A barra de cores nessa nação não vai ser quebrada cedo. Mesmo que ela caia em alguns lugares, o insulto do que resta dela será sentido de maneira ainda mais profunda pelos que ainda são livres apenas pela metade. W.E.B. Du Bois
Nota do Tradutor: Publicado originalmente em Abril de 1953 na revista Monthly Review, esse texto marca a reflexão contínua de W.E.B. Du Bois sobre a questão racial nos Estados Unidos em relação com a crise do capitalismo, continuando a discussão sobre o mesmo tema que ele iniciou 20 anos antes com seu artigo “O marxismo e a questão do negro”. Nesse texto, a reflexão é aprofundada a ponto de incluir uma discussão da possibilidade de superação da segregação racial nos EUA e sua implicação em termos da luta de classes no país. Com notas críticas para auxiliar na compreensão do texto.
Quão “livre” era o preto liberto de 1863? Ele não tinha roupa, casa, ferramentas ou terra. Thaddeus Stevens implorou ao governo que lhe desse um pouco da terra que seu sangue havia fertilizado por 244 anos. A nação recusou. Frederick Douglass e Charles Sumner reivindicaram o direito de voto para os negros. Nesse caso, a nação cedeu, mas somente porque os votos dos negros poderiam forçar o Sul a conformar-se às demandas do Grande Mercado em relação à legislação tarifária e ao controle da dívida. Isso feito, a nação tirou o direito de voto dos negros, junto com o dos brancos mais pobres.
Um desenvolvimento econômico fantástico se seguiu. No Sul a terra era rica e o clima ameno. Havia sol e chuva para grãos, frutas e fibras. Haviam recursos naturais em abundância nos rios, costas e florestas. No seio da terra, o carvão, o ferro, o petróleo, o enxofre e o sal. Tudo isso ou já pertencia ou o governo praticamente deu aos latifundiários e capitalistas. Somente uma pequena parte disso foi para os trabalhadores, pretos ou brancos.
Era necessário capital para desenvolver esse paraíso econômico. O governo forneceu muito desse capital de graça para os latifundiários e empregadores. Ferrovias foram subsidiadas, rios e costas aperfeiçoados; a riqueza privada escapou facilmente aos impostos. O Norte, rico em legislação tarifária, controle monetário e força de trabalho imigrante barata, derramou capital privado no Sul. Quando a força de trabalho sulista perdeu metade de seus votantes, os latifundiários e capitalistas encheram as legislaturas estaduais e o Congresso com funcionários da exploração. Isso deu todas as cadeiras importantes para o Sul sob os Democratas, e uma grande influência sob os Republicanos. Durante a Primeira Guerra Mundial, uma grande parte do programa de treinamento militar estava localizada no Sul, e o governo pagou os latifundiários, comerciantes e contratadores interessados em milhões de dólares – uma performance que seria repetida na Segunda Guerra. Durante a depressão, a maior parte do dinheiro de alívio pago no Sul foi para os proprietários, não para os trabalhadores.
Durante e após a Segunda Guerra, a indústria sulista acelerou o passo. O governo federal derramou bilhões em subsídios no Sul. Washington estava particularmente generosa em entregar licenças para a construção de novas fábricas, e proprietários de poços de petróleo receberam descontos fiscais pelo esgotamento do petróleo que Deus deu à nação; e hoje eles buscam se apoderar dos 80 bilhões de dólares em petróleo que possuímos.
Acima de tudo, o Sul contava com e se vangloriava de possuir mares e mares, os maiores desse tipo no mundo civilizado, de uma força de trabalho barata, dócil e não-organizada, composta tanto de trabalhadores qualificados quanto sem qualificação. Essa massa de trabalhadores era historicamente dividida entre pretos e brancos, cada um odiando e temendo ao outro a um nível que as pessoas que não têm familiaridade com a região mal podem imaginar. A força de trabalho sulista foi depois dividida entre grupos organizados e não organizados; e finalmente, toda a força de trabalho americana foi dividida pela caça aos vermelhos e pelo rótulo de “comunismo”[1].
Eis um paraíso para os investidores, e que foi ainda aperfeiçoado pelo governo. As leis trabalhistas no Sul eram frouxas e não eram implementadas com o devido cuidado à sua aplicação; cidades de empresas surgiram sob total controle corporativo; a polícia e as milícias eram organizadas contra os trabalhadores. Ódio e medo racial, bem como táticas de fura-greve eram deliberadamente encorajados de forma a fazer que qualquer reclamação ou tentativa de realizar melhorias pudesse acabar em revolta[2], linchamento ou guerra racial.
O resultado foi surpreendente. Em 1919, o Sul representava menos de um quinto da nossa produção de minérios; em 1946 a proporção havia evoluído para quase a metade. O valor das manufaturas no Sul subiu, em 30 anos, de um décimo para um quinto do total nacional. Muitas das indústrias consideradas novas e promissoras estão rumando para o Sul; desde a Segunda Guerra Mundial, nada menos que 11 bilhões de dólares foram investidos lá em novas plantas industriais. O Sudeste já tem 80% dos moinhos de algodão da nação e virtualmente toda a nova indústria química de fibras. Está se desenhando moinhos de lã, e a indústria têxtil logo seguirá. Moinhos de papel, polpa e plástico representam centenas de milhões em novos investimentos. O Sudoeste é, talvez, o império químico que mais rápido cresce no mundo.
Esse novo Sul, revivendo seu passado escravista, acredita que sua prosperidade, de hoje e de amanhã, será melhor construída se for em cima da pobreza e da ignorância de suas massas paupérrimas e desemancipadas[3] – e esses trabalhadores mal pagos agora incluem não apenas os negros, mas os mexicanos, portorriquenhos, e os brancos sem qualificação e não organizados. Progresso através da pobreza é o credo desse novo Sul.
Por muito tempo, o proletário branco do Norte viveu sua vida totalmente cego ao que estava acontecendo no Sul. Ele acordou quando o trabalhador preto sulista, desprovido de qualquer qualificação, desembarcou no Norte após a Primeira Guerra Mundial, e ele o recebeu com revoltas. De qualquer forma, lentamente o trabalhador preto foi sendo integrado aos sindicatos, exceto aqueles em cujos ofícios ele não tinha qualificação e não tinha nenhuma chance de aprendê-la. Um exemplo desses eram os sindicatos têxteis. Eles excluíam os negros. Foi necessário muito tempo até eles entenderem que a atitude que mantinham em relação aos negros era perigosa. Se os salários dos negros eram baixos no Sul, o que isso tinha a ver com os trabalhadores brancos da Nova Inglaterra, não é mesmo? Hoje o homem sindicalizado percebe que ele tinha, sim, a ver com isso. As fábricas estão se mudando da Nova Inglaterra e do Norte para o Sul. Cem mil trabalhadores têxteis estão inativos. Isso ilustra um paradoxo do capitalismo: no Sul os trabalhadores são muito pobres para comprar os tecidos de que precisam; ao mesmo tempo, o maquinário pode fazer mais tecidos do que seus donos podem vender aos preços que eles demandam.
Os salários no Sul são 20% mais baixos do que no Norte, e os salários dos negros são pelo menos 20% mais baixos do que os dos brancos, uma dádiva do National Industrial Recovery Act[4]. Essa discrepância salarial entre Norte e Sul representa um incremento no lucro de 4 a 5 bilhões de dólares por ano. Não é de se espantar que a população negra no Sul rural decresceu em 50 mil na última década, ou que o número de negros no Norte cresceu em 55%. De 9 milhões de proletários industriais no Sul, menos de 3 milhões são sindicalizados. Ano passado 40 mil membros da CIO Textile Workers Unions, que exclui negros, desembarcaram no Sul, e gastaram 1.250.000 dólares em cinco semanas. Eles perderam: seus membros passaram de 20 a 15% dos trabalhadores empregados. Os carpetbaggers hoje são as grandes corporações nortistas que possuem a nova indústria sulista, e os scalawags são os políticos sulistas que ele mandam para as legislaturas estaduais e para o Congresso[5].
O esforço organizado da indústria americana para usurpar o governo supera qualquer outro na história moderna, mesmo aquele de Adolf Hitler, de quem nossos industriais aprenderam a prática. Do uso da psicologia para divulgar a verdade passou-se à organização das notícias de forma a guiar a opinião pública e a, deliberadamente, confundi-la através da publicidade e propaganda científica. Isso levou, em nossos dias, à supressão da verdade, omissão de fatos, má interpretação de notícias, e falsidade deliberada em larga escala. O controle capitalista se estendeu à massa dos livros e periódicos, à organização e distribuição das notícias, ao rádio, cinema e à televisão. Isso tornou possível estrangular a democracia, distorcer a educação e falir o sistema judiciário em larga escala. Esse processo só pode ser contido através do conhecimento público do que esse governo pela propaganda está fazendo, e como.
Na nação como um todo nós temos pleno emprego e salários altos para os trabalhadores mais qualificados, mas esse estado de coisas é mantido pela produção de armas e munições, que rapidamente se deteriora em valor, e nós as descartamos e pagamos por elas com impostos que reduzem os altos salários, isso para não falar dos altíssimos preços. Por quanto tempo podemos manter esse carrossel? [6][7]
O que os negros americanos devem dizer a essa situação? Essa pergunta levanta uma outra: qual é a verdadeira natureza desse grupo hoje?
Existem aproximadamente 15 milhões de pessoas que se sabe ter linhagem negra nesse país; dois terços desses estão nos estados ex-escravistas, um pouco menos de um terço estão no Norte, e 500 mil estão no extremo Oeste. Essa distribuição marca uma mudança notável em relação ao passado recente: em 1860, nove décimos dos negros estavam no Sul escravista; em 1900, haviam apenas 900 mil negros no Norte.
Nosso grupo não é homogêneo e está em processo de mudança acelerada. Predominantemente rural em 1900, ele é hoje principalmente urbano. Em 1940, 7 milhões de negros nos Estados Unidos viviam em fazendas e 6 milhões e meio em cidades. Dez anos depois, 6 milhões estavam nas fazendas e 9 milhões na cidade! Essa migração em larga escala, é claro, cria grandes tensões na vida social e familiar.
Os negros são fortemente integrados à indústria da nação, mas o caráter dessa integração está mudando rapidamente. No começo éramos predominantemente trabalhadores rurais, hoje 83% estão em ocupações não-agrícolas e somente 17% nas fazendas. Do primeiro grupo, 40% são criados[8] e 19% trabalhadores sem nenhuma qualificação; trabalhadores qualificados e semi-qualificados representam 30%. Um pouco mais que um décimo da população negra está nos negócios ou no funcionalismo.
Esse cenário indica um grupo de pessoas pobres, especialmente aqueles que permanecem no Sul, onde o salário médio é de aproximadamente mil dólares por ano. O trabalhador rural sulista sem qualificação é ainda mais pobre. Por exemplo, na Carolina do Sul, aproximadamente metade dos negros nas fazendas ganham menos que quinhentos dólares por ano. Os brancos sulistas têm um salário médio de dois mil dólares, e os brancos nortistas, três mil dólares.
A maioria dos negros americanos compõem uma massa de ignorantes. Talvez dois terços podem ler e escrever, se acreditarmos nas estatísticas preliminares, menos confiáveis que o relatório censitário, que aponta 11% de analfabetismo. Isso é uma consequência natural do sistema escolar negro: pobre e segregado. No Sul, os negros adultos possuíram em média metade dos anos escolares que os brancos adultos. A maioria dos adultos de cor no Norte foram educados no Sul, o que fica evidente na execução das tarefas do dia a dia.
Nós só podemos especular a proporção da população negra que atingiu um status de classe média ou alta. Algumas pesquisas indicam que, em cidades como Nova Iorque e Chicago, algo em torno de 7 ou 10% das famílias negras possuem rendas maiores que cinco mil dólares por ano, e 20% recebem entre 3 mil e 5 mil dólares; enquanto algo entre 5 ou 10% estão nas favelas, ganhando menos que mil dólares. Por conta da desemancipação contínua no Sul, apenas 40% dos negros sulistas pode votar; no Norte, por outro lado, os negros manejam poder político e ocupam alguns cargos importantes.
Qual será, portanto, a atitude desse grupo dominante em relação à atual crise capitalista na América? De maneira geral, eles pensam como capitalistas: acreditam na necessidade de “fazer dinheiro”, salvar poupanças e investir. Quando eles contratam trabalhadores eles os exploram da mesma forma que seus vizinhos brancos. Nos negócios, como o de seguros, eles empregam os mesmos métodos que as empresas brancas de seguros, utilizando-se mesmo da discriminação racial. O latifundiário de cor não é diferente do latifundiário branco. Muitas fortunas negras, como as brancas, foram ganhadas a partir de atividades antissociais como os jogos de azar.
Os negros americanos, da mesma forma que os brancos, estão sujeitos à propaganda massiva pela qual o monopólio da organização e distribuição de notícias, a propriedade concentrada de rádio, cinema e televisão, e o controle financeiro sobre as publicações, fazem o governo democrático praticamente impossível hoje, uma vez que negam ao homem médio o conhecimento da verdade. Os negros são ainda repelidos pelo costume de chamar qualquer agitação pelos direitos dos negros de “comunismo”. Isso causou algumas reversões súbitas do julgamento que se faz de negros em grandes cargos, mas principalmente, isso torna o homem preto médio suspeito, e essa suspeita pode aumentar.
Hoje, qualquer líder negro que queira testemunhar a posição “livre e igual” dos negros na América consegue uma passagem grátis para a Ásia, Europa ou África, sem a menor dificuldade com os documentos. Mesmo que ele não vá fazê-lo, mas também não vá testemunhar o contrário, uma série de privilégios (incluindo bolsas de estudo) lhe são oferecidas.
Alguns líderes negros que têm muito a perder em propriedade, crédito ou reputação se entregaram ao pânico; dois autores de cor, em edições recentes de seus livros, retiraram as referências que faziam a Paul Robeson e a mim, com o objetivo de acalmar os caçadores de bruxas. Muito tempo e reflexão de intelectuais desorientados têm sido devotados no sentido de privar os negros americanos de uma liderança natural, ou de assustá-los para que fiquem quietos pela ameaça do encarceramento, perda de trabalho, ou o simples rótulo de comunista. As universidades negras estão especialmente silenciadas e influenciadas por fundos levantados pelo Grande Mercado e pelas visitas de destacados capitalistas. Seus cursos de Sociologia, Economia e História são cuidadosamente vigiados.
De qualquer forma, esse tipo de supressão e de censura não resolve nada; somente complica a situação. Por algum tempo, pode privar os negros de alguns de seus líderes mais ricos e melhor treinados, mas, tirando isso, a barra de cores não vai aliviar para a massa do grupo. A barra pode se afrouxar. Negros ricos podem viajar com menos dor de cabeça; eles podem se hospedar em hotéis mais caros, comer em restaurantes mais caros; podem passar a ser aceitos em teatros e cinemas no Norte e nos estados de fronteira. Além disso, graças à lei e aos custos crescentes, o muro da segregação nas escolas pode ser posto abaixo. Mas com tudo isso, o que resta? A barra de cores nessa nação não vai ser quebrada cedo. Mesmo que ela caia em alguns lugares, o insulto do que resta dela será sentido de maneira ainda mais profunda pelos que ainda são livres apenas pela metade[9][10].
Quando o sistema de castas finalmente for totalmente destruído, os negros serão divididos em diferentes classes sociais de maneira ainda mais acentuada, e a maior parte deles será parte da classe trabalhadora dos Estados Unidos e do mundo, e com certeza irá se aproximar do socialismo.
Mas, enquanto o sistema permanece, os líderes negros estão ligados ao seu próprio grupo. Esse grupo, apesar das diferenças de classe em propriedade, renda, educação e tipo de trabalho, ainda está ligado por uma certa unidade que convencionou-se chamar de racial, mas que é na realidade cultural. Ela possui uma arte, uma literatura e uma forma complexa de laços de parentesco. Negros se casam uns com os outros de forma quase exclusiva e vivem, em grande parte, nos mesmos bairros. Eles se informam sobre si mesmos e sobre a África e as Índias Ocidentais a partir exclusivamente de uns 200 semanários e de várias revistas que também têm uma interpretação especial dos fatos em relação a este grupo. Esses periódicos, para serem melhor vistos e atrair patrocinadores brancos, estão se tornando cada vez mais tímidos e suprimindo certas notícias; no entanto, eles não podem se tornar muito tímidos ou irão perder seus leitores negros.
O grupo negro é continuamente empurrado a fazer experimentos socialistas; as igrejas o tentam na recreação e no alívio; as ordens fraternas a experienciam nos seguros; as fraternidades dão bolsas; houve tentativas de montar cooperativas de consumidores. Com o tempo, esse grupo, com qualquer aumento da pressão, pode se tornar uma verdadeira escola de socialismo.
Um negro de talento, educação e dinheiro pode não viver num gueto negro; pode não frequentar uma igreja negra, e pode receber brancos em casa e à mesa. Com menor frequência, mas tanto agora como antes, seus filhos e amigos podem se casar com pessoas brancas. Ele pode ser eleito a um cargo público com votos de brancos e pode ser lembrado na imprensa sem ser cuidadosamente designado “de cor”. Mas casos como esses serão exceções. De maneira geral, o negro educado e bem de vida americano está firmemente ligado ao seu poderoso grupo. Suas memórias são memórias da opressão, do insulto, das repressões. Ele se alegra das vitórias dos negros. Ele não pode romper completamente com a igreja negra e os votos dos negros serão sua principal força eleitoral. A sua família irá casar principalmente com negros, e os negros constituirão o grosso de seus amigos e conhecidos. Consequentemente, não importa quanto ele seja autocentrado, ele não será capaz de evitar exercer alguma liderança sobre o grupo do qual ele faz parte, não só pela atração intrínseca mas também pela força extrínseca.
No mundo branco ele não será membro de nenhuma igreja ou clube social; ele não será nomeado a nenhum cargo fora de distritos negros. Ele poderá ser aceito em determinados bairros, mas não será bem recebido. Sua recepção nos hotéis, restaurantes e entretenimentos públicos no Norte vão variar em cada lugar. Mas no Sul e nos estados de borda ele será quase invariavelmente excluído. Se ele viaja pela nação em seu veículo, a maioria dos motéis e pousadas não irão aceitá-lo. Assim sendo, em sua atuação como líder e como pensador social, ou ele considera o futuro de sua raça, ou ele estará negligenciando a si mesmo e à sua família.
O que quero considerar nesse artigo é a questão do lugar crítico que esse grupo segregado (os negros) irá ocupar na medida em que a crise do capitalismo nos Estados Unidos se desenvolva. Essa crise se tornará ainda mais séria do que já é se a liderança de um décimo da nação falhar em suas responsabilidades[11]. Essa crise decorre do fato de que esta nação, sob o controle do Grande Mercado, está teimosamente tentando, desde a Primeira Guerra Mundial, desafiar o óbvio desenvolvimento histórico do mundo, está tentando se opor ao socialismo de Estado. O grupo negro, no presente, está longe de ser revolucionário. No lugar disso, carrega a culpa de, até agora, ter cedido à pressão e se curvado em humildade fatal, quando a resistência e a retaliação teriam sido melhores não somente para os negros como também para seus próprios opressores.
O que os negros americanos responderão ao desafio que é colocado pelo socialismo? Qual será, para eles, o papel que deve ser jogado pelo Estado na indústria e na economia, no futuro? O negro deve perceber que até agora o seu avanço dependeu mais da ação federal do que da autonomia dos estados ou da iniciativa individual. A ação federal o emancipou da escravidão e é sua única esperança para deter os linchamentos, decretar um Fair Empolyment Pratices Committe[12] e conseguir justiça nos tribunais.
Mas, para muito além disso, está a inevitável relação entre as pessoas de cor nos Estados Unidos e os povos de cor na América, África, Ásia e no mundo. Quando uma grande nação como a União Soviética não somente se recusa a desenhar a linha de cores mas não consegue sequer conceber tal barbarismo, e diante do preconceito de cor que praticamente toda nação branca na Europa e na América do Norte pratica – o que podemos, o que devemos os negros pensar? Quando a China seguiu o caminho do comunismo o impacto na raça negra foi tremendo, e não adianta gritar ou espernear que isso não vai mudar. A Rússia ensinou aos seus camponeses como ler e escrever em uma geração. Os Estados Unidos abandonam um terço dos negros ao analfabetismo após 90 anos de um esforço meia boca[13]. Se o mundo negro gradualmente concluir que o socialismo é a única resposta possível à linha de cores, a luta dos povos de cor do mundo irá adquirir um caráter socialista e os americanos pretos irão necessariamente marchar ao seu lado. Eles não irão exatamente liderar, mas serão empurrados pela sua própria gente.
Os Estados Unidos, com a sua estrutura social atual, não podem abolir a linha de cores por mais que prometam fazê-lo. Não podem parar as injustiças cometidas nos tribunais contra pessoas de cor. Acima de tudo, não podem parar a exploração dos trabalhadores pretos pelo capital branco, especialmente no novo Sul[14]. A América do Norte Branca, além do impulso de uma economia sólida, está conduzindo o povo preto em direção ao socialismo persistentemente. São os Estados Unidos que estão se esforçando ao máximo para escravizar a Ásia e a África, e os americanos negros educados e bem-sucedidos estão sendo informados disso, assim como qualquer um. Eles podem demorar a reagir; eles podem permanecer em um sinistro silêncio por algum tempo. Mas no final, se essa pressão continuar, eles se juntarão à marcha pela emancipação econômica, porque de outra forma eles também não podem ser livres.
Notas
[1] Escrito em 1953, esse texto é marcado pelo contexto do Macartismo, política de Estado que o governo dos EUA implementou entre os anos de 1950 e 1957, e que consistia numa perseguição aos comunistas e na investigação contra intelectuais de destaque sobre os quais pairasse a suspeita de serem comunistas, sendo o caso mais célebre o do cineasta Charlie Chaplin. O período é nomeado em referência ao senador Joseph McCarthy, que defendeu a política e conduziu ele próprio inquéritos. Também se destacam as investigações realizadas pelo Comitê de Atividades Antiamericanas e pelo FBI, sob a direção de J. Edgar Hoover. Além disso, o macartismo também vem sendo classificado por historiadores e cientistas sociais como um fenômeno cultural, e o próprio texto de Du Bois dá elementos para apoiar essa tese.
[2] O termo “revolta”, aqui, marca as revoltas violentas de trabalhadores brancos contra trabalhadores negros, algo parecido com os pogrom’s que aconteciam na Rússia contra os judeus antes da Revolução de Outubro, ou os ataques a estabelecimentos judaicos que tomaram lugar na Alemanha pouco antes e após a tomada do poder pelos nazistas.
[3] A desemancipação ou disfranchisement é o ato pelo qual um governante ou julgamento retira de uma pessoa seu direito de voto. Nos Estados Unidos, muitos estados sulistas utilizaram-se de medidas do tipo para impedir aos negros de se registrar como eleitores e efetivamente votar, após a abolição da escravidão em 1863. É a esse processo que Du Bois se refere acima quando fala que “a força de trabalho sulista perdeu metade de seus votantes”.
[4] O National Industry Recovery Act criou a Administração de Recuperação Nacional, desenvolvida pelo presidente Roosevelt e sua equipe ministerial. Permitia que como indústrias criassem códigos de competição justos, estabelecendo uma renda mínima e também um máximo de horas a serem trabalhadas. Na argumentação de W.E.B Du Bois, a implementação desse programa na época do New Deal levou à discrepância entre brancos e pretos.
[5] O sentido desse trecho pode parecer obscuro ao leitor lusófono, uma vez que está recheado de referências compartilhadas pelo autor e seu público-alvo à história estadunidense. Durante a guerra civil norte-americana, o Partido Republicano era composto de, basicamente, três grupos: os negros libertos, os scalawags, brancos sulistas que apoiavam o partido, e os carpetbaggers, pessoas que haviam acabado de chegar do Norte. O que o trecho implica é que os “carpetbaggers” em 1953 não eram mais os trabalhadores nortistas, cujos salários altos os impediam de brigar por emprego no Sul, mas os grandes capitalistas, atraídos pelas vantagens oferecidas pelo “paraíso para investidores” sulista. Os “scalawags” seriam os políticos sulistas que essa burguesia nortista, bem como os latifundiários locais, colocavam a seu serviço nas legislaturas estaduais e no Congresso.
[6] Esse trecho mostra que o autor estudou o livro 3 d’O Capital, ou, pelo menos, que leu material que era nele baseado em seus estudos sobre a crise do capitalismo nos EUA. Ao que tudo indica, para Du Bois o pleno emprego e os altos salários, concentrados especialmente na indústria de armamentos e munições, evidenciava que o ciclo econômico chegava ao fim: a composição orgânica do capital (a relação entre o capital investido em maquinário e em força de trabalho) havia se tornado tão alta que a taxa de lucro dos capitalistas estaria tendendo a zero e, eventualmente, chegaria a travar a própria acumulação capitalista, exigindo uma queima de capital e um reinício do ciclo econômico. É isso, provavelmente, que se insinua com a pergunta: “Por quanto tempo podemos manter esse carrossel?”. O momento que a literatura marxista, com a qual o autor dialoga, chama de crise é justamente o verificado por ele: o pleno emprego, os salários altos, e a taxa de lucro tendendo a zero, ameaçando perigosamente o próprio futuro da acumulação capitalista. O momento posterior, de destruição do maquinário, demissão e repressão dos trabalhadores, arrocho salarial etc. é chamado por essa literatura de “saída da crise”, mas também apelidado à boca pequena pelos trabalhadores de “a nossa crise, que não é a deles”.
[7] Talvez a argumentação sutil de Du Bois passe desapercebida por algumas pessoas. As armas, diferente das sacas de café (para usar um exemplo que os brasileiros conhecem), são descartadas na crise de uma maneira coerente com sua função original: ou seja, descartar armas significa usá-las, fomentar guerras civis ou fazer a guerra contra outros países.
Roxa Luxemburgo separa a reprodução social capitalista em 4 departamentos: o departamento 1, os meios de produção; o departamento 2, os meios de reprodução dos trabalhadores; o departamento 3, os meios de luxo; e o departamento 4, os meios de destruição, onde se incluem as armas e as munições, as bombas atômicas ou não. Toda mercadoria possui valor de uso e valor de troca, mas o valor de uso das mercadorias do departamento 4 permite ao mesmo tempo a queima de capital (e de vidas humanas, de cidades inteiras, de animais e plantas…).
Enquanto Du Bois escrevia essas linhas, os Estados Unidos lutavam na Guerra da Coreia com o objetivo de derrubar o governo revolucionário lá estabelecido, apoiando uma ditadura militar que a contrarrevolução estabeleceu no Sul da península. Che Guevara, que em 1960 visitou a Coreia do Norte, declarou que ela “saiu da guerra sem uma indústria em pé, sem uma casa em pé, até sem animais” e que uma “orgia de morte” se abateu sobre o país na medida em que, sem ter o que destruir, os pilotos norte-americanos se divertiam matando gado e destruindo plantações (Cf. Che Guevara, “Informe de uma viagem aos países socialistas”).
[8] Trabalhadores domésticos.
[9] Na época em que o texto foi escrito, vigorava nos EUA a segregação racial baseada nas leis Jim Crow, que estabelecia que os locais públicos, como teatros, escolas, e até trens e ônibus deviam ter instalações separadas para brancos e para negros. No presente artigo, o autor refere-se à segregação racial com diferentes termos, como “linha de cores” (cf. nota 10) e “sistema de casta”.
[10] A barra ou linha de cores é um conceito sociológico cunhado por Frederick Douglass e desenvolvido por Du Bois que na década de 30 acreditava que, quanto mais escuro é o tom de pele, mais racismo e opressão se acometerão sobre o indivíduo. No seu texto de 1933 “O marxismo e a questão do negro”, o conceito é utilizado de forma a explicar como a segregação racial pode servir para alguns grupos oprimidos “subirem nas costas” do proletariado preto.
Em 1952, após visitar o Gueto de Varsóvia, o autor faz uma reflexão crítica e esboça algumas reservas em relação ao conceito. Ele escreve: “O resultado dessas três visitas, e particularmente da minha visita ao Gueto de Varsóvia, foi não tanto uma maior compreensão da questão judaica no mundo mas uma compreensão completa e real da questão negra. Em primeiro lugar, na minha cabeça a questão da escravidão, emancipação e casta nos Estados Unidos não era mais uma coisa separada e única como eu acreditei por muito tempo. Não era nem sequer apenas uma questão de cor e características físicas e raciais, o que foi particularmente difícil para eu aprender, já que durante toda a vida a linha de cores foi uma causa real e efetiva de miséria”. [Cf. Du Bois, “The Negro and the Warsaw Ghetto”].
Dessa forma, ao escrever o presente artigo em 1953, o conceito já estava suficientemente modificado a ponto de tornar-se quase um sinônimo do sistema de castas raciais que imperava nos Estados Unidos. No entanto, o conceito ainda mantém um pouco do seu sentido sociológico original na medida em que o autor discute a linha de cores a nível mundial e o socialismo como possível resposta a ela.
[11] Por um décimo da população entenda-se a população negra, que representa um pouco mais que 10% da população estadunidense. O sentido do trecho é o de cobrar as lideranças negras (que são caracterizadas ao longo do artigo) das suas responsabilidades em relação à situação da comunidade negra no contexto da crise do capital. O trecho, e o artigo como um todo, são marcados por essa preocupação e essa cobrança em relação ás lideranças do povo preto.
[12] Esse comitê foi criado em 1941 por Roosevelt e consistia em um meio de aplicar a Ordem Executiva 8802, que bania práticas discriminatórias no emprego de trabalhadores.
[13] Ou seja, desde a abolição da escravidão, em 1863.
[14] Em relação à capacidade do autor de captar as tendências do movimento histórico que se desenrolava diante de seus olhos, podemos dizer que o artigo é bastante satisfatório nesse quesito. Alguns intelectuais críticos estadunidenses têm apontado para a persistência do sistema de segregação racial apesar da sua abolição formal em 1964 (11 anos após Du Bois escrever seu artigo). É o caso da advogada negra Michelle Alexander, cujo livro “The New Jim Crow” (2010) acaba de receber tradução para o português com o título de “A nova segregação: racismo e encarceramento em massa” (Boitempo, 2017).
Traduzido por João Gilberto Walmsley Melato.