O Poder Público tentava coibir o controle do território de Salvador pelos escravos, evitando, assim, criar as condições para atos de rebeldia – que, não obstante, nunca cessaram de existir. Por Manolo

Este artigo pretende analisar a legislação escravista e as posturas municipais de Salvador do século XIX, visando encontrar convergências, pontos em comum e complementaridades entre as duas no que diz respeito ao uso do espaço urbano pela população negra escravizada em Salvador no período estudado.

A primeira hipótese que norteia este artigo é que a confluência entre estes dois ramos da produção normativa representa a tentativa, por parte do Poder Público de então, de disciplinar uma força de trabalho escrava cuja rebeldia atravessou o século sob variadas formas. Esta hipótese é reforçada pelo fato de a força de trabalho escrava nas cidades brasileiras do período colonial e imperial guardar relativa independência da fiscalização dos senhores (caso dos escravos de ganho), organizar-se territorialmente de modo concentrado e relativamente autônomo (caso dos cantos de escravos) e tentar manter ritos, línguas e costumes próprios de suas etnias de origem, fortalecendo sua própria identidade como resistência/sobrevivência à escravização.

A segunda hipótese que norteia este artigo é que, através deste disciplinamento, a aristocracia escravocrata tentou restringir cada vez mais o controle desta força de trabalho escrava sobre porções do território de Salvador, dificultando deste modo a produção de uma territorialidade própria por esta força de trabalho. Limitando seus horários e territórios de circulação (caso dos escravos de ganho), coibindo sua organização territorializada (caso dos cantos de escravos) ou disciplinando severamente, quando não proibindo expressamente, as tentativas de manutenção de ritos, línguas e costumes próprios de cada etnia (caso dos terreiros, “batuques” e “folguedos”), o Poder Público tentava coibir o controle do território de Salvador pelos escravos, evitando, assim, criar as condições para atos de rebeldia – que, não obstante, nunca cessaram de existir no período estudado.

Metodologia

Para os fins deste artigo, será feita uma análise exploratória da legislação acerca da escravidão e do negro com base em três fontes bibliográficas: (a) para a legislação imperial, foi usada a Documentação jurídica sobre o negro no Brasil 1800-1888 (índice analítico)[1]; (b) para a legislação provincial, foi usada a Legislação da província da Bahia sobre o negro: 1835-1888[2]; (c) para a legislação municipal, foi usado o Repertório de fontes sobre a escravidão existentes no Arquivo Municipal de Salvador[3].

Trata-se de fontes secundárias, de caráter catalográfico, compiladas para servir como índice de pesquisa legislativa. Nenhuma delas transcreve os textos originais das leis, decretos, regulamentos, resoluções, posturas, regulamentos, atos, instruções, cartas régias, cartas imperiais, alvarás, tratados e decisões listadas; não obstante, apresentam breve súmula de conteúdo de cada uma, permitindo acompanhar a evolução da disciplina jurídica da escravidão ao longo do tempo. Dado o caráter exploratório da pesquisa e a extensão da legislação existente em fontes primárias1, os textos originais da legislação não foram analisados; para os fins deste artigo, bastou acompanhar a evolução temática da legislação e de seus conteúdos centrais, sem necessariamente fazer esforço hermenêutico comparativo sobre o texto original das normas elencadas. Por comodidade e facilitação à leitura, sempre que uma norma jurídica for citada sem qualquer outra referência, é porque está numa das três fontes citadas; a cada citação de norma, será indicado se se trata de legislação imperial, provincial ou municipal, para facilitar a conferência posterior nas fontes estudadas.

A análise da legislação permitirá desbravar, por meio dela, os limites do comportamento permitido, tolerado, estimulado e desejado, e as fronteiras do comportamento proibido, renegado e controlado. Pelo espelho da legislação, é possível compor um quadro apto a dizer o que se esperava do escravo – e, portanto, o regime de seu disciplinamento e controle pela aristocracia escravocrata; na medida em que este disciplinamento e controle exercem-se não apenas no âmbito privado, mas também nos espaços públicos (e este aspecto é o que interessa a este artigo), é daí que resultará a compreensão acerca dos usos do espaço urbano que eram permitidos ou proibidos à população negra escravizada em Salvador.

Tendo em vista a necessidade de cruzar a legislação escravista com o uso do espaço urbano, este artigo apresentará e analisará a legislação atinente aos seguintes temas:

  1. aspectos espaciais da repressão a levantes, insurreições, rebeliões e revoltas de negros escravizados;
  2. repressão a formas autônomas de produção do espaço por negros (especialmente quilombos e terreiros, e em parte os cantos de ganhadores);
  3. circulação e permanência em espaços públicos;
  4. exercício profissional;
  5. diversões públicas (festas, folguedos etc.);
  6. higiene.

Periodização

Uma vez que o presente artigo tem como pano de fundo os conflitos sociais[4] no seio da sociedade escravista, a simples leitura das normas jurídicas sem remissão a tais conflitos seria inócua; por isto, é preciso avaliar a evolução da legislação escravista tendo em vista uma periodização pautada pela evolução dos conflitos sociais próprios da sociedade escravista brasileira. Tal periodização tem como marcos, de um lado, conflitos sociais de grande destaque no período, e de outro a emergência de variações significativas na intensidade, duração e extensão geográfica destes conflitos.

Tendo isto em vista, foi possível demarcar três períodos.

O primeiro período inicia-se com a Revolta dos Alfaiates, em 1798, e termina com a Revolta dos Malês, em 1835. O marco inicial é justificado por ser o primeiro evento político urbano no Brasil, ainda no tempo colonial, em que a escravidão foi posta em causa; justifica-se ainda mais a escolha pela participação significativa na revolta de africanos libertos, crioulos e pardos[5]. O marco final é justificado por ser o ápice de uma longa sequência de revoltas de escravos, fugas em massa, aquilombamentos e outras formas de combate mais aguerridas[6]. Entre uma e outra, a mais intensa série de insurreições escravas já vista em qualquer parte do império dos Orleans e Bragança[7].

O segundo período inicia-se com a dura repressão à Revolta dos Malês e à “revolta esquecida” de 1844[8], prossegue durante toda a hegemonia do Partido Conservador à frente do Conselho de Ministros do Império (1848-1861) e encerra-se com a curta permanência do Partido Liberal à frente da mesma instituição (1861-1868).

É comum na historiografia adotar-se o ano de 1850 como marco histórico por força da promulgação, em 4 de setembro deste ano, da Lei Imperial 581 (conhecida como Lei Eusébio de Queirós), novo marco da extinção definitiva do tráfico ilegal de escravos da África para o Brasil ainda feito às escâncaras desde a proibição imposta pela malsinada Lei Imperial de 7 de novembro de 1831, conhecida como Lei Feijó, ou “lei para inglês ver”. Esta década, entretanto, não registrou nem progressos outros na legislação escravista, nem avanços políticos no movimento abolicionista; foi, na verdade, uma década em que a tônica da política quanto aos escravos era a efetiva contenção do tráfico negreiro da África para o Brasil, sob os olhares vigilantes das gáveas inglesas[9].

Foi, na verdade, nos anos 1860 que se acumularam fatores contrários à sustentação do regime escravista: a crise econômica dos anos 1860, causada pelo declínio nos preços do café (principal pauta de exportação brasileira na época); a crise financeira de 1864; a vitória dos Estados antiescravistas na Guerra de Secessão estadunidense, com o consequente debilitamento dos Estados escravocratas (Brasil e Cuba) perante a opinião pública internacional; a Guerra do Paraguai, onde massas de recém-libertos incorporadas à tropa são tomadas pelas ideias de liberdade e insuflaram-nas entre a oficialidade; o declínio da população escrava e as migrações internas de escravos, especialmente do Norte-Nordeste, para as regiões cafeeiras; tudo isto, enfim, resultou não apenas numa cúpula ministerial favorável à abolição, mas também ao florescimento de uma opinião pública também abolicionista, e ao surgimento das primeiras associações dedicadas à propaganda anti-escravista e à coleta de donativos para compra de alforrias[10].

É igualmente o momento em que não apenas a rebelião negra contra a escravidão, afogada pela maré montante da repressão no início do período, assume ao seu final novas formas e se intensifica; é de igual modo momento do dealbar, na cena política e social, de uma classe média urbana patrocinadora de um movimento abolicionista radicalizado, promotor não só da cotização para alforrias, mas igualmente de fugas individuais e coletivas de escravos[11].

O terceiro período é marcado pelo progressivo esgarçamento das instituições escravistas entre 1868 e a abolição da escravatura, em 1888. Ainda que o gabinete liberal houvesse sido dissolvido e o debate abolicionista houvesse sido bloqueado ao nível do Estado imperial, foi exatamente esta dissolução quem acendeu na opinião pública da classe média urbana o debate abolicionista, convergente com as ações cada vez mais ousadas tanto dos escravos quanto dos clubes abolicionistas que, agora, proliferavam-se[12]. Paralelamente, as fugas, as recusas ao trabalho, os quilombos itinerantes, a libertação de escravos nos trens, as disputas com os capitães-do-mato, as rusgas dos capoeiras, todas as formas de resistência negra à escravidão – em tudo precedentes da formação da opinião pública e da ação abolicionista da classe média, que lhe era subsidiária – acirraram-se[13] até o ponto em que, algumas semanas antes da abolição, vastos setores da produção agrícola dependentes da mão-de-obra escrava estavam totalmente paralisados[14].

A abolição se dá, assim, sob o influxo do movimento abolicionista liderado pela classe média urbana; mas sem a ação decidida e resoluta de cada escravo em fuga, de cada ação de liberdade, de cada desobediência, de cada reclamação por maus-tratos, em suma, sem a ação dos negros escravizados em prol de sua própria liberdade a revolução abolicionista jamais teria acontecido[15].

Contextualização: a escravidão em meio urbano

A análise da legislação resultaria infrutífera se, de igual maneira, e tendo em vista que o estudo não abrangerá qualquer tipo de escravidão, mas um tipo específico dela, e numa só cidade, não fossem compreendidas as particularidades do tipo de escravidão em torno do qual se fará a pesquisa – a escravidão urbana.

Caráter subsidiário da escravidão urbana frente à escravidão rural

Embora a escravidão urbana e os negros escravizados nas cidades e vilas brasileiras tenham conquistado a atenção dos historiadores nas últimas duas ou três décadas, em especial pela facilidade em rastrear-lhes as vidas em fontes arquivísticas, tanto populacional quanto estruturalmente a escravidão urbana era francamente subsidiária da escravidão rural.

Populacionalmente, embora faltem dados censitários mais precisos anteriores ao censo de 1872, é fácil inferir, a julgar pelos resultados deste censo e dos que lhe seguiram, que a maioria da população brasileira era rural. Entre esta população, houve períodos inclusive em que, dada a necessidade de aristocratas escravistas de aumentar o ritmo da produção agrícola, a população escrava aumentou consideravelmente mais que a população livre[16].

Vista a questão por um viés econômico, estruturalmente a economia urbana brasileira sob o regime escravista dependia da agricultura escravista de plantagem[17]. As atividades propriamente urbanas como um todo – bancos, serviços, comércio etc. – e não somente aquelas exercidas por escravos – como certos ofícios artesanais, serviços pessoais, transporte de cargas etc. – dependiam para seu funcionamento ou dos produtos ou da renda oriundos da agricultura escravista de plantagem e de outras atividades rurais suas caudatárias. A indústria, tida pelos economistas como central para o acirramento da oposição cidade/campo, foi iniciada no país pelo menos desde a década de 1830 mediante pequenos empreendimentos, mais oficinas artesanais de grande porte, ou manufaturas, que plantas industriais propriamente ditas[18].

Entretanto, mesmo elas dependiam de uma acumulação prévia de capital para a realização dos investimentos vultosos necessários à implementação dos novos ramos produtivos industriais, de difícil obtenção à base quase única de uma economia agroexportadora escravista; somente na década de 1860 a indústria de transformação recebeu investimentos mais vultosos, e mesmo assim dependentes da agricultura escravista de plantagem; em suma, a indústria ainda não tinha força suficiente para carrear o centro gravitacional da economia brasileira do campo e da agricultura para as cidades e as atividades industriais e de serviços[19].

É forçoso reconhecer, todavia, que as cidades foram lugar importante na fase final do escravismo colonial. Nelas, um escravo em fuga poderia muito tranquilamente esconder-se em meio a seus semelhantes[20], especialmente nos cortiços[21]. Poderia também conseguir trabalho assalariado em algum dos muitos postos de trabalho então emergentes; por sinal, a ação dos clubes e sociedades abolicionistas – como o Clube do Cupim (Recife) e os caifazes (São Paulo) – resultava, pelo fato de ser a solução historicamente possível naquele momento, na inserção dos negros arrebatados à escravidão em postos de trabalho assalariado[22], constituindo, portanto, um dos meios de transição das formas de trabalho escravo para as formas de trabalho livre. Além disso, a enorme diversificação de profissões onde foi empregue a mão-de-obra escrava deu a estes negros, fossem eles africanos ou brasileiros, um espaço para o exercício de habilidades com as quais, depois de conquistada sua liberdade, tornaram-se o elemento principal na formação da classe trabalhadora brasileira. A importância evidente das cidades não implica, de modo algum, em sua centralidade na economia: tanto assim que no Brasil e no Caribe, após a cessação do tráfico negreiro e a consequente escassez de escravos, tornou-se comum – e duramente regulamentada – a transferência de escravos das cidades para os campos[23].

Sabe-se que, com a verdadeira aversão ao trabalho manual que se verificou entre os brancos e entre alguns africanos livres, os escravos ocuparam lugar central na produção econômica e na reprodução da vida social. Ou, no dizer do médico e explorador Robert Avé-Lallemant, impressionado com a operosidade dos negros escravizados em Salvador: “Tudo que corre, grita, trabalha, tudo que transporta e carrega é negro; até os cavalos dos carros na Bahia são negros”[24].

Havia escravos praticando todo tipo de ofício artesanal[25]. Não havia uma só das artes e ofícios manuais onde não se verificasse a presença de negros escravizados:

…carpinteiros, pedreiros, calceteiros, impressores, pintores de tabuletas e ornamentação, construtores de móveis e carruagens, fabricantes de ornamentos militares, de lampiões, artífices de objetos de prata, joalheiros e litógrafos […] alfaiate, sapateiro, barbeiro, cabeleleiro, curtidor, ferreiro, ferrador e outras[26].

Da mesma forma, muitos dos serviços urbanos – transporte de cargas e pessoas (neste último caso, por meio das cadeiras de arruar), venda ambulante, busca de água nos chafarizes e fontes públicas, transmissão de recados, evacuação de lixo e excrementos etc.[27] – eram prestados pelos chamados escravos de ganho, cujo regime de trabalho era muito próprio:

Havia também, para o transporte de pessoas ou de fardos, os chamados negros de ganho; pretalhões munidos sempre de rodilhas e às vezes vestidos só de tangas, prontos a acudirem aos psius de quem quisesse se utilizar de seus serviços[28].

Passavam o dia na rua alugando seus serviços com a obrigação de entregar ao senhor uma renda diária ou semanal previamente fixada, pertencendo-lhes o que sobrasse. Comumente, moravam na mesma casa do senhor, mas faziam fora suas refeições. Às vezes, tinham licença para morar em domicílio por conta própria[29].

Todo escravo de ganho que não retornasse à casa dos senhores sem o ganho do dia era severamente castigado[30]. No caso dos carregadores, seu regime de trabalho era duríssimo, pois eram obrigados a transportar fardos que mesmo bestas de carga não suportavam; dificilmente ultrapassavam os sete anos de trabalho[31], e muitos deles eram encontrados com horríveis aleijões nas pernas[32]. Isto sem falar naqueles e naquelas que eram obrigados por seus senhores, mesmo contra a lei, a mendigar ou a se prostituir[33].

O trabalho dos negros na rua permitia-lhes, apesar das dificuldades evidentes, agrupar-se em espaços publicamente reconhecidos como de tal ou qual etnia, onde aguardavam chamados para prestação de serviços; tais espaços, denominados cantos, foram fundamentais para a articulação de incontáveis atos de rebeldia negra contra a escravidão, e por isto mesmo foram duramente perseguidos e regulamentados[34] – não sem resistência, como prova a greve negra de 1857 em Salvador[35].

Tão onipresente era a mão-de-obra escrava em meio urbano que mesmo os incipientes empreendimentos industriais foram forçados, na falta de trabalho livre suficientemente disponível, a empregá-la; tal emprego, entretanto, foi parcial e tendeu a declinar ao longo do tempo[36].

Havia também a categoria dos escravos domésticos. Conquanto considerados a “aristocracia” dos negros escravizados nas cidades[37], sua vida era marcada por sevícias, maus-tratos e assassinatos[38]. A natureza doméstica de seu trabalho faz com que a análise pormenorizada de sua atuação e presença nas cidades, para os fins de um artigo voltado para a compreensão de conflitos sociais no espaço público, não seja de maior importância.

Análise da legislação

Feitos os esclarecimentos preliminares necessários, é possível, agora, passar à análise da legislação escravista aplicável em Salvador no século XIX.

Primeiro período (1798-1835)

Num ou noutro caso esporádico, as fontes legislativas consultadas obrigam a recuar aos séculos XVII e XVIII para melhor verificar a longevidade do conteúdo de posturas municipais ainda em vigor quando do início do período estudado, mas não alteram seu foco.

Neste período, iniciado com a Revolta dos Alfaiates (1798), ainda é possível registrar como lutas sociais relevantes: cinco revoltas escravas, em 1807 (onde escravos tomariam navios e fugiriam para a África), 1809 (com fugas massivas de escravos para Nazaré das Farinhas), 1814 (com participação inclusive de índios do Recôncavo), 1816 e 1822; a Revolta do Batalhão dos Periquitos (1824); duas rebeliões escravas no Cabula e a destruição do Quilombo do Orubú, em Pirajá (1826); nova revolta escrava no Cabula e em Armação (1827); três levantes de escravos (1828); levante de escravos no Centro de Salvador (1830); duas revoltas anti-lusitanas e uma revolta federalista (1831); outras revolta federalista (1832); levantes populares, sedições e ainda outra revolta federalista (1833); por fim, a Revolta dos Malês (1835), que fecha o ciclo[39].

Daí que a legislação deste período seja pródiga em controles e punições. Este primeiro período foi marcado pela tentativa de debelar as insurreições negras e controlar a população escravizada em Salvador, pois as contradições do processo independentista baiano deixaram muito evidente – não só para os historiadores como também para os contemporâneos – que os negros escravizados cedo transformaram-se num “partido” próprio, com interesses muito bem marcados. Ainda que persistissem as tradicionais rivalidades interétnicas e entre africanos e crioulos (os nascidos no Brasil), havia entre a aristocracia escravocrata o temor, renovado a cada insurreição de cativos, de uma repetição dos acontecimentos do Haiti[40].

Aspectos espaciais da repressão a levantes, insurreições, rebeliões e revoltas de negros escravizados

Embora não haja, ainda, aspectos espaciais relevantes a registrar na legislação imperial, não custa aproveitar o espaço para distinguir o que o famoso Código Penal de 1830 (Lei Imperial de 16 de dezembro de 1830) trata como conspiração, rebelião, sedição, insurreição e resistência. Conspiração (art. 107) é a simples tentativa, por vinte ou mais pessoas, de cometer crimes políticos[41], sem que tenham conseguido começar a agir publicamente. Rebelião (art. 110) é a reunião de uma ou mais povoações, que resulte em mais de vinte mil pessoas unidas, para cometer crimes políticos. Sedição (art. 111) não chega a ser propriamente uma forma de cometer crime político, pois trata da ação de vinte ou mais pessoas armadas (todas ou parte delas) para impedir posse de funcionário público ou seu exercício do emprego, ou ainda impedir a execução e cumprimento de qualquer ato ou ordem legal de autoridade legítima. Insurreição (art. 113) é, de todos, o crime que mais interessa aos fins deste artigo, pois trata de vinte ou mais escravos reunidos para obter a liberdade pela força. É o único em todos os crimes do Código Penal de 1830 em que o sujeito da ação incriminada é única e exclusivamente o negro escravizado[42], e em que ele responde pessoalmente pelo crime; em todos os outros, é o senhor quem responde pelo escravo (art. 28, 1º).

Um grupo de posturas municipais soteropolitanas de 1833, conquanto não fosse expressamente voltado à repressão de nenhuma insurreição específica, regulamentava a perseguição contra “armas proibidas”, dando especial atenção à posse de armas brancas por escravos. Uma postura de 31 de janeiro de 1833 cominava multa de 30 mil réis e oito dias de prisão para qualquer pessoa que vendesse“facas pontiagudas e punhais”, e punia com 150 açoites escravos apanhados fazendo o mesmo; o mesmo texto foi reiterado numa postura sem data. 100 açoites, segundo postura sem data, era a pena para os escravos que usassem paus ou cacetes de ponta na cidade ou nos povoados. Por outra postura municipal da mesma data, multa de 20 mil réis e oito dias de prisão eram a pena para quem “vendesse ou consertasse qualquer arma proibida para escravos”, e os escravos transgressores seriam punidos com açoites (em número não especificado pela postura); era quase o mesmo texto de uma terceira postura, sem data, segundo a qual a venda de armas “ofensivas ou defensivas” a escravos receberia a mesma pena de 30 mil réis e oito dias de prisão cominada a quem “vendesse ou fizesse, concertasse ou aguçasse” armas proibidas.

Repressão a formas autônomas de produção do espaço por negros

Já no século XVII o Título LXX das Ordenações Filipinas (1603) proibia escravos de “viver por si”, ou seja, de morar em alguma casa por conta própria.

Uma decisão imperial de 31 de maio de 1809 mandou formar companhias de capitães-do-mato para a prisão dos escravos fugidos e assalto dos quilombos. Outras duas decisões imperiais, de 22 e 30 de abril de 1813, contratava capitães-do-mato para perseguir escravos fugidos, reprimir quilombos e impedir sua formação.

A Constituição do Império (1824) erigiu o catolicismo ao status de religião de Estado em seu art. 5o, e fez pior: conquanto permitisse o “culto doméstico” das demais religiões, ou o culto “particular em casas para isso destinadas”, proibiu estas casas particulares de ter “forma alguma exterior de Templo”. Tal proibição recaiu sobre sinagogas e mesquitas, mas, para o que interessa ao escopo deste artigo, nota-se que também era aplicável aos terreiros das religiões afro-brasileiras, forma por excelência da territorialização negra[43].

Paralelamente, e ainda na esfera imperial, a Lei Imperial de 15 de outubro de 1827 determinou que os juízes de paz[44] destruíssem os quilombos e providenciassem para que não se formassem outros. Decisão imperial de 31 de outubro de 1831 distinguiu as competências das Câmaras Municipais e dos juízes de paz no combate aos quilombos.

Circulação e permanência de negros em espaços públicos

A circulação e permanência de negros em espaços públicos era objeto de severa disciplina.

Decisão imperial de 3 de janeiro de 1825 determinou que a qualquer hora, do dia ou da noite, os escravos poderiam ser revistados, e ficaria proibido aos mesmos o uso de qualquer arma de defesa, sob pena de serem castigados com açoites; que após o toque de recolher era proibido parar sem motivo nas esquinas, praças e ruas públicas, assobiar ou dar qualquer outro sinal, sendo essa proibição extensiva aos negros e homens de cor; permanecer em venda, taberna, botequim ou casa de jogo, e caso alguma pessoa livre fosse encontrada em tais condições pagaria uma multa, e se fosse escravo, seria conduzido ao calabouço e castigado com açoites; que os vendeiros e taberneiros que permitissem que grupos de pessoas parassem nas portas de deus estabelecimentos sem nada comprar, principalmente se fossem negros, seriam multados; que se ficasse comprovado que alguma venda ou taberna havia comprado de escravos objetos furtados, a mesma pagaria multa e seria fechada.

Outros que comeram o pão que o diabo amassou nas mãos da repressão imperial foram os “capoeiras”. Aqui, registra-se uma dificuldade: embora se saiba que no século XIX chamava-se “capoeira” ao praticante da arte marcial e de “capoeiragem” à própria arte marcial que hoje conhecemos como capoeira, a fonte da legislação imperial consultada diz, em nota, que “capoeiras” seriam “negros que viviam no mato e atacavam passageiros”[45]. Seriam os “capoeiras” a que a legislação se refere os equivalente brasileiros do higwayman, do brigand ou do footpad britânico, do schnapphahn alemão, do malandrin ou do voleur de grand chamin francês ou do brigante italiano? Não cabe no escopo deste artigo fazer qualquer análise etimológica mais detida sobre a questão, mas é impossível não observar a coincidência de vocábulo para distinguir as duas coisas (o praticante de capoeira e o salteador de estradas).

Decisão imperial de 31 de outubro de 1821 determinou sobre a execução de castigos corporais em praças públicas a todos os negros chamados “capoeiras”. Outra decisão imperial, de 6 de janeiro de 1822, mandou castigar com açoites os escravos capoeiras presos em flagrante delito. Os capoeiras seriam tema de decisões imperiais ainda em 28 de maio de 1824; em 30 de agosto de 1824, quando foram mandados trabalhar em obras públicas em caso de prisão em flagrante de desordem; em 9 de outubro de 1824, quando a pena de trabalhos forçados foi circunscrita a três meses, cominada com castigo de duzentos açoites; em 27 de julho de 1831, quando foi ordenado à Junta Policial propor medidas para a captura e punição dos capoeiras e malfeitores; em 17 de abril de 1834, quando nova postura regulamentou os procedimentos relativos aos pretos e capoeiras encontrados depois do anoitecer em com armas ou em desordens.

Em 29 de novembro de 1831, decisão imperial deu poderes às rondas municipais permanentes para entrar em tabernas, lojas, açougues, estalagens e outros locais públicos para prender criminosos e dispersar reuniões de escravos.

Exercício profissional por negros

Em 1716 posturas municipais soteropolitanas proibiam a lavagem de roupas nas bicas das cidades. Em 15 de novembro de 1785 foram regulamentadas, em duas posturas diferentes, as atividades das ganhadeiras de peixe e dos cantos de negros ao ganho.

Em 10 de março de 1800 um alvará imperial disciplinou o emprego de escravos, negros ou pardos como marinheiros a serviço dos navios de comércio. Pouco depois, em 22 de novembro de 1809, uma decisão imperial determinou que os donos de navios de comércio não permitissem a entrada de escravos em suas tripulações, pois não poderiam reivindicá-los nos portos da Europa caso fugissem.

Decreto imperial de 25 de junho de 1831 proibiu a admissão de escravos como trabalhadores ou oficiais das artes necessárias nas estações públicas da Bahia.

Diversões públicas de negros

A prodigalidade com que a Câmara de Salvador esmiuçou as proibições às diversões dos negros no século XIX é notável, e tem raízes antigas; já o Título LXX das Ordenações Filipinas (1603) proibia – ao menos no entorno de Lisboa – “ajuntamentos de escravos”, bailes e “tangeres seus” (ou seja, que tocassem instrumentos), nem “de dia, nem de noite, em dias de Festas, nem pelas semanas”, sob pena de serem presos.

A polícia de costumes era assunto corrente nas normas municipais soteropolitanas do período. Entre estas, destacam-se pela severidade as posturas disciplinadoras dos “batuques”, dos ajuntamentos e das “algazarras” de escravos. O “uso de atabaques” na cidade já era proibido desde 1672, e em 1716 nova postura incluiu as marimbas no rol de instrumentos proibidos. A sequência dezenovista começa com uma postura de 25 de fevereiro de 1831, proibidora, mais uma vez, de “batuques” e “danças”, e também agora dos “ajuntamentos tumultuários e suspeitos de escravos” em qualquer hora e lugar, cominando pena de oito dias de prisão aos desobedientes.

Uma postura municipal sem data punia com multa de oito mil réis ou oito dias de prisão os donos de tavernas, botequins e similares que “consentisse algazarra e demora dos escravos”; ela reitera, embora seu texto seja menos completo, postura soteropolitana de 25 de fevereiro de 1831 que, embora igualmente proibitiva das mesmas algazarras e demoras, e também dos “jogos não permitidos por lei”, fosse mais branda na pena de prisão, cominando-a a apenas quatro dias. Outra postura soteropolitana, também sem data, apenava com 10 mil réis e oito dias de prisão os donos de casas de jogos ou seus caixeiros que consentissem a participação de escravos.

Higiene

Em 1716 posturas municipais exigiam que a limpeza das casas fosse feita durante o dia, e não à noite. O mesmo conteúdo das posturas de 1716 foi reiterado numa postura de 25 de fevereiro de 1831 quanto ao “despejo das casas”, inovando apenas na exigência de uso de “vasilhas cobertas” e na responsabilização do senhor quando o escravo fosse apanhado fazendo o “despejo” a desoras.

Uma postura municipal sem data determinou onde os escravos mortos seriam enterrados, sob pena de seis mil réis para os desobedientes; outra postura, igualmente sem data, faculta a qualquer pessoa do povo prender escravo que fizesse sepultamento de forma diferente daquela determinada pelo conselho, com pena de seis mil réis para os desobedientes. As duas apenas reiteram os termos de duas posturas de 12 de fevereiro de 1710; embora certamente os locais dos ritos fúnebres houvessem mudado (as proximidades do Dique do Tororó e de outras fontes públicas, por exemplo, como está em postura de 1785), o rigor é o mesmo.

Segundo período (1835-1868)

A Revolta dos Malês, e a sanha persecutória anti-negro que se lhe seguiu, marca o fim de um ciclo. Até aqui, a ação política dos negros em Salvador e seu entorno tomou a forma de insurreições, de aquilombamentos, de fugas maciças, da participação nas lutas sociais e agitações políticas de seu tempo; a partir daqui, as formas de luta serão outras.

Não cabe no escopo deste artigo investigar as razões da mudança no perfil da ação política negra; cabe apenas registrá-la, porque foi real. Basta ver as grandes lutas sociais deste período em Salvador: a Cemiterada (1836); a Sabinada (1837-1838); a “revolta esquecida” de 1844[46]; a greve dos ganhadores de 1857 (REIS, 1993); a Revolta das Recolhidas (1858), estopim quase involuntário do movimento contra a carestia conhecido como “carne sem osso, farinha sem caroço”[47]; todas estas lutas, exceto pela Sabinada, se dão nos marcos do sistema escravista, sem que esteja em seu horizonte mudanças políticas mais profundas.

Ao mesmo tempo em que mudam as formas de ação dos escravos, é ao final deste período, como visto, que iniciam as ações abolicionistas.

Aspectos espaciais da repressão a levantes, insurreições, rebeliões e revoltas de negros escravizados

Em 04 de março de 1835 o presidente da província da Bahia recebeu, por meio de decisão imperial, autorização para deportar ou desterrrar escravos envolvidos na Revolta dos Malês, mesmo quando declarados inocentes por falta de provas, e também para aplicar outras medidas: obrigar os senhores dos escravos envolvidos na insurreição a assinar termo de segurança em que afiancem sua futura conduta; impedir, por meio das “mais enérgicas providências”

A Lei Provincial no 1, de 28 de março de 1835, como instrumento da repressão à Revolta dos Malês, suspendeu por trinta dias a inviolabilidade de domicílio para que “se dessem buscas em todas as casas” e “se prendessem todos os suspeitos”.

A Lei Provincial no 9, de 13 de maio de 1835, aprofundou aquilo que, fossem os escravos cidadãos, seria a decretação de um estado de sítio: autorizou a expulsão da província dos suspeitos de envolvimento com a insurreição; estendeu esta permissão a qualquer estrangeiro; instituiu “imposição anual” de 10$000 para todo africano forro residente na província; criou uma espécie de delação premiada ao isentar da imposição os forros que, imediatamente após a comprovação de conspiração insurrecional em curso, possuíssem documento do chefe de polícia da comarca certificando-os como delatores; garantiu a imediata libertação dos escravos que também o fizessem, assegurando indenização a seus donos; criou uma matrícula geral de todos os africanos, por ordem numérica, com declaração de nome, nação, idade provável, morada e ocupação, a ser renovada anualmente em janeiro pelos juízes de paz; instituiu pena de prisão (simples ou com trabalho, a depender de certas hipóteses especificadas na lei) para os que se subtraíssem a esta matrícula; proibiu aos africanos a aquisição de bens de raiz, e também o aluguel ou arrendamento de casas a africanos que não apresentassem autorização especial para este fim, dada por juiz de paz; e por fim, instituiu multa de 50$000 aos senhores de “africanos boçais” que se mostrassem negligentes em sua instrução “nos mistérios da religião cristã” e em batizá-los.

Não cabe no espaço deste artigo investigar detalhadamente a eficácia da proibição à aquisição de bens de raiz ou da proibição ao arrendamento ou aluguel de casas a negros; importa é saber que foi concebido e transformado em lei um severo obstáculo à territorialização negra em Salvador, vez que, como já visto, por lei os negros não podiam morar em casa alguma sozinhos.

Permaneceu, como se pode ver em duas posturas de 17 de junho de 1844, a proibição às “armas ilícitas”: a primeira proibiu a venda de faca e punhal, muito provavelmente para escravos, pois a pena cominada é “para o escravo”, de 30 mil réis ou 150 açoites; a segunda proibiu que se confeccionasse armas ilícitas, sob pena, mais uma vez “para o escravo”, de 20 mil réis ou 100 açoites.

Repressão a formas autônomas de produção do espaço por negros

O Regulamento Imperial 120, de 31 de janeiro de 1842, determinou que era atribuição policial dos juízes de paz fazer destruir os quilombos, e providenciar para que os mesmos não se formassem.

Em 16 de abril de 1844 a Câmara Municipal de Salvador obrigou os donos de terra a desfazer os quilombos nela existentes, sob pena de 20 mil réis.

Em 18 de setembro de 1850 foi promulgada a famosa Lei Imperial 601, conhecida como a Lei de Terras, e também como Lei das Terras Devolutas[48]. Comumente se diz que esta lei proibiu o acesso de negros à terra[49], o que é parcialmente verdadeiro; seria mais apropriado dizer que esta lei dificultou enormemente o acesso dos negros às terras devolutas. Não há, no texto, qualquer proibição expressão à posse ou propriedade de terras por negros. Embora seu art. 1º afirme ser proibido adquirir terras devolutas por outro meio que não seja o de compra, não estende este regime às demais terras do país. Adicionalmente, seu artigo 2º revalidou as sesmarias cultivadas ou com moradores; e seu art. 5º legitimou as posses mansas e pacíficas, adquiridas por ocupação primária ou havidas do primeiro ocupante, desde que estivessem cultivadas ou reunissem a lavoura e a moradia do posseiro que cumprisse uma série de exigências burocráticas. Ocorre que são estas exigências burocráticas, e também o elevado preço da terra para compra, os reais obstáculos ao acesso do negro à terra: sendo as sesmarias concessões passadas pela Coroa portuguesa ainda no tempo da colônia, nunca seriam passadas a um escravo; da mesma forma, nos violentos tempos da formação dos latifúndios rurais, a posse de terras dependeria muito das boas relações com os representantes locais da aristocracia rural, dando assim início à longa e perniciosa correlação entre posse precária e origem étnica. Não bastassem estes problemas, o art. 8º estabelecia que os possuidores que deixarem de medir as terras no prazo determinado pelo governo, seriam reputados como “caídos em comisso” (ou seja, sujeitos a sanções), e por isso perderiam o direito a serem documentalmente confirmados em suas posses, cabendo-lhes apenas o que estivesse cultivado e sendo considerado devoluto todo o restante[50].

Apesar de a Lei de Terras falar repetidamente em “cultura”, “cultivados” etc., dando a entender que voltava-se apenas a propriedades rurais, não se pode esquecer que o reduzido espaço urbano soteropolitano fora construído sobre vastas glebas e sesmarias, sendo a enfiteuse a principal forma de acesso à terra no período[51]. Por conseguinte, instituiu-se mais um obstáculo ao acesso dos negros à terra urbana.

Circulação e permanência de negros em espaços públicos

O Regulamento Imperial 120, de 31 de janeiro de 1842, determinou que os escravos e africanos livres, ou libertos, ainda que estivessem em companhia de seus senhores ou amos, seriam obrigados a apresentar passaporte, salvo em alguns casos específicos.

Em 25 de abril de 1843 foi editada postura que obrigava as pessoas que vendessem e comprassem escravos a realizar tais atividades em armazéns situados em casa térrea ou loja, sob pena de trinta mil réis e oito dias de prisão em caso de descumprimento.

Em 06 de junho de 1850, saiu postura proibindo o trânsito de cargas pelos passeios públicos, multando em 4 mil réis ou prendendo por dois dias os senhores de escravos ou os donos de animais que o fizessem. No mesmo dia, saiu outra postura proibindo escravos africanos de circular pelas ruas à noite sem “bilhete de seu senhor em que declarasse onde ia, o seu nome e procedência”, cuja desobediência resultaria em mil réis de multa ou quatro dias de prisão para o escravo apanhado sem tal documento.

Já outro grupo de posturas municipais sem data, curiosamente, regulamenta o trânsito com animais de montaria na cidade, em seus subúrbios e povoados. São especialmente proibidos o galope e o esquipado. Trata-se do mesmo conteúdo de postura municipal datada de 17 de junho de 1844, que desta vez pena de 20 mil réis ou 50 açoites para o escravo infrator.

Exercício profissional por negros

Logo após a Revolta dos Malês, empresários locais justificaram a abertura de suas empresas por meio da manipulação do temor então reinante entre a população branca e especialmente entre a aristocracia escravista. Veja-se, por exemplo, a Resolução Provincial 10, de 26 de maio de 1835, em que a Assembleia Provincial da Bahia autorizou Manoel José de Almeida Couto a formar companhia de abertura de poços ou fontes artesianos na Bahia inteira; a nota explicativa diz que o pedido feito por este senhor justificava-se, entre outros motivos, por tornar “menos necessária a massa de escravos empregados na condução de barris e potes de fontes de água”[52]. Justificativa semelhante encontra-se na Resolução 12, de 2 de junho de 1835, concessora de autorização e privilégio exclusivo ao visconde de Pedra Branca para a formação de uma companhia de transportes para interligar a Cidade Alta e a Cidade Baixa; a nota explicativa diz ter sido justificada a concessão pela “urgência de enviar para o campo e a lavoura a volumosa quantidade de escravos necessária à condução de objetos em uma grande cidade”[53].

O alvo, num e noutro caso, eram os negros ganhadores, muito bem estabelecidos em cantos espalhados pela cidade, de onde aguardavam serviço[54].

A Lei Provincial 14, de 2 de junho de 1835 instituiu novas regras para seu trabalho, que foi, a partir de então, sujeito à fiscalização e policiamento de capatazias; estes capatazes, escolhidos entre os próprios ganhadores, receberiam um vencimento razoável para os capatazes, a ser pago pelos próprio ganhadores integrantes da capatazia. A mesma lei obrigou todos os ganhadores a se matricular, indicando sua moradia, os distritos a que pertenciam, o nome de seus senhores (quando fossem escravos) e a qualidade e gênero de serviço prestado. Aos que não se matriculassem, a lei impôs multa de 15$000 rs., dos quais 10$000 seriam destinados à Caixa Provincial e 5$000 seriam repassados ao denunciante. Esta lei foi revogada pela Resolução 60, de 25 de abril de 1837; ainda que a regulamentação do trabalho fosse a questão em pauta, tratou-se de mais um capítulo da disputa entre os ganhadores e a aristocracia escravocrata pelo uso do espaço urbano, que desembocaria na greve de 1857 já mencionada. Entre uma e outra lei, um regulamento de 14 de abril de 1836, derivado da Lei Provincial 9, estabeleceu detalhadamente o funcionamento das capatazias, incluindo as capatazias do mar, responsáveis pelo controle do trabalho dos escravos nos saveiros e alvarengas.

Não sendo possível qualquer controle ainda mais rígido sobre o trabalho ou o uso do espaço pelos ganhadores8, em 11 de maio de 1859, foi editada curiosa postura municipal determinando que “qualquer indivíduo livre ou escravo” empregado em serviço de carregamento “estaria vestido”, sob pena de quatro mil réis e dois dias de prisão.

Em 1846 um regulamento provincial de 31 de outubro obrigou o chefe de polícia a fornecer ao presidente da província, até o último dia de abril de cada ano, o arrolamento de todos os africanos livres, de ambos os sexos, que mercadejassem em Salvador, com declaração de seus nomes, moradias e gênero de comércio de que se ocupassem. Por este regulamento, todos os africanos livres que mercadejassem seriam obrigados, todo mês de julho, a tirar licença na Mesa de Rendas Provinciais, pagando por isso a taxa de 10$000. Regulamento provincial posterior, de 21 de fevereiro de 1849, isentou do pagamento de licença aqueles cujo negócio fosse tão pequeno que não pudesse dar lucro de 100$000 ao ano.

Em 1851 um regulamento provincial de 15 de dezembro deu início à cobrança de imposto de 10$000 de todo africano livre, liberto ou escravo que, como mestre, oficial ou aprendiz, exercesse ofício mecânico de qualquer natureza, isentando de pagamento os que pertencessem à lavoura e a fábricas da província e nelas efetivamente trabalhassem, e também os africanos que usassem seus ofícios unicamente a serviço de seus senhores e suas famílias, sem tenda, oficina ou exercício externo.

Já em 1855, regulamento provincial de 19 de fevereiro decretou que nenhum escravo se matricularia como marinheiro na Capitania do Porto, nem seria por ela liberado para sair da província, sem que apresentasse certidão da Mesa de Rendas Provinciais provando ter pago licença profissional.

Teve início, assim, a cobrança pela província da Bahia de taxas de licença para o exercício profissional por africanos livres, libertos ou escravos, dividindo-as em taxas provinciais e taxas destinadas às câmaras municipais. Nas fontes consultadas, as licenças para Salvador são referenciadas em poucos anos, o que abre duas alternativas a uma pesquisa posterior em fontes primárias:

  1. As licenças soteropolitanas passaram a ser tratadas pela própria Câmara Municipal, sem depender da Assembleia Provincial;
  2. As licenças provinciais suplantaram as licenças municipais em Salvador.

O quadro das licenças para exercício profissional estabelecidas pela Assembleia Provincial da Bahia para o período 1846-1867 está descrito na Tabela 1.

Tabela 1: Valor da licença profissional provincial entre 1846 e 1867, por ano e profissão (valores em mil-réis)

Fonte: elaboração do autor, a partir de dados disponíveis em BAHIA. Governo da Bahia. Fundação Cultural do Estado da Bahia. Diretoria de Bibliotecas Públicas. Legislação da província da Bahia sobre o negro: 1835-1888. Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia/Diretoria de Bibliotecas Públicas, 1996.

Em 1858, regulamento provincial de 8 de maio de 1858 permitiu o emprego de africanos livres a serviço da província no serviço de iluminação pública, mediante diária de $100 e gratificação mensal de $20 por acendedor. Outro regulamento, de 10 de dezembro de 1860, reduziu a quarenta e quatro o número de africanos livres empregues em tal serviço, sendo que oito deles permaneceriam no serviço interno e poderiam substituir os do serviço externo em qualquer eventualidade, e estabelecendo corte de diária para os que não desempenhassem suas obrigações.

Diversões públicas de negros

Repetem-se as proibições habituais. Veja-se estas duas posturas datadas de 17 de junho de 1844: a primeira proibiu proprietários de casas comerciais de permitirem jogos ilícitos e a permanência de escravos nelas por mais tempo que o imprescindível, e a segunda proibiu “batuques e danças”, independentemente do lugar e da hora, sob pena de oito dias de prisão em caso de descumprimento.

É como se, diante da impossibilidade de conter as festividades negras, os edis soteropolitanos ritualizassem a reiteração de proibições inócuas, como quem presta contas de um serviço que sabe impossível de cumprir.

Higiene

Em 17 de junho de 1844 foi editada postura municipal reiteradora de antigo costume soteropolitano, registrado pelo menos desde o século XVII, determinando o lançamento do lixo residencial ao mar, sob pena de multa de dois mil réis ou 24h de prisão, sendo os senhores responsáveis por seus escravos.

Em 11 de maio de 1859, foi editada postura determinando punição corporal para escravos apanhados jogando “entulho”.

Terceiro período (1868-1888)

Nas fontes consultadas, datam de 1859 as posturas municipais soteropolitanas mais recentes acerca do uso de espaço público por escravos; deve partir do pressuposto de que, exceto quando revogadas, as posturas do período anterior seguem vigentes. De modo semelhante, a produção de legislação imperial incidente sobre qualquer dos elementos analisados neste artigo deixa de existir, mas salvo nos casos de revogação expressa as normas jurídicas anteriores seguiam em vigor.

No plano provincial, entretanto, ainda havia produção legislativa relevante para os fins deste artigo. A Resolução 1.250,de 28 de junho de 1872, finalmente revogou a draconiana Lei 9, de 13 de maio de 1835, e levantou aquilo que, fossem os escravos cidadãos, seria um verdadeiro estado de sítio.

No que diz respeito às licenças profissionais provinciais, é notável que, a partir de 1870, apenas oficiais mecânicos, ganhadores e marinheiros ficaram sujeitos ao pagamento de taxas, sendo que os ganhadores deixaram de ser cobrados pelas licenças provinciais em 1882. A Tabela 2 lista os valores das licenças para o período 1868-1888.

Tabela 2: Valor da licença profissional provincial entre 1868 e 1888, por ano e profissão (valores em mil-réis)

Fonte: elaboração do autor, a partir de dados disponíveis em BAHIA. Governo da Bahia. Fundação Cultural do Estado da Bahia. Diretoria de Bibliotecas Públicas. Legislação da província da Bahia sobre o negro: 1835-1888. Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia/Diretoria de Bibliotecas Públicas, 1996.

Teriam saído vencedores os alvarengueiros, remadores, ganhadores, mercadores e carregadores de cadeira em sua luta por exercer livremente sua profissão no espaço público, sem necessidade de matricular-se em capatazias, de prestar contas junto à Mesa de Rendas Provinciais e de pagar licenças? A simples análise de normas jurídicas não permite dizê-lo, e uma análise pormenorizada da questão foge ao escopo deste artigo.

Em 1877, um ato provincial de 14 de julho discriminou o porte das fábricas de charutos, cigarros e sabão para fins de arrecadação tributária, classificando-as mediante o número de oficiais aprendizes ou trabalhadores, livres ou escravos; é sintoma da inserção dos escravos na incipiente indústria baiana. As mesmas considerações seria repetidas em atos provinciais de 10 de outubro de 1878 e 6 de setembro de 1879.

Ao fim e ao cabo, a escravidão encontrava-se a esta altura desmoralizada enquanto instituição, e em franca desagregação enquanto regime produtivo. A legislação, ou melhor dizendo sua ausência, reflete esta decadência.

Conclusões

A análise da legislação mostra como variou o controle e a disciplina exercidas sobre os escravos em Salvador. Se houve num primeiro momento relativa permissividade quanto ao uso do espaço público pelos negros, a sucessão de revoltas foi rápido entendida como resultante do domínio de fato que os negros exerciam sobre as ruas da cidade; a consequência foi a construção de um arcabouço institucional que mantivesse os negros (escravos ou libertos) sob constante vigilância, e que impusesse severos limites à sua territorialização.

Para que a mão-de-obra escrava fosse alquebrada em sua vontade própria, tolhida em seu livre-arbítrio, desgarrada de laços sociais potencialmente subversivos da ordem; para que fosse, enfim, subjugada e condenada ao trabalho compulsório, à etérea norma jurídica ainda seria preciso juntar os maus-tratos de iaiá, o tacão de ioiô e o chicote do feitor; o juízo iníquo do juiz de paz, do chefe de polícia, do juiz e do desembargador, todos contra a “malta desordeira” de origem africana; e por último a coronha, a baioneta e a bala da tropa (se é da polícia, da guarda nacional ou do exército, para o negro rebelde tanto faz como tanto fez).

Guardadas as devidas proporções e respeitadas as enormes diferenças entre o século XIX e o presente, há uma inquietante semelhança entre este processo e o que vivem hoje, no século XXI, os negros nas grandes cidades; os “baculejos”, o “rapa”, o clima de terror nos bairros de maioria negra, tudo isto pode encontrar neste processo de subjugação dos negros à escravidão um antecessor remoto, cujos traços e rastros marcam como látegos.

Notas

[1] BAHIA. Governo da Bahia. Secretaria da Cultura. Departamento de Bibliotecas. Documentação jurídica sobre o negro no Brasil 1800-1888: índice analítico. [S.l.]: Secretaria da Cultura/DEPAB, 1988.

[2] BAHIA. Governo da Bahia. Fundação Cultural do Estado da Bahia. Diretoria de Bibliotecas Públicas. Legislação da província da Bahia sobre o negro: 1835-1888. Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia/Diretoria de Bibliotecas Públicas, 1996.

[3] SALVADOR. Prefeitura Municipal. Fundação Gregório de Matos. Repertório de fontes sobre a escravidão existentes no Arquivo Público Municipal de Salvador: as posturas (1631/1889). Salvador: Fundação Gregório de Matos, 1988.

[4] Conflitos sociais, neste artigo, são “uma categoria genérica, que engloba todas as formas de manifestação social das contradições” que atravessam a sociedade. Os conflitos podem ou não transformar-se em lutas sociais, que são “apenas uma das categorias dos conflitos, constituindo movimen-tos colectivos, capazes de empregar eventualmente a violência e dotados de um programa de reivindicações sistemático”. Cf. BERNARDO, João. Poder e dinheiro – do poder pessoal ao Estado impessoal no regime senhorial, séculos V-XV: Parte II – diacronia: conflitos sociais do século V ao século XIV. Porto: Afrontamento, 1997, p. 10.

[5] TAVARES, Luiz Henrique Dias. História da Bahia. 11a ed.. ed. São Paulo/Salvador: EdUNESP/EdUFBA, 2008; _____. Bahia, 1798. Salvador: EdUFBA, 2012.

[6] MOURA, Clóvis. Rebeliões da senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas. 3a. ed. São Paulo: LECH, 1981; REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835. São Paulo: Companhia das Letras, 2004; SAES, Décio. A formação do Estado burguês no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.

[7] REIS, João José. Slave rebellion in Brazil: Bahia, 1807-1835. Luso-Brazilian Review, v. 25, n. 1, p. 111–144, summer 1988.

[8] MOURA, Clóvis. Rebeliões…, p 161-162.

[9] BETHELL, Leslie. A abolição do comércio brasileiro de escravos: a Grã-Bretanha, o Brasil e a questão do comércio de escravos, 1807-1869. Brasília: Conselho Editorial do Senado Federal, 2002.

[10] GORENDER, Jacob. A escravidão reabilitada. São Paulo: Ática, 1990, p. 141-143.

[11] SAES, Décio. A formação…, p 267-336.

[12] CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990; GORENDER, Jacob. A escravidão…

[13] COSTA, Emília Viotti da. A abolição. São Paulo: EdUNESP, 2008, p. 111-125.

[14] CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravidão no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978; FRAGA, Walter. Encruzilhadas da liberdade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.

[15] BRITO, Jailton Lima. A abolição na Bahia: 1870-1888. Salvador: EdUFBA, 2003; CHALHOUB, Sidney. Visões…; COSTA, Emília Viotti da. A abolição…; FRAGA, Walter. Encruzilhadas…; GORENDER, Jacob. A escravidão…; LUNA, Luiz. O negro na luta contra a escravidão. Rio de Janeiro: Cátedra, 1976;; MAESTRI, Mário. A revolução abolicionista no Brasil. Revista (In)Visível, n. 1, p. 40–48, out. 2012.; SAES, Décio. A formação…,

[16] GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2010, p. 300.

[17] Foi adotado aqui, para descrever a forma de organização da produção escravista, o resgate vocabular feito por Jacob Gorender em substituição à palavra plantation ou às expressões “plantação” ou “grande lavoura”. Cf. Ibid., p. 119, nota 2

[18] SZMRECSÁNY, Tamás; LAPA, José Roberto do Amaral (org.). História econômica da independência e do Império. 2ª ed. São Paulo: EdUSP/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/HUCITEC, 2002.

[19] SUZIGAN, Wilson. Indústria brasileira: origem e desenvolvimento. São Paulo: Brasiliense, 1986.

[20] FARIAS, Juliana Barreto et al. Cidades negras: africanos, crioulos e espaços urbanos no Brasil escravista do século XIX. São Paulo: Alameda, 2006, p. 25-44 .

[21] CHALHOUB, Sidney. Visões…, p. 233-248.

[22] SAES, Décio. A formação…, p. 277-282.

[23] GORENDER, Jacob. O escravismo…, p. 503.

[24] ANDRADE, Maria José de Souza. A mão de obra escrava em Salvador: 1811 – 1860. São Paulo: Corrupio, 1988, p. 27.

[25] REIS, Lysie. A liberdade que vem do ofício: práticas sociais e cultura dos artífices da Bahia do século XIX. Salvador: EdUFBA, 2012, p. 69-135.

[26] GORENDER, Jacob. O escravismo…, p. 496.

[27] FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. 14 a . ed. São Paulo: Global, 2003, p. 632-635.

[28] FREYRE, Gilberto. Sobrados…, p. 633.

[29] GORENDER, Jacob. O escravismo…, p. 497.

[30] FREYRE, Gilberto. Sobrados…, p. 633.

[31] Ibid., p. 633-634.

[32] GORENDER, Jacob. O escravismo…, p. 499.

[33] Ibid., p. 500-502.

[34] REIS, João José. De olho no canto: trabalho de rua na Bahia na véspera da abolição. Afro-Ásia, CEAO/EdUFBA, Salvador, n. 24, p. 199–242, 2000; _____. Rebeilão…

[35] REIS, João José. A greve negra de 1857 na Bahia. Revista USP, n. 18, p. 6–29, 1993.

[36] GORENDER, Jacob. O escravismo…, p. 502-505.

[37] Ibid., p. 506.

[38] Ibid., p. 508.

[39] REIS, João José. A elite baiana face aos movimentos sociais, Bahia: 1824-1840. Revista de História da USP, n. 108, p. 341–384, 1976; _____. Slave rebellion…; _____. La révolte haoussa de Bahia en 1807: résistance et contrôle des esclaves au Brésil. Annales. Histoire, Sciences Sociales, v. 61, n. 2, p. 383–418, mar.-abr. 2006; _____> . “Dono da terra chegou, cento e cincoenta acabou?”: Notas sobre resistência e controle dos escravos na Bahia, que recebeu a família real em 1808. Revista de História da USP, n. 79, p. 106–117, set.-nov. 2008; SCHWARTZ, Stuart B. Cantos e quilombos numa conspiração de escravos haussás – Bahia, 1814. In: REIS, João Jose; GOMES, Flávio dos Santos (org.). Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 373–406.

[40] GRAHAM, Richard. Alimentar a cidade: das vendedoras de rua à reforma liberal (Salvador, 1780-1860). São Paulo: Companhia das Letras, 2013; REIS, João José; SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravocrata. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

[41] Trata-se, mais especificamente, dos seguintes: a) Tentar diretamente, e por fatos, destruir a independência ou a integridade do Império (art. 68); b) Provocar diretamente, e por fatos, uma nação estrangeira, a declarar a guerra ao Império, se tal declaração se verificar, e se seguir a guerra (art. 69); c) Tentar diretamente, e por fatos, destruir a Constituição Política do Império, ou a forma do Governo estabelecida (art. 85); d) Opor-se alguém diretamente, e por fatos, à pronta execução dos Decretos, ou Cartas de convocação da Assembleia Geral, expedidas pelo Imperador, ou pelo Senado, nos casos da Constituição, artigo quarenta e sete, parágrafos terceiro e quarto (art. 91); e) Opor-se alguém diretamente, e por fatos, à reunião da Assembleia Geral Legislativa em sessão ordinária ou extraordinária; ou à reunião extraordinária do Senado nos casos do artigo quarenta e sete, parágrafos terceiro e quarto (art. 92).

[42] Ou, melhor dizendo, em que o escravo é o principal sujeito incriminado; o Código Penal de 1830 incrimina, acessoriamente, brancos ou libertos que tomassem parte na insurreição, mas fazendo derivar suas penas daquelas cominadas aos escravos, o que demonstra o caráter subsidiário de sua ação frente à ação dos cativos insurrectos.

[43] SODRÉ, Muniz. O terreiro e a cidade: a forma social negro-brasileira. Petrópolis: Vozes, .1988

[44] Os juízes de paz – magistrados leigos eletivos, herdeiros dos juízes de vintena e dos almotacés coloniais, responsáveis por conciliações ante-judiciais e processos de pequena monta – ainda têm existência prevista na Constituição Federal de 1988, mas, diferentemente do que se dá nos dias de hoje, durante o século XIX eles efetivamente exerceram judicatura. Cf. RODYCZ, Wilson Carlos. O juiz de paz imperial: uma experiência de magistratura leiga e eletiva no brasil. Revista Justiça e História, v. 3, n. 5, p. 35–72, 2003

[45] BAHIA. Documentação…, p. 101.

[46] MOURA, Clóvis. Rebeliões…, p. 161-162.

[47] REIS, João José; AGUIAR, Márcia Gabriela D. de. “Carne sem osso, farinha sem caroço”: o motim de 1858 contra a carestia na Bahia. Revista de História da USP, n. 135, p. 133–160, jul.-dez. 1996

[48] “Terra devoluta” é o nome que se dá à terra que nunca pertenceu a um particular, mesmo estando ocupada. Com a tomada de terras pela Coroa portuguesa, largos terrenos foram repassados a colonizadores mediante concessões de sesmarias e cartas de data, estando estes donatários obrigados a medi-las, demarcá-las e cultivá-las, sob pena de voltarem as terras à Coroa portuguesa. As terras que não foram repassadas, e aquelas cuja posse voltou à Coroa portuguesa por falta de medição, demarcação e cultivo, seriam “devolvidas” ao domínio público (daí o nome “devolutas”). Cf. GARCEZ, Angelina; MACHADO, Hermano. Leis de terra do Estado da Bahia. 2º ed. Salvador: Secretaria da Agricultura – SEAGRI, Coordenação do Desenvolvimento Agrário – CDA, Associação para o Desenvolvimento da Agronomia – DESAGRO, Faculdade Rui Barbosa – FRB, 2001.

[49] GARCEZ, Angelina; MACHADO, Hermano. Leis de terra…

[50] GARCEZ, Angelina; MACHADO, Hermano. Leis de terra…, p. 23, 43-44, 473-496.

[51] CEDURB – COMPANHIA ESTADUAL DE DESENVOLVIMENTO URBANO. A Grande Salvador: posse e uso da terra. Salvador: Governo do Estado da Bahia, 1978.

[52] BAHIA. Legislação da província…, p. 105.

[53] Ibid., p. 106.

[54] COSTA, Ana de Lourdes Ribeiro da. Ekabó! Trabalho escravo, condições de moradia e reordenamento urbano em Salvador no século XIX. Dissertação (Mestrado) — Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1989.

1 COMENTÁRIO

  1. “A natureza doméstica de seu trabalho faz com que a análise pormenorizada de sua atuação e presença nas cidades, para os fins de um artigo voltado para a compreensão de conflitos sociais no espaço público, não seja de maior importância”. Havia muitos trabalhadores domésticos em Salvador que realizavam atividades fora das residências. Faziam compras, conduziam charretes, faziam jardinagem, cuidavam da logística de água, mantimentos, excrementos etc. O trabalho doméstico era muito utilizado também em comércios, como em hotéis (os “moços de hotel”), padarias (“moços de padaria” ou pasteleiros) e vendas, pois muitos estabelecimentos comerciais funcionavam na casa dos proprietários (em sobrados, por exemplo). Estas funções do trabalhador doméstico no espaço externo da residência certamente eram mais destinadas aos homens, e às mulheres havia uma tentativa maior de confinamento e controle do trabalho no interior das residências (ex. amas de leite e amas secas, a quem reservaram em Salvador – decada de 1870 –
    normativas específicas para controle de seus trabalhos, diferenciando-as dos demais trabalhadores e trabalhadoras domésticas). Uma quantidade expressiva de trabalhadoras e trabalhadores domésticos mantinham relações matrimoniais e familiares (e outras mais) com aqueles que executavam trabalhos mais voltados ao espaço público de Salvador. É importante citar esta forte relação entre “os de dentro” e “os de fora”, entre os do espaço público e do privado, pois certamente as insurreições se deram a partir de discursos ocultos que permeavam ambos os “espaços”, que se retroalimentavam de informações, redes de apoio, de planejamento, de afetividades etc. Difícil inferir que não houve uma relevante participação dos trabalhadores domésticos nestas insurreições nos espaços públicos. Talvez dizer que não seja de maior importância seja um pouco pesado, mas entendo das dificuldades metodológicas de se articular num estudo como se davam essas relações com trabalhadores domésticos de forma mais pormenorizada. (: Só mais uma coisa: capoeira não é arte marcial. Parabéns pelo artigo!

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