaram uma unidade de guardas de Kotsur na cidade de Kamyanka.
O Coronel Stefaniv, que negociou com Svirid Kotsur, descreveu-o da seguinte forma: “Vinte oito anos de idade, vestido em trajes camponeses que parecem ter saído de uma opereta, com físico bem desenvolvido, ele tenta impressionar seus oponentes com sua aparência externa. A cidade de Chyhyryn, onde ele estava no comando, parecia praticamente sem vida. O poder de Kotsur se estendia para quatro vilas vizinhas relativamente grandes, uma das quais era o lar de sua família. Mas o restante da região se recusava a reconhecê-lo e lhe era, na verdade, abertamente hostil.”
Em março de 1920, Kotsur começou a esbravejar contra o que ele chamou de “os charlatães bolcheviques” e a República Soviética Independente de Chyhyryn foi revivida, operando sob uma plataforma de “sovietes livres, sem a ditadura de um partido”. Vendo sua hostilidade contra os bolcheviques, muitos líderes de guerrilhas nacionalistas locais pensaram que ele podia se tornar um aliado. Um deles, Vasyl Chuchupaka, que havia sido um líder haidamaque em Kholodny Yar, e inimigo de Kotsur, veio pedir sua submissão ao comitê revolucionário de Kholodny Yar ou ao do ataman Gulogo-Gulenko, que, aliado ao exército petliurista, estava lutando contra os bolcheviques. Kotsur rejeitou isso firmemente, o que o levou a outro enfrentamento militar com Kholodny Yar, que então condenou Kotsur por desgraçar “a antiga capital do hetman, Chyhyryn”. Nessa época, oficiais bolcheviques e da Cheka chegaram à região exigindo a reeleição dos comitês revolucionários locais e o estabelecimento da ordem bolchevista. Terminaram sendo afogados no rio. Em 30 de março, os bolcheviques lançaram uma ofensiva contra as forças de Kotsur. Seu corpo foi encontrado pouco tempo depois, afogado em um poço, e os bolcheviques assumiram que o executaram após seu julgamento como “contrarrevolucionário” num Tribunal Revolucionário. Outra versão conta que Kotsur foi atraído à Znamenka quando os bolcheviques lhe ofereceram uma medalha da Ordem da Bandeira Vermelha, e lá foi fuzilado no dia 15 de abril à mando do comandante vermelho Pavel Dybenko. Uma terceira versão assume que ele escapou e juntou-se ao petliuristas, mas acabou assassinado por um agente infiltrado dos bolcheviques!
Há ainda outra versão, segundo a qual ele conseguiu escapar (graças a um comandante vermelho que fora seu ex-companheiro de kartoga) e emigrou, primeiro à Bulgária, depois à França.
Em maio de 1920, o destacamento de Petro Kotsur (com cerca de 150-200 homens) fez uma tentativa de capturar Chyhyryn. Isso durou até pelo menos 16 de julho de 1923. Um destacamento da cavalaria de Kotsur aparentemente juntou-se à investida makhnovista sobre a região de Poltava em agosto de 1920, posicionando-se na defesa de Mirgorod.
Oleksandr Solodar relata uma história contada pelos moradores mais velhos de Subotiv, sobre um homem de cabelo branco que vistou a igreja de Illinska nos anos 1980. Ele observava as tumbas de parentes mortos no cemitério próximo à igreja. As pessoas mais velhas da vila disseram que ele parecia muito com Svirid Kotsur.
De acordo com as histórias soviéticas, Chyhyryn era “uma ilha patriarcal de anarquia”. Gennady Nedeljko refere-se atuando como um “ditador”, “hetman” ou “monarca”! De acordo com essas fontes, o comitê soviético e revolucionário tinha “funções puramente formais e decorativas” e que, uma vez tendo tomado a cidade, Kotsur começou a “reprimir os indesejáveis, lançando um terror vermelho”, tomando as propriedades, fuzilando o hetman local, ex-oficiais do Império, mas também judeus. Essas acusações, todavia, são rebatidas pelos relatos do livro de Elias Heifetz, que afirma que “durante todo o tempo do governo de Kotzyr [grafia alternativa], não houve nenhum tipo de excesso, especificamente não contra judeus”. Isso é especialmente interessante, uma vez que em todo o resto do livro Heifetz faz falsas acusações de pogroms antissemitas que Makhno teria cometido! Heifetz diz que após Kotsur deixar o local, um remanescente de suas tropas sob o comando de Leschenko de fato fuzilou 6 judeus.
É preciso que se faça mais pesquisas acerca da República Soviética Independente de Kotsur e se ele e suas forças tentaram erguer uma zona anarquista, ou se ele era mesmo só mais um chefe militar local.
Referências
Heifetz, Elias. The slaughter of the Jews in the Ukraine in 1919.
Gennady, Nedeljko. <http://zhurnal.lib.ru/n/nedelxko_g_b/nedelko-11.shtml>.
Horlis-Gorsky, Yuri. Kholodny Yar.
Savchenko, V. A. Cossack warriors Volokh, Bozhko and Kotsur.
Notas da tradução
[1] Hetman era o nome dado ao mais alto comandante militar na República das Duas Nações entre os séculos XV e XVIII que, tendo autoridade para tomar decisões com autonomia em relação ao próprio monarca, acabava por atuar como um verdadeiro chefe de Estado. Desde o século XVI, o título passou também a ser adotado entre os cossacos ucranianos e russos, mas terminou abolido pela czarina Catarina I. No contexto revolucionário de 1917, o hetmanato foi recuperado pelos contrarrevolucionários que, com apoio dos conservadores alemães, derrubaram a República Popular Ucraniana com um golpe de Estado no início de 1918 e entronaram o general aristocrata Pavlo Skoropadsky (1873-1945) – descendente distante de Ivan Skoropadsky, hetman do século XVIII. Apesar de ter logrado estabelecer um acordo de paz com a Rússia Soviética, Pavlo foi destituído ao final do mesmo ano por um levante dirigido pelo socialista nacionalista Simon Petliura. Pavlo fugiu e sua família, que atualmente vive em Toronto no Canadá, continua hoje reivindicando o trono ucraniano.
[2] Referência a Simon Petliura (1879-1926), líder revolucionário ucraniano, nacionalista e socialista, que derrubou o hetmanato de Skoropadsky e combateu tanto o Exército Branco quanto os bolcheviques em defesa da independência da República Popular da Ucrânia.
[3] Ataman, tal qual hetman, é um título de comando militar da tradição cossaca.
[4] Haidamaques: grupos paramilitares atuantes em áreas da República das Duas Nações hoje integradas à Ucrânia, formados por cossacos desvinculados das hostes tradicionais (ou seja, que não se haviam sujeitado à autoridade do rei polonês, do grão-duque lituano ou do czar russo), por camponeses livres e por rebeldes. No século XVIII, lideraram as haidamachchyna (“rebeliões haidamaques”) de 1734, 1750 e a maior delas, a Koliyivshchyna (“Revolta dos Empaladores”) de 1768, onde os massacres contra nobres, judeus, jesuítas e demais católicos nos territórios sob seu controle deram-lhes terrível reputação. O último levante haidamaque de que se tem notícia foi o liderado por Ustym Karmaliuk, cujo bando armado atacava nobres e comboios de mercadores e terratenentes entre 1812 e 1835 para distribuir o saque entre os pobres – garantindo-lhe assim enorme suporte popular. Desde então, a depender de quem a emprega, a palavra pode ter a conotação de “bandido”, “fora-da-lei”, “vagabundo”, “ladrão” e “salteador”, de um lado, e de outro “rebelde”, “insurgente”, “guerrilheiro” e “combatente pela liberdade”, enquadrando os haidamaques na teoria dos bandidos sociais de Eric Hobsbawn. A figura dos haidamaques reaparece no período revolucionário durante a guerra civil, e Kotsur enfrenta os grupos estabelecidos na floresta de Kholodny Yar.
[5] Oficial cossaco durante o czarismo, Nikifor Grigoriev (1885-1919) apoiou o governo revolucionário em 1917. Com suas tropas camponesas, genericamente referidas como “verdes”, combateu alinhado a nacionalistas ucranianos como Simon Petliura e depois nas fileiras do Exército Vermelho durante a tomada de Odessa. Acusado de saquear a cidade, rompeu com os bolcheviques e procurou abrigo no território makhnovista, onde foi julgado e sentenciado à morte – antissemita, Grigoriev foi responsável por um série de pogroms contra judeus ao longo da guerra civil.
[6] Referência ao tenente-general branco Anton Ivanovich Denikin (1872-1947), responsável por tentar restabelecer o governo czarista na Ucrânia durante a Guerra Civil.
Traduzida do original no Libcom pelo Passa Palavra, esta biografia integra o esforço de traduções de 100 anos da Revolução Russa (confira aqui o chamado e a lista completa de obras).