O rápido desenvolvimento das estreitas relações entre o jovem regime bolchevique e as potências europeias. Por E. H. Carr

O fortalecimento do partido e da organização soviética coincidiu com a consolidação das relações diplomáticas russas mundo afora. Mesmo nos dias do comunismo de guerra, quando a ideia da revolução mundial era predominante em Moscou, as raras oportunidades de contato direto com os governos do Ocidente não eram negligenciadas. Em Janeiro de 1920, representantes de cooperativas russas em Paris debateram com representantes dos governos ocidentais uma resolução de comércio com a União Soviética; e Litvinov, em Copenhague, negociou um acordo de mútua repatriação de prisioneiros. Um tratado de paz na Estônia foi assinado em 2 de Fevereiro de 1920; e Lênin comentou que ‘havíamos aberto uma janela na Europa que deveremos utilizar o máximo possível’. No Congresso do Partido em março de 1920, Lênin falou a respeito da necessidade de uma linha política mais flexível na política internacional. Alguns dias depois, Krasin, o dirigente bolchevique detentor de experiência na indústria e comércio exteriores, enviou uma delegação de especialistas em comércio para a Escandinávia e em maio foi cortesmente recebido em Londres. Essa abertura foi interrompida pela Guerra Polonesa que inspirou o recrudescimento das forças revolucionárias em Moscou e um surto de animosidade no Ocidente. Mas no Outono de 1920 a paz foi restaurada. Uma empresa comercial russa foi registrada em Londres sob o nome de Arcos; e Krasin passou a maior parte do inverno londrino com o governo britânico e com as firmas interessadas em negócios na Rússia. Por fim, apenas uma semana após Lênin apresentar a NEP no Congresso do Partido, um acordo anglo-soviético foi assinado em Londres em 16 de Março de 1921.

Leonid Krasin (1870-1926)

O acordo comercial foi saudado como uma ruptura, um ponto de inflexão na política soviética. Os partidos concordaram em não obstaculizar o comércio e, na falta de reconhecimento diplomático formal, trocar representantes comerciais oficiais. A mais importante cláusula para os britânicos era aquela em que cada partido firmava o compromisso de ‘abster-se de ações e empreendimentos’ e de ‘propaganda oficial, direta ou indireta’ contra o outro. A ‘Ação ou propaganda para encorajar qualquer dos povos da Ásia em qualquer forma de ação hostil contra os interesses britânicos ou contra o império britânico’ foi especialmente mencionada. A garantia de evitar propaganda hostil havia sido dada de uma forma menos elaborada no tratado de Brest-Litovsky. Mas agora as circunstâncias eram diferentes. Aquele tratado foi concluído em condições inesperadas. O tratado anglo-soviético foi pensado, como a NEP, ‘seriamente e por um longo período’. Foi enunciada uma mudança na linha da diplomacia soviética. Discursos sobre a revolução mundial continuaram a ser pronunciados, mas, consciente ou inconscientemente, eram cada vez mais parte de um ritual já preparado, que não afetava as condições normais dos negócios. A latente incompatibilidade entre as politicas do Comissariado do Povo para Negócios Estrangeiros (Narkomindel) e o Comintern começaram a se tornar públicas.

O pano de fundo da reaproximação entre União Soviética e Grã Bretanha era econômico: o desejo mútuo de facilitar o comércio. A razão da reaproximação com a Alemanha foi basicamente politica, com raízes assentadas na oposição ao Tratado de Versalhes e na antipatia comum às reivindicações polonesas. Radek, que passou a maior parte de 1919 na prisão e em casas de detenção em Berlim, planejou toda a conversa com os alemães.

As relações entre Alemanha e União Soviética haviam sido interrompidas desde o assassinato do embaixador alemão na Rússia em 1918. No verão de 1920, um representante soviético foi uma vez mais recebido em Berlim, e um representante alemão em Moscou. A guerra polonesa representou um estímulo às relações amistosas entre os dois países. Trótski declarou-se favorável a um acordo com os alemães, e Lenin, em discurso público em Novembro de 1920, percebeu que, ‘apesar do governo burguês da Alemanha odiar ardentemente os bolcheviques, os interesses da situação internacional estão empurrando-os para a paz com a União Soviética mesmo contra sua vontade.’ A política soviética permanecia ambivalente, dividida entre o desejo pela revolução e pela diplomacia. Em março de 1921, o Partido Comunista Alemão iniciou um levante armado contra o governo, conhecido, na história do Partido, como ‘Ações de Março’. A iniciativa foi certamente apoiada, talvez incitada, por Zinoviev e por funcionários do Comintern; o envolvimento de outros líderes soviéticos é duvidoso, visto que, naquele momento, preocupavam-se com a revolta de Kronstadt e com o Congresso do Partido. A derrota do levante alemão provavelmente reduziu as expectativas, em Moscou, de uma revolução no Ocidente, e fortaleceu aqueles que viam nos entendimentos diplomáticos com os países capitalistas um objetivo imediato.

Àquela altura, um traço das relações germano-soviéticas era a necessidade de colaboração militar, visto que, como resultado do Tratado de Versalhes, foi proibida a fabricação de armamentos em território alemão. Em abril de 1921, Kopp, o representante soviético em Berlim, após tratativas secretas com a Reichswehr, levou a Moscou um plano para a fabricação, por empresas alemãs, de armas, bombas, aviões e submarinos na Rússia soviética. O plano foi aprovado, e uma delegação militar alemã visitou Moscou durante o verão. Um acordo foi concluído em Berlim, em setembro de 1921, em que Krasin e Seeckt, chefe da Reichswehr, eram os principais negociadores; parece ter sido neste momento que Seeckt divulgou pela primeira vez ao governo civil o que estava a acontecer. Apenas o projeto do submarino foi descartado. As fábricas alemãs de armas, bombas e aviões funcionaram a todo vapor em território russo. Posteriormente, passaram a fabricar tanques de guerra e a realizar experimentos com armas químicas. Os armamentos produzidos por essas empresas alimentaram tanto o Reichswehr como o Exército Vermelho. Mais tarde, oficiais alemães ofereceram ao pessoal do Exército Vermelho treinamentos com tanques e aviões de guerra. Esses acordos foram selados secretamente. Nenhuma menção foi feita na imprensa soviética; e foram durante muito tempo escondidos do público e dos políticos alemães, bem como dos aliados ocidentais. Estava distante o tempo em que, no início da revolução, os bolcheviques denunciaram os tratados secretos firmados pelo governo czarista com os Aliados durante a guerra. Concomitantemente, as relações econômicas germano-soviéticas fortaleceram-se pela criação de “empresas mestras” e pela outorga de “concessões” a empresas alemãs.

Delegação soviética na Conferência de Gênova

No início de 1922, os governos soviético e alemão foram convidados a participar de uma conferência internacional em 10 de abril na cidade de Gênova, na Itália. Tratou-se de uma ousada tentativa de Lloyd George, seu promotor mais ativo, com o mister de refundar os laços entre a Alemanha e a URSS, até então marginalizados da comunidade europeia. Lênin saudou o convite com contido entusiasmo. “Nós vamos a ele”, explicou, “como negociantes, porque o comércio com os países capitalistas (visto que eles não entraram em colapso) é incondicionalmente necessário para nós, e vamos lá para discutir condições comerciais vantajosas”. Chicherin, Krasin e Litvinov lideraram a delegação soviética, a primeira desse tipo a comparecer a uma conferência internacional em igualdade de condições com as delegações de outras grandes potências. A conferência foi um fracasso, em parte devido à inflexível oposição francesa aos objetivos de Lloyd George, em parte devido à inabilidade dos negociadores britânicos e soviéticos de chegar a um acordo sobre a questão das dívidas e obrigações soviéticas. O governo soviético estava preparado, a princípio, para reconhecer dívidas anteriores à guerra (embora não as dívidas de guerra) do antigo governo russo, mas apenas um empréstimo externo foi concedido com o mister de facilitar sua liquidação. O governo soviético recusou-se a rescindir os decretos que nacionalizavam as empresas estrangeiras, muito embora aceitasse, sob certas condições, que as firmas estrangeiras reocupassem as antigas empresas a título de “concessões”. Nenhum tipo de artifício poderia solucionar essas questões.

O impasse nas negociações, paradoxalmente, produziu o único resultado concreto da conferência. Por algum tempo, diplomatas soviéticos e alemães, em Berlim, discutiram os termos de um tratado político. A delegação soviética, em Gênova, que não conseguiu qualquer acordo com os aliados ocidentais, negociou com a delegação alemã, chefiada pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros, Rathenau, a fim de assinar o tratado o mais rápido possível; e a delegação alemã, igualmente desiludida com os trabalhos da conferência, concordou. O tratado foi assinado, apressada e secretamente, em Rapallo em 16 de abril de 1922. O conteúdo do Tratado de Rapallo não era digno de nota. As únicas cláusulas operacionais previam a renúncia mútua às reivindicações financeiras e o estabelecimento de relações diplomáticas e consulares. A despeito da pequena importância de tais cláusulas, o tratado foi relevante enquanto demonstração de solidariedade contra os aliados ocidentais, aniquilando a conferência e produzindo um impacto duradouro na cena internacional. A Rússia soviética garantiu para si uma posição de barganha entre as potências europeias. As manobras originalmente concebidas para enfrentar uma crise aos poucos se tornavam expediente corriqueiro no governo dos sovietes.

Delegação soviética durante as negociações do Tratado de Rapallo.


Publicado em inglês no Libcom sob o nome Rapprochement; how the Bolsheviks came to love capitalists, este artigo é um excerto da obra The Russian Revolution – from Lenin to Stalin 1917-1929 (Londres: Macmillan, 1979, páginas 42-46), do historiador Edward Hallet Carr. Traduzido ao português por Breno Magalhães e revisado pelo Passa Palavra como parte do esforço coletivo de 100 anos da Revolução Russa (confira aqui o chamado e a lista completa de obras).

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