Trata-se, talvez, de um primeiro sintoma de lutas nos aplicativos e de solidariedades inauditas que ainda estão por vir. Por Passa Palavra
Desde segunda feira, 13 de novembro, um grupo de motoristas, caminhoneiros, mototaxistas, taxistas e motoristas de aplicativos bloqueia a distribuidora de combustíveis de Goiás. O bloqueio é um protesto contra o aumento dos preços da gasolina e do etanol nos últimos meses, considerado abusivo. De acordo com o Sindicato dos Postos de Combustível de Goiás (Sindiposto), as ações causaram até agora um prejuízo de R$40 milhões aos empresários do setor. Pelo menos 60 cidades goianas foram afetadas e em 15 há informação de que não há gasolina nem etanol nos postos.
Formas de ação e histórico
Uma novidade aqui é a integração entre taxistas de várias modalidades e motoristas de aplicativos. Normalmente colocados em concorrência direta e em conflito por conta da regulamentação diferenciada de cada profissão, estão unidos por dias numa ação de enfrentamento contra um inimigo comum, representado pelo cartel de postos de gasolina. Focaremos, nesse momento, em como uma categoria como os motoristas de aplicativos construíram força coletiva para conseguir se colocar junto com outras categorias e talvez mudar o sentido e a dimensão dos tradicionais protestos contra aumento da gasolina. Toda a narrativa será construída a partir daqui com base em relatos cujas fontes serão propositalmente omitidas.
Relatos nos dizem que cerca de 430 motoristas do aplicativo Uber se revezam para realizar o bloqueio 24 horas por dia. Uma explicação possível para o surgimento desta ação são algumas mobilizações ensaiadas pelos motoristas a partir de redes sociais e pontos de encontro regulares. Outros relatos dizem que a polícia vem assumindo, ao menos até a decisão judicial determinando a liberação dos postos de distribuição, uma postura de proteção e simpatia com os manifestantes.
Apesar das pautas e da adesão irregular, é um fato que os trabalhadores de aplicativos vêm ensaiando manifestações coletivas em Goiânia desde ao menos um ano. Um marco foi uma manifestação de dezenas de motoristas em dezembro de 2016, pedindo segurança para os trabalhadores após a morte de um motorista de Uber num latrocínio em Aparecida de Goiânia. O sentido variava entre responsabilizar o Estado, pelas condições de segurança, ou a empresa Uber, por omitir-se a qualquer apoio após este “acidente de trabalho”. Em fevereiro de 2017, houve uma manifestação e paralisação de algumas horas pela redução da porcentagem cobrada pela empresa – os relatos da época estimam a adesão de centenas de condutores.
Outro marco no aumento da mobilização dos motoristas foi o debate sobre o Projeto de Lei 28/2017, que regulamentava de forma restritiva o trabalho por aplicativos. Nisto, empresa e trabalhadores estavam de acordo, e foram realizadas algumas manifestações: uma delas em 30 de setembro, em que 200 motoristas estacionaram em frente à Prefeitura de Goiânia e foram debater com o prefeito a questão da regulamentação.
Outra manifestação, realizada pelos motoristas para dar visibilidade à pauta antes do “grande dia” que seria 30 de outubro, teve um diferencial: dezenas de motoristas ficaram, de certa forma, “acampados” na Praça Cívica de Goiânia, e isso rendeu uma interessante experiência de solidariedade inter-categorias, pois os carteiros também estavam realizando um movimento reivindicatório e têm como tradição ficar “acampados” em frente à Agência Central que fica na mesma localidade. Essa última experiência é talvez mais significativa, pois possibilitou a estes trabalhadores uma experiência prática de como manter um espaço ocupado, como obter e dar solidariedade para manter a ação em curso, enfim, abriu outras possibilidades de ação que se demonstraram frutíferas e consequentes no bloqueio dos postos de gasolina e na atuação decisiva que os motoristas de Uber estão tendo na paralisação.
Mobilização empresarial, proletária, de empreendedores de si mesmos?
Existe uma espécie de senso comum na esquerda que protestos contra aumento da gasolina são “coxinhas” e têm um caráter fundamentalmente conservador. Não é sem motivo. Demandas de motoristas de carro são consideradas individualistas em contraposição ao caráter coletivo do transporte público. Proprietários de carros tendem a ter maior nível de renda que aqueles obrigados a utilizar ônibus. Por último, trata-se de uma revolta de consumidores querendo comprar, e não de trabalhadores lutando por direitos.
Além disto, existe uma ambiguidade na experiência de mobilização dos trabalhadores de aplicativos. Enquanto em alguns momentos se unem contra a empresa para reduzir sua exploração, também fazem uma luta “em defesa dos empregos” contra a regulamentação que, na verdade, é uma defesa da Uber como um negócio legítimo. Também neste protesto contra os aumentos da gasolina se misturam interesses de taxistas donos de ponto, taxistas que alugam, donos de empresas de caminhões e vans, trabalhadores que fazem bico, pois de fato há um interesse comum entre empresários e trabalhadores nesse caso. O sentido dessa mobilização, como sempre, ainda está em disputa. Mas existem alguns elementos que podem colocar os trabalhadores de aplicativo como uma tendência proletária dentro do movimento mais amplo e que pode lhe dar outro sentido.
Apesar de acharem que “não têm patrão”, por acabarem assumindo funções tipicas de empresários – como calcular o custo/benefício da jornada semanal, custos com gasolina e manutenção do carro, jornadas de trabalho, lugares para rodar com maior frequência etc.) – os motoristas de Uber na verdade têm pouquíssimo controle sobre seu processo de trabalho, fato correlato a um verdadeiro abandono das proteções básicas que as empresas prestavam aos trabalhadores em troca da sua obediência pelo período da jornada. Não são poucos os motoristas de Uber que trabalham em Goiânia de 12 a 14 horas por dia, que precisam se virar e muitas vezes são abandonados diante de conflitos com usuários do serviço e em situações que põem em risco sua própria segurança, além de terem de aceitar os preços e a taxa da Uber, não podendo negociar diretamente com os clientes. Além disso, são monitorados e avaliados pelos usuários e avisados pela Uber constantemente de que se não chegarem a determinados critérios, e não dirigirem conforme o trajeto pré-determinado, com as paradas pré-determinadas, arriscam ser bloqueados sumariamente do aplicativo, sem direito de defesa.
Essa situação de extremo controle, combinada com a ausência das proteções sociais básicas, gerou uma necessidade de solidariedade coletiva que ultrapassa a concorrência por clientes e o caráter individualizado do serviço. Os motoristas sabem que dependem uns dos outros para se defender contra clientes mais agressivos, compartilham sua localização para ficarem mais tranquilos contra suspeitas de assalto, se comunicam o tempo todo para saberem onde está havendo mais clientes e conversam, reclamam e conspiram sem qualquer monitoramento da empresa ou de supervisores. As redes construídas através das redes sociais, dos pontos de concentração habituais e dos postos de gasolina conveniados com a Uber dão um corpo sociológico a esse proletariado que, quando está dirigindo com o cliente pela cidade, existe apenas do ponto de vista econômico.
Como isso se traduz na ideologia e na prática política, no entanto, ainda é incerto. Há que acompanhar atentamente as lutas em curso, e ver que sentido tomarão. Entretanto, trata-se, talvez, de um primeiro sintoma de lutas nos aplicativos e de solidariedades inauditas que ainda estão por vir.
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