Introdução
A história da fábrica Motovílikha [Мотови́лиха; pronuncia-se “motovíliha”, com um “h” aspirado, como em “hobby”], de nome oficial Motovilikhinskiye zavody [Мотовилихинские заводы, “plantas de Motovilikha”; pronuncia-se “motovilihínskie zavóde”], reflete as primeiras fases da industrialização na Rússia e, ao mesmo tempo, a formação da classe trabalhadora na Rússia. O curto documento que o Passa Palavra traduziu e agora torna público pela primeira vez em língua portuguesa foi publicado originalmente em 26 de agosto de 1919 no jornal Nasha Zaria [Наша Заря, “Nossa Aurora”; pronuncia-se “nácha zária”], depois traduzido para o inglês e republicado no livro Behind the front lines: political parties and social movements in Russia, 1918-1922, de Vladímir N. Brovkin (Princeton University Press, 1994). Trata-se de um dos poucos panfletos com reivindicações formuladas pelos próprios trabalhadores russos em suas fábricas durante a Guerra Civil (1918-1921) a sobreviver por quase um século nos arquivos russos; mais impressionante ainda, em poucas linhas e reivindicações muito concisas evidencia as contradições do processo revolucionário russo.
Primeiro, o texto; em seguida, uma contextualização, na verdade uma tradução parcial e ligeiramente adaptada da matéria Motovilikha, unsung hero of Russia’s large munitions plants, e um comentário de autoria do Passa Palavra.
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Reivindicações dos trabalhadores da metalúrgica Motovílikha
1. Sobre o fornecimento de alimentos.
Nós, trabalhadores famintos, exigimos um aumento em nossa ração de pão; não daqueles que sequer um porco os comeria, mas feitos de farinha… bem como de todos os demais produtos alimentares tradicionais, como carne, cereais, batatas e outros alimentos. A partir de 6 de dezembro [1918], exigimos um aumento na ração de alimentos; se ela não for aumentada, seremos obrigados a parar o trabalho.
2. Exigimos que jaquetas e bonés de couro sejam tomados dos comissários e usados na produção de sapatos.
3. Exigimos a mais expedita aquisição de botas de feltro e roupas quentes, e sua distribuição aos cidadãos.
4. Exigimos que os comissários e funcionários das instituições soviéticas recebam as mesmas rações de alimentos que os trabalhadores, e que não haja privilégios para os burocratas.
5. Exigimos que as ameaças armadas aos trabalhadores nas reuniões sejam abolidas, que as prisões sejam igualmente abolidas, e que exista liberdade de expressão e de reunião, de modo que exista um verdadeiro poder dos sovietes dos camponeses e dos deputados dos trabalhadores, e não dos agentes da Cheka.
6. Exigimos uma abolição da requisição forçada de alimentos e farinha dos trabalhadores famintos, de suas esposas e filhos; exigimos também a abolição da imposição de multas aos camponeses que vendem [alimentos] e entregam [comida para as cidades], e que deixaram [trabalhadores] pernoitar [no campo]; exigimos também liberdade para trazer até um pud e meio de comida [Nota do PP: muito provavelmente trata-se de comida trazida dos campos pelos trabalhadores que lá pernoitavam.].
7. Exigimos que o Departamento de Abastecimento da Província, se não puder abastecer a população, passe sua autoridade ao Departamento de Abastecimento de Alimentos da [fábrica de] Motovílikha .
8. Exigimos a convocação de uma reunião geral de todas as plantas a realizar-se em 5 de dezembro ao meio-dia, com a participação do Departamento Regional de Abastecimento de Alimentos.
9. Exigimos que todos os atuais funcionários públicos sejam removidos [de seus postos]. Responsáveis eleitos pelo povo devem tomar seu lugar.
10. Exigimos pagamento pelo tempo que usamos em reuniões, se ocorrerem em horário de trabalho.
11. Exigimos a abolição das multas pelo tempo que os trabalhadores empregam na busca de alimentos.
12. Exigimos a abolição dos passeios de comissários em cavalos e também em automóveis.
13. Exigimos a abolição da pena de morte sem julgamento e investigação. Deve haver justiça.
14. Exigimos que os comissários existam para as pessoas, e não que as pessoas existam para os comissários. (Oficina elétrica) [resolução]
Todos os 14 parágrafos foram aprovados por unanimidade.
Presidente: Luchnikov
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Contextualização
O fabricante de equipamentos militares de Motovílikha tem sido um pilar da indústria armamentista russa. Embora não seja um nome familiar, o exército russo hoje depende de seus produtos de calibre pesado para o campo de batalha.
As peças de artilharia de qualidade foram elemento central do exército imperial russo, ajudaram a derrotar as forças nazistas em 1945 e ainda forneceram a maior parte do poder de fogo convencional pesado das forças armadas russas. No entanto, relativamente poucas pessoas sequer conhecem o nome Motovílikha.
Desde o reino do czar Pedro I (Pedro o Grande) no final do século XVII e início do século XVIII, a região dos Urais tem sido o núcleo da siderurgia militar da Rússia, extraindo minério e transformando o metal fundido em uma gama completa de armas para o exército. Os faldas dos montes Urais eram ricos em todos os recursos necessários: desde enormes reservas de madeira para combustão a uma vasta fonte de mão de obra nas vilas vizinhas, além de uma rede de rios pronta para o transporte.
A região do sul dos Urais foi ativamente desenvolvida durante o reinado de Pedro, antes de seus sucessores voltarem sua atenção para mais áreas ao centro e ao norte. Com a Rússia lutando em várias frentes no início do século 18 e com necessidade de quantidades crescentes de armamento, a então subutilizada região central dos Urais proporcionou uma plataforma para a criação de uma nova unidade industrial.
Em 1736, a imperatriz russa Anna Ioannôvna [Анна Иоанновна] (1693-1740), sobrinha de Pedro, o Grande e continuadora do programa “ocidentalizante” de seu tio, ordenou a Vasily Tatishchev, chefe da metalurgia nos Urais, que fundasse uma fundição nas florestas de Prikamye, perto do rio Kama. Inicialmente, ele só estava encarregado de produzir aço para as instalações lá existentes, mas, seguindo o padrão da época, sua empresa implementou o ciclo de produção completo, desde a extração de minério até o processamento final de aço e produção de lingotes.
Durante meio século, a principal função da planta de Tatishchev era o fornecimento de blocos de aço bruto para a fabricação de rifles e grandes canhões. Mas, no final do século 18, a demanda de armas cresceu tanto que foi tomada a decisão de estabelecer uma nova fábrica para a produção adicional de armas perto da aldeia de Motovílikha, onde viviam os trabalhadores das oficinas metalúrgicas.
Os novos canhões Motovílikha finalmente demonstraram sua eficácia em todas as guerras travadas pela Rússia na primeira metade do século XIX, incluindo batalhas contra a França napoleônica, o Império Otomano, os poloneses e os húngaros, e também contribuíram com a defesa de Sevastopol durante a Guerra da Criméia.
No entanto, a busca contínua pelo desenvolvimento da produção de armas exigiu a modernização das instalações existentes, uma vez que as inovações da era industrial não poderiam ser implementadas usando tecnologia antiga. Na segunda metade do século XIX, a Rússia lançou um programa de remodelação maciça para suas fábricas de armas, inclusive em Motovílikha. As plantas de fundição de metal e de fundição de armas foram reunidas numa única linha de produção e, a partir de 1871, o trabalho começou a combinar todas as fábricas de armas dentro e ao redor da cidade de Perm.
Em 1914, um em cada três canhões fabricados na Rússia vinha de Motovílikha. Mas mesmo antes disso foram feitas várias realizações importantes em seus arredores. Em 1868, os armeiros de Perm criaram um canhão de 60 centímetros que pesava cerca de 45 toneladas e disparava projéteis de 500 quilos. Conhecido como o Canhão do Tsar, era destinado a Kronstadt, a fortaleza do mar que guardava o golfo que levava a capital da Rússia, São Petersburgo.
A Motovílikha também lançou o primeiro navio a vapor nos Urais em 1871, a primeira locomotiva a vapor em 1872 e a primeira usina de força em 1886. Os especialistas locais foram pioneiros em novos desenvolvimentos na metalurgia, e em 1875 construíram o maior martelo a vapor do mundo, que pesava impressionants 50 toneladas e foi usado no primeiro alto-forno aberto nos Urais no ano seguinte. Em 1893, Nikolai Slavyanov, um metalúrgico da Perm, propôs um novo método de soldagem usando eletrodo consumível, que hoje ainda é o principal tipo usado na produção de aço em todo o mundo.
A Primeira Guerra Mundial aumentou significativamente a produção, representando uma em cada cinco armas entregue no front. Após a Revolução Russa em 1917 e a subsequente Guerra Civil, as autoridades soviéticas investiram pesadamente no desenvolvimento da indústria pesada, e a industrialização da década de 1930 levou a uma completa restruturação de suas instalações produtivas.
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Comentário
O documento permite-nos escavar até muitas camadas abaixo do discurso mais comum acerca da revolução russa.
Em primeiro lugar, as reivindicações mostram o nível profundo de escassez vivido pelos trabalhadores russos durante a Guerra Civil. Contra os comissários, contra a Cheka inclusive, ameaçaram paralisar as atividades caso a mais básica das necessidades humanas – alimentação – não fosse satisfeita a contento. Em meio a uma guerra fratricida, onde a linha distintiva entre os aliados de classe e os “inimigos do povo” era tênue, débil e incerta, uma ameaça de greve como a expressa pelos trabalhadores de Motovílikha era um ato simultâneo de coragem e desespero. E não se tratava de quaisquer trabalhadores; eram metalúrgicos numa fábrica de armas, produto de primeira necessidade no combate às forças reacionárias. Talvez fosse este mesmo seu poder, talvez fosse o combustível de sua ousadia. Talvez.
Em segundo lugar, o ódio de classe contra os privilégios de comissários e burocratas era evidente. Não porque os trabalhadores da Motivílikha desprezassem o regime soviético tal como existente em 1918; sequer repudiavam a existência de comissários. Repudiavam, isto sim, quaisquer símbolos e manifestações concretas de superioridade dos comissários sobre os trabalhadores, como as vestimentas de couro, a alimentação diferenciada e o exibicionismo equestre ou automobilístico. Desejavam, isto sim, o controle sobre as ações de funcionários públicos e comissários e a revocação de seus mandatos – exigência prática do Estado-comuna tão propagandeado por Lenin em seu O Estado e a revolução, mas severamente questionada durante a Guerra Civil.
Em terceiro lugar, os metalúrgicos da Motovílikha, ao reivindicar pagamento pelo tempo usado em reuniões ocorridas durante o expediente de trabalho, estabelecem uma relação muito curiosa entre o tempo de trabalho e o tempo de militância. Se em 28 de agosto 1917 a famigerada circular 421 do então ministro Mátvey Ivânovich Skôbelev proibira as reuniões em horário de trabalho sob pena de desconto salarial do tempo evadido ao expediente, a situação apresenta-se aqui invertida. Á primeira vista, um leitor menos atento poderia dizer que estes trabalhadores trataram os dois tempos de igual maneira, mas uma leitura mais rigorosa mostra que as reivindicações silenciam quanto às reuniões ocorridas fora do expediente de trabalho. Muitas interpretações podem advir daí. Uma: os metalúrgicos pareciam entender as reuniões em horário de expediente como meios empregues pelos comissários e demais gestores para reduzir seus salários; a mobilização política tornava-se, deste modo, um instrumento para reduzir os pagamentos aos trabalhadores, ainda que ao preço da redução no volume de produção. Outra: os metalúrgicos da Motovilikha desvincularam dos ganhos de produtividade a remuneração pelo seu tempo de trabalho; na medida em que exigiam ser pagos por um tempo em que sua força de trabalho não estava sendo usada na produção, reivindicavam uma remuneração fixa por uma produtividade que certamente era muitíssimo variável – resultando, assim, em maior incorporação de valor à sua força de trabalho – forçando, por via indireta, os comissários a deixá-los trabalhar. Ainda outra: não está dito no documento, mas não é improvável nem impossível que, diante das pressões por mais armas para o front da Guerra Civil, os gestores da Motovílikha exigissem dos metalúrgicos padrões de produtividade incompatíveis com as interrupções na produção resultantes das reuniões em horário de expediente; o pagamento pelo tempo de reunião em horário de expediente seria, assim, uma tentativa de equilibrar as coisas. Várias outras inferências são possíveis. Central, todavia, é a valorização pelos trabalhadores de seu próprio tempo.
Em quarto lugar, é notável e espantosa a aliança entre os metalúrgicos da Motovílikha e seus vizinhos camponeses. Enquanto boa parte da historiografia tradicional sobre a revolução russa trata os camponeses como especuladores, açambarcadores contra quem a política de requisições forçadas teria sido o único remédio possível para alimentar os citadinos famintos, nas entrelinhas das reivindicações dos metalúrgicos da Motovílikha o que aparece é outra coisa. Frente à fome e ao racionamento de alimentos, tudo indica que os metalúrgicos recorreram ao campesinato circunvizinho para ter algo com que se alimentar. A julgar pelo conteúdo das reivindicações, tudo indica que os metalúrgicos iam aos campos, passavam muito tempo em busca de comida, não raro pernoitando nesta empreitada, e depois voltavam ao serviço. Dada a centralidade da distribuição de alimentos na lista de reivindicações, é de se supor que pouco ou nada tinham para trocar. Difícil arriscar hipóteses com tão pouco, mas não é assim tão difícil imaginar, além do escambo mais elementar entre metalúrgicos e camponeses, a existência de uma boa dose de solidariedade entre classes exploradas.
Mais que qualquer documento da lavra de intelectuais, as reivindicações dos metalúrgicos da Motovílikha ilustram as contradições em que se dilaceravam trabalhadores e camponeses russos durante a Guerra Civil. Não custa lembrar, como nota adicional, que vem da Motovílikha um dos mais conhecidos entre os trabalhadores radicalizados durante a revolução russa, Gavríl Miasnikóv, e também um dos últimos grupos de oposição de esquerda aos bolcheviques, o Grupo Operário do Partido Comunista Russo. Nada é como um raio em céu azul. Desejavam os metalúrgicos da Motovílikha, herois desconhecidos da revolução russa, implementar, mesmo sob as duríssimas condições da guerra e da fome, aquilo que a tantos parecera ser elemento prefigurativo do futuro.
Este artigo faz parte do esforço coletivo de traduções do centenário da Revolução Russa mobilizado pelo Passa Palavra. Veja aqui a lista de textos e o chamado para participação. Todas as imagens ilustrativas são da fábrica Motovílikha e dos trabalhadores que lá vendiam sua força de trabalho.