Esse texto não entra na tradição de boa parte dos militantes da cidade de falar das suas experiências prestando contas à cena ou fazendo propaganda de si mesmos para disputar com as outras correntes. Somos trabalhadores que estamos nos arriscando nos organizar fora dos espaços confortáveis e esperados pela militância de esquerda para conseguir criar novas possibilidades. Queremos conversar com outros trabalhadores que também se sentem sem meios de fazer política independente. Para que isso seja possível, estamos recontando o caminho das pedras que nos propusemos trilhar para tentar construir essa alternativa.
Fazer da espera um acontecimento
O aumento da tarifa do transporte coletivo da cidade mais uma vez mexeu com a vida da população. Em resposta, os trabalhadores começaram a mexer com a tranquilidade das empresas.
No dia 23 de janeiro, quarta-feira, data da fatídica elevação do preço, ocorreu em um ponto de ônibus uma assembleia popular pautando o assunto. Logo no início (17h) já era possível observar as viaturas da Polícia Militar, que garantiriam a segurança do evento — fato que surpreendeu a população. Munidos de um microfone e suspeitas caixas de som, trabalhadores, estudantes e moradores da região saudaram a presença da Polícia Militar e dos supervisores operacionais das empresas — lendas urbanas que aparecem apenas quando há no ar algum indício de revolta popular.
Em uma tarde singular na vida de todos que estavam presentes, os usuários do transporte coletivo da região avaliaram, através de muitos relatos e reivindicações, o maravilhoso serviço que o estado, o município e as empresas lhes oferecem — inclusive em relação às linhas de conexão gratuitas. Para os céticos de plantão, sobrou o espanto ao ver cinco ônibus, da linha de ligação mais aguardada, passar seis vezes em duas horas, acontecimento que já é considerado um milagre sem precedentes na região.
Os populares se manifestaram de várias formas. Foi criada no momento maior de lotação a Câmara Deliberativa do Ponto que tinha pelo menos 6 vezes mais integrantes que a câmara que deliberou sobre o aumento, e nessa câmara popular se deliberou por unanimidade contra o aumento três vezes.
Também foi passado um “Listão da Indignação”, em que foram recolhidos os nomes e contatos de todos que estavam fartos com o infeliz cotidiano proporcionado pelo consórcio empresarial.
Os moradores vinham falar com as pessoas que estavam cuidando do som para comunicar demandas e fazer denúncias, alguns até tomando o microfone para falar. Há de se destacar um trabalhador que foi denunciar que o ônibus só estava passando rápido por causa do protesto e foi deixado para trás pelo motorista por ter feito a denúncia, tendo que esperar outro ônibus. Durante a espera, o trabalhador participou da assembleia popular.
Essa foi a dinâmica dessa forma de ação que desenvolvemos: aos poucos, o tempo de espera e a passividade do ponto foram se tornando um momento de agitação, de participação, de dar o troco. Essencial para isso foi o fato das pessoas organizando a ação terem uma identificação clara com as pessoas que ali estavam como trabalhadores e pessoas que vivem na região. Durante o debate, os organizadores enfatizaram a importância da experiência dessas pessoas em contraponto aos gestores das empresas, ao invés de afirmar um saber “militante” de “pregadores para as massas”.
Cabe comentar um pouco mais sobre esse ponto. Para alcançar esse objetivo foi fundamental repensar a estética da linguagem utilizada nos chamativos iniciais que convocavam a realização do espaço de decisão popular. A estratégia discursiva que adotamos, conforme averiguávamos as minúcias de uma assembleia no ponto de ônibus, foi se desviar da retórica engessada, repleta de chavões e conceitos tradicionais usados pelo “militante profissional”. O ambiente exigiu irreverência e dinamicidade. Assim, nossas intervenções no microfone passaram a apontar de forma jocosa a crítica situação do transporte coletivo. Vimos também a necessidade de, mesmo com o microfone, conversar individualmente com os trabalhadores, tudo com o intuito de romper certo estranhamento inicial e deixá-los confortáveis a apresentar suas demandas — principalmente as locais, outro ponto importante — naquela câmara inusitada que serviria de canalizadora de indignação. Tais caminhos podem ser relevantes no desenvolvimento de novas práticas de agitação.
Vale também lembrar do trabalho de panfletagem realizado antes de tudo. Quando fomos de casa a casa no bairro da principal linha de ônibus, tivemos contato com inúmeros moradores que apresentavam suas pautas locais e demonstravam solidariedade (oferecendo água, pedindo panfleto para distribuir) ao saber que um grupo de trabalhadores se empenhava, numa tarde de sábado, em publicizar uma assembleia pautando o transporte coletivo. Esse contato mais íntimo, sem dúvida, foi fundamental para criar um clima para a assembleia e para sabermos o que dizer e como dizer para construir um sentimento em comum com esses trabalhadores.
O que queríamos com isso?
É inegável que o aumento da passagem do transporte coletivo é uma pauta que mobiliza os trabalhadores da cidade. Quer dizer: mobiliza a sua indignação. São interpelados pela imprensa que vai entrevistá-los, pelos estudantes que se manifestam nas ruas centrais da cidade e nos terminais e, quando perguntados, têm opiniões fortes. Nos locais de trabalho cria-se um clima de agitação e revolta toda vez que se comenta o assunto e permite construir conversas que não seriam possíveis em outros momentos.
Porém, esses trabalhadores e trabalhadoras não costumam ser convocados como sujeitos políticos principais dessa luta. Pede-se deles (e é uma situação cômoda para alguns trabalhadores) o papel de apoiadores passivos dos “bravos estudantes” ou “dos jovens”. Apesar disso, é o trabalhador que tem o ponto cortado quando o ônibus atrasa por problema da empresa ou por um protesto, é ele que fica desempregado porque o patrão não quer pagar o Vale Transporte e na década de 1980 foram eles, os trabalhadores, que conquistaram esse benefício e impulsionaram as demandas estudantis pelo passe-livre por meio de manifestações profundamente radicais realizadas com grande frequência.
A proposta da assembleia partiu de um grupo de trabalhadores que tem como projeto construir uma rede de solidariedade entre os trabalhadores a partir de lutas em que todos que trabalham, independente da natureza do vínculo empregatício, participem em igualdade e construam seus objetivos e métodos de luta. Até então temos focado em fazer isso nos locais de trabalho considerados fisicamente, isto é, nos prédios, mas acontece que os trabalhadores não vivem apenas e não são afetados apenas pelos locais de trabalho. Não é só ali que se constroem relações de confiança necessárias para a produção de lutas e de solidariedade. O bairro e o transporte coletivo como espaço de encontro e de sofrimento comuns também podem servir como espaços de sociabilidade e construção política. No caso da empresa em que a maioria de nós atuou até então, os bairros próximos foram construídos com o objetivo principal de abrigar os trabalhadores da instituição. Os outros bairros próximos não foram construídos com este objetivo e sim com os tradicionais objetivos de especulação imobiliária, mas também acabam tendo grande porcentagem de trabalhadores.
Esses espaços se configuram, então, como espaços em que é possível nos organizar como trabalhadores de acordo com os objetivos e a lógica do coletivo de luta nas empresas, mas sem os riscos diretos ao emprego que a nossa atuação nos locais de trabalho implica. Esse trabalho territorial a partir de demandas de bairro e transporte permitem que os trabalhadores militantes da organização se aproximem das lutas de outros trabalhadores. Também permite que os trabalhadores se construam como militantes, criem capacidade organizativa. Na medida em que as lutas de bairro esfriem, às vezes pelo cotidiano de trabalho desgastante e problemas econômicos externos ao bairro e ao transporte, abrem-se possibilidades de luta pautando essas questões dos locais de trabalho tradicionais a partir desses laços de confiança construídos nas lutas de bairro.
Onde estamos e para onde vamos?
Alguns trabalhadores ofereceram suas casas para a realização de reuniões pautando questões específicas. Outros passaram seus contatos pedindo para que levássemos em consideração suas pautas e avisássemos de futuras ações.
Algumas pessoas do bairro se aproximaram do coletivo de trabalhadores militantes para fazer a mobilização e ajudar com a ação por ter afinidade com nossos métodos, princípios e objetivos. Até aqui, já foram realizadas reuniões na casa de moradores extremamente empenhados, elaboração coletiva de um jornal apresentando a problemática local do transporte coletivo e as pautas reivindicativas resultantes de reuniões, atividades de agitação, publicização do material nas feiras do bairro e coleta massiva de contatos. Os próprios moradores têm tomado para si as rédeas de edificação da luta, já tendo sido de pronto acordado a recusa ao auxílio partidário ou sindical — soma de uma posição do coletivo de trabalhadores que chegou com a proposta com um descontentamento evidente referente a esses tipos de entidade. A construção das atividades é efetivamente compartilhada na estrutura de agitação (caixas de som, tenda), confecção de materiais (fornecem relatos e conferem a redação sobre as precariedades do bairro), trabalho de base (o diálogo boca a boca, a argumentação, a panfletagem), financiamento dos trabalhos através de vaquinha, acolhimento dos companheiros de outras regiões, dentre outros aspectos essenciais para a estruturação da luta.
O que parece estar posto até então é a realização do se reconhecer enquanto sujeito ativo de um processo local de organização independente e enfrentamento político conjunto com um outro grupo, dada às circunstâncias indignas do acesso ao seu próprio local de moradia. Os trabalhadores cansados de apenas assistir, de serem meros espectadores de retóricas e sujeitos “iluminados”. Vale mais uma vez salientar que a estética da luta como um todo segue utilizando a linguagem diversificada do espaço no ponto de ônibus inicial -– tendo em conta que, segundo os moradores, isso desde o começo foi um fator diferencial. O que talvez pudesse causar uma pane no sistema dogmático de figuras da esquerda tradicional da cidade.
Até o momento, não houve nenhuma exigência interna de liderança hierárquica, pelo contrário, todos os que até aqui se envolveram na luta mostram-se dispostos e aptos a responder o porquê de não haver chefia ou relação partidária e como isso reflete no movimento. Uma das pautas inclusive já foi parcialmente atendida depois de certa movimentação na feira do bairro. É também substancial apontar o próprio interesse ativo os moradores em se juntar ao coletivo de trabalhadores em questão não apenas como lutadores do bairro apoiados por um grupo, mas como membros orgânicos deste em um local de atuação distinto. Esse interesse foi concretizado já na primeira reunião e em uma edição conjunta com igual espaço no jornal da organização.
Pensamos que conseguimos, assim, colocar um outro problema fundamental para a construção das lutas sociais na cidade. Ao invés da tradicional relação apoiadores e apoiados, começamos a pensar nossas relações como uma aliança entre trabalhadores que priorizam a atuação em seus locais de trabalho no momento e outros que priorizam atuar no seu local de moradia no momento.
Diante disso, temos alguns desafios e questões. Como combinar o trabalho lento nos locais de trabalho e empresas, de profundos laços de confiança, quase semiclandestino e de riscos também grandes em torno das lutas que pautam condições de trabalho, com o trabalho relativamente mais rápido, mais aberto do trabalho nos bairros que pauta as condições de vida?
A identidade de interesses no caso dessas lutas não é automática, é uma construção política. Mas pensamos que abrimos um bom ponto de partida para conseguirmos colocar novas questões, que apresentamos ao longo do texto para os demais trabalhadores que pretendem ter uma militância anti-capitalista efetiva.
alguns pontos do texto me trouxeram a seguinte reflexão ao que tange a ação do MCC em Goiânia
”Porém, esses trabalhadores e trabalhadoras não costumam ser convocados como sujeitos políticos principais dessa luta. Pede-se deles (e é uma situação cômoda para alguns trabalhadores) o papel de apoiadores passivos dos “bravos estudantes” ou “dos jovens”. ”
Na pratica a colocação do texto é acerta quando se observa a pratica do movimento que afirma estar lutando contra o aumento das tarifas ou estar promovendo alguma especie de trabalho de base. o que acaba acontecendo na maioria das vezes é o que o mesmo texto classifica como ” prestar contas a cena ou fazer propaganda de si mesmo para disputar com outras correntes”. com isso o movimento não avança para além do que considero como ”propaganda pelo ato” e que na pratica não causa efeito algum. o texto aponta um panorama em que nem toda ciencia militante por mais geniosa que se proponha a ser ou mais ”radical” conseguiria chegar, pois não se preocupa de fato com essas contradições da realidade – a de que é preciso abandonar esse posto quase que ”santo” da militância e se colocar no lugar do outro, de entender seus anseios e necessidades. o MCC, bem como parte da militância goiana não poderá compreender esse texto e nem a pratica que resultou nessa analise. ou por não querer abdicar desse posto cheio de holofotes que não passa de uma besteira e em nada contribui de fato ou simplesmente por não entender que 2013 passou e não volta mais. ou falharemos miseravelmente tentando construir outro ”2013” ou nos propomos coletivamente para desenvolver um novo método de atuação.
o texto traz uma excelente reflexão sobre como é possível desenvolver outras formas de luta e de organização para além da militância profissional. talvez, ainda demore um tempo para que esses ”jovens guerreiros” ou ”bravos estudantes” que hoje integram o MCC (pois no fundo o movimento não consegue alcançar nenhum outro grupo para além dos estudantes) consigam romper com essa velha pratica de ”propaganda” ou dessa especie de canonização estupida de militantes.