Por Manolo
Em meio à polêmica em torno de caracterizar a greve dos caminhoneiros como “legítima” ou como “locaute (lock-out)”, as opiniões flutuam muito, tal como as análises acerca da composição social da categoria. Números vão e vem. Uns “confirmando” que a maioria dos caminhoneiros tem carteira assinada, e portanto – sem maiores mediações, poréns e senões – estaria sujeita a pressões patronais pró-locaute. Outros números afirmam o contrário, que o número de caminhoneiros ditos “autônomos” seria maior, e portanto o “fantasma” do locaute estaria eliminado.
Atentos ao polemismo de rede social, vimos algumas cifras serem repetidas à exaustão. Fomos atrás de suas origens para ver de onde surgiram estes números. Encontramos as fontes, e resolvemos comentá-las, como se faria com qualquer “pesquisa” que diga “números” representativos de qualquer fenômeno social. Em seguida, faremos alguns comentários baseados no que vimos e ouvimos, tanto em alguns bloqueios onde comparecemos, quanto no zum-zum-zum das redes, onde também proliferam relatos da “experiência caminhoneira” aos quais poucos dão a devida atenção.
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Primeiramente os números que “confirmam” a maioria de carteira assinada. Estes, inclusive, têm maior circulação pública, pois a Globo “adotou-os” como verdade e circula-os à exaustão.
Estes números indicam a existência de 58% de caminhoneiros que trabalham com carteira assinada, e de 28% que trabalham “por conta própria”. Até aí, tudo bem. Não questionamos a legitimidade dos “números”, mas sabemos também que, via de regra, “números” não brotam por geração espontânea: alguém se deu ao trabalho de se interessar pelo tema e tentou abordá-lo quantitativamente, respondendo a alguma agenda de pesquisa.
Por isto mesmo, algumas googladas bem orientadas levaram dos números a seu autor, o economista Lucas Lima, graduado em Ciências Econômicas pela FEA-RP/USP e mestre em Economia Aplicada pela ESALQ/USP, sob orientação de Ana Lucia Kassouf, pesquisadora da ESALQ/USP com sólida carreira no campo da economia aplicada a temas ligados ao trabalho, ao consumo e orçamento familiar, aos impactos econômicos da educação infantil etc..
Infelizmente a dissertação parece não estar disponível na internet, o que permitiria uma análise mais detalhada; por outro lado, um artigo que serve como uma espécie de seu “resumo executivo” está disponível, e nos permite avançar em outros elementos de análise.
A pesquisa intitulada O mercado de trabalho dos motoristas de caminhão no Brasil: caracterização e avaliação do efeito de leis trabalhistas teve como base dados da Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios do IBGE (PNAD) relativos aos caminhoneiros. Os resultados não se resumem à divisão entre “por conta própria” e “carteira assinada”, e apontam questões que seriam de interesse público, não fosse a polarização da opinião pública em torno desta única questão. Alguns exemplos:
a) Enquanto categoria, os caminhoneiros estão envelhecendo, pois se em 2002 apenas 10% dos profissionais passavam dos 55 anos, em 2015 (data-limite da pesquisa) esta proporção já era de 17,5%.
b) Este envelhecimento é acompanhado por uma diminuição paulatina da participação de todas as demais faixas etárias. Tendo sempre como parâmetro as datas-limite de 2002 e 2015, pode-se ver que os caminhoneiros entre 18 a 25 anos caíram de 7,98% para 4,87%; os de 25 a 35 anos caíram de 26,97% para 23,36%; os de 35 a 45 anos caíram de 31,46% para 29,86%; os de 45 a 55 anos, como exceção que confirma a regra, aumentaram de 23,28% para 24,38% – mas em todo o período esta faixa etária mantém-se oscilante entre 23% e 26% (cifras arredondadas).
c) A escolaridade dos caminhoneiros aumentou, pois a proporção deles com ensino médio completo passou de 15,06% em 2002 para 35,18% em 2015. O número dos caminhoneiros sem instrução permaneceu relativamente estável no período (4,07% em 2002 contra 3,35% em 2015), o de caminhoneiros com ensino fundamental I completo caiu (36,58% em 2002 contra 23,44% em 2015) e o de caminhoneiros com ensino fundamental II também caiu (de 42,32% em 2002 para 35,01% em 2015). Curiosamente, aumentou também o número de caminhoneiros com ensino superior completo, embora sua proporção na categoria continue absolutamente minoritária (1,96% em 2002 contra 3,02% em 2015).
d) O rendimento mensal dos caminhoneiros mostra uma composição interessante para quem trabalha com estratificação de renda combinada com inserção na estrutura produtiva. No extremo de menor renda, com até 1 salário mínimo (SM), a participação foi sendo paulatinamente diminuída (16,17% em 2002 contra 9,01% em 2015), assim como no extremo de maior renda, com 5 ou mais SM (7,4% em 2002 contra 6,14% em 2015).
e) Entre um e outro extremo da renda mensal, o que se vê são flutuações sazonais das demais faixas de renda em torno de margens oscilantes, mas relativamente estáveis – fator de igual interesse para quem trabalha cruzando estratificação de renda e inserção na estrutura produtiva. Os caminhoneiros com renda mensal entre 1 a 2 SM passaram de 45,47% em 2002 para 40,63% em 2015; aqueles com renda entre 2 a 3 salários mínimos passaram de 21,52% em 2002 para 28,72% em 2015; por último, aqueles com renda mensal entre 3 a 5 SM passaram de 9,44% em 2002 para 15,50% em 2015. Estes dados e os do item anterior serão úteis para alguns comentários ao final do artigo.
f) Uma feliz informação encontrada no estudo de Lucas Lima é a de que o volume de horas trabalhadas por semana tem se aproximado cada vez mais do patamar das 44 horas semanais, embora ainda exista parte considerável trabalhando além do patamar legal: aqueles com carga horária semanal variando entre 39 e 44 horas trabalhadas variou de 24,05% em 2002 para 46,64% em 2015, e aqueles com 44 a 48 horas semanais trabalhadas, no limiar do sobretrabalho, variou de 18,58% em 2002 para 16,31% em 2015. Por outro lado, as vítimas da sobrecarga laboral na categoria – ou seja, com 48 a 55 horas semanais trabalhadas – representaram 14,15% da categoria em 2002 e 12,43% em 2015, e as vítimas da hiperexploração na categoria – ou seja, com mais de 55 horas trabalhadas por semana – representaram 36,88% em 2002 e 14,25% em 2015. As horas trabalhadas por semana encontram-se em forte tendência de redução durante todo o período, mas leves variações sazonais “para mais” na carga horária afetam os “por conta própria” muito mais que os “celetistas”.
g) No que diz respeito à forma de contratação, 47,67% dos caminhoneiros em 2002 trabalhava com carteira assinada, contra 29,98% de “conta própria”; em 2015, eram 58,55% de celetistas contra 27,79% de “conta própria”. O restante enquadra-se ora como empregadores, absolutamente minoritários (na série histórica só ultrapassou os 1% em 2008), ora com outros arranjos laborais, com forte tendência de conversão ao modelo celetista clássico (21,39% em 2002 contra 12,55% em 2015).
h) Na comparação entre “celetistas” e “conta própria”, Lucas Lima apresenta um gráfico que mostra uma franca tendência de queda nos rendimentos dos “conta própria” desde 2012, agravada em 2014, tendência que só se verifica entre os “celetistas” a partir de 2015, e de modo muito menos acentuado. O mesmo gráfico aponta uma diferença enorme de renda entre “celetistas” e “conta própria” em favor destes últimos; esta diferença de renda, como o próprio pesquisador ressalta, deve-se talvez ao fato de que os custos com o caminhão (longos parcelamentos, depreciação do veículo etc.) não são contabilizados na PNAD.
i) Todas as variações estatísticas encontradas na PNAD relativamente aos caminhoneiros foram comparadas por Lucas Lima com aquelas das demais profissões do grupamento ocupacional “trabalhadores da produção de bens e serviços industriais”, onde estão classificados os caminhoneiros para fins estatísticos[1], mostra que, apesar de os caminhoneiros ganharem mais que a média do grupamento ocupacional e terem proporção de carteira assinada um pouco maior que as demais profissões do mesmo grupamento, sua carga horária média, mesmo com a tendência de queda já apontada, ainda é muitíssimo maior. Por outro lado, se em valores absolutos há grandes diferenças entre os caminhoneiros e os demais “trabalhadores da produção de bens e serviços industriais”, as tendências de variação no rendimento, nas horas trabalhadas por semana e na proporção de “celetistas” são muito semelhantes.
j) Como o próprio Lucas Lima aponta por meio de uma bateria de testes estatísticos que não reproduziremos (o artigo está disponível para quem se disponha a fazê-lo), a tendência de redução na carga horária pode ser em grande parte creditada à aplicação da “Lei do Descanso” (2013) e da “Lei do Caminhoneiro” (2015); por outro lado, os mesmos testes aplicados pelo pesquisador apenas nos fatores influenciados pela “Lei do Caminhoneiro” mostram que a redução de carga horária imediatamente posterior à publicação desta lei veio junto com uma redução na renda mensal da categoria.
A análise ficou um pouco “dura” por causa do “economês”, mas ele foi inevitável para dar conta das informações sem fazer muitos rodeios. Além disto, por dever de honestidade, é preciso reproduzir as mesmas precauções indicadas pelo pesquisador ao apresentar os dados acima: “O trabalho foi completamente quantitativo. Isso quer dizer, por exemplo, que não fiz nenhuma entrevista com algum motorista de caminhão ou representante do setor. Tal fato limitou minhas possibilidades de interpretações para os resultados encontrados.”
Isto no que diz respeito aos “números” “comprovadores” do locaute. Há ainda os “números” que “comprovam” o contrário.
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No campo oposto, Ruy Braga, sociólogo do trabalho livre-docente na USP, deu recentemente uma entrevista a Mário Sergio Conti, da Globo News, onde apresenta “números” que vão no sentido contrário. Com as limitações do formato oral de uma entrevista, e igualmente as limitações da transcrição resumida, tentaremos apresentar os pontos centrais de suas afirmações.
Em primeiro lugar, Ruy Braga rejeita a tese do locaute. Para ele, há no Brasil 2 milhões e 300 mil caminhoneiros, dos quais 70% são “autônomos”; agrupando-se aí desde os donos de um único caminhão a donos de dois ou três veículos que revezam seu uso com “agregados”, ou seja, trabalhadores precarizados também incluídos entre os “autônomos”/“por conta própria” em formas bastante precarizadas de submissão aos donos dos veículos. Há também outros 30% de “empregados”, ou seja, de “celetistas” com vínculo formal, mas sujeitos a formas sofisticadas de precarização, como cooperativas e terceirização. A renda média dos caminhoneiros estaria acima do chamado “precariado”, ou seja, trabalhadores com condições precárias de trabalho cuja renda média orbita entre 1 a 2 salários mínimos (SM); os setores mais precarizados dos caminhoneiros – seja uma fração dos “autônomos”, seja uma fração dos “celetistas” sujeita a variadas formas de precarização – poderiam ser incluídos, pela renda e pelas condições precárias de trabalho, também entre o “precariado”.
Os caminhoneiros são, portanto, uma categoria muito diversa, que vive condições de trabalho degradantes; Ruy Braga ressalta alguns elementos do processo de trabalho dos caminhoneiros como jornadas de trabalho contínuas de 24 horas ao volante ou mais, o afastamento de casa e da família por 19 dias seguidos, uma média de 10 mil km rodados por mês, dificuldades de segurança nas estradas, roubo de cargas, consumo de estimulantes lícitos e ilícitos para manter-se acordado nas longas jornadas ao volante etc. A “Lei do Caminhoneiro”, para Ruy Braga, teria sua aplicação eficaz comprometida por falta de infraestrutura adequada; as longas jornadas ao volante, para ele, deveriam-se também ao fato de que muitos caminhoneiros não querem parar nos locais que lhes são reservados por medo de serem assaltados.
São principalmente os “autônomos” a não aderir a esta regulamentação; eles não têm segurança ou garantia alguma de remuneração (salarial, previdenciária, qualquer uma) senão o próprio frete, e a política oscilante dos preços de combustíveis torna ainda mais imprevisível o ambiente de trabalho. Afinal, como poderiam os “autônomos” calcular o valor do frete se hoje o valor do combustível é um, e amanhã ou semana que vem pode ser outro bem mais alto? Para esta parcela significativa dos caminhoneiros, que não têm qualquer proteção social e pagam do próprio bolso seu plano de saúde, seguridade, plano odontológico, seguro da carga etc., a flutuação constante – via de regra “para mais” – no preço do diesel impõe extremas dificuldades para a própria sobrevivência.
Ruy Braga confirma o envelhecimento da categoria. Para ele, em outros tempos os jovens caminhoneiros tinham ainda alguma condição de fazer alguma poupança e sonhar com a compra ou financiamento de um veículo próprio, mas hoje as condições são muito mais adversas. A rotina é, portanto, encontrar caminhoneiros que envelhecem ao volante sem perspectiva de mudança de carreira ou de aposentadoria, pois a falta de proteção social impõe-lhes continuar rodando para sobreviver.
As atuais paralisações não surpreendem o sociólogo, pois para ele as condições de trabalho dos caminhoneiros criam uma situação de crise constante. Soma-se a isto a alta frequência com que surgem protestos de caminhoneiros país afora. Medidas paliativas como as que foram apresentadas pelo governo federal não tocam nas condições de trabalho deterioradas e degradantes, e tanto autônomos e celetistas dependem do diesel, pois os celetistas trabalham também com percentual do frete.
Para Ruy Braga, o país não se interessa pelos caminhoneiros, e mesmo a representação sindical deles é frágil. As próprias condições de trabalho fragilizam tal representação: os caminhoneiros, pela própria natureza de seu trabalho, vivem em trânsito, estão dispersos por todo o país, e mesmo a divisão entre “celetistas” e “autônomos” desafia os processos de sindicalização e de representação sindical. Algumas das confederações, associações e sindicatos que têm se apresentado nas atuais manifestações teriam, para o sociólogo, base social concentrada principalmente no Sul do país, quando a greve é nacional; como poderiam, então, lidar com uma base representativa tão dispersa e de difícil articulação?
Ruy Braga trabalha, além de tudo, com duas hipóteses interessantes. A primeira é a de que o “dia de paralisação” puxado por algumas destas confederações, associações e sindicatos teria sido transformado e ultrapassado pelos caminhoneiros numa mobilização intensa que seus iniciadores não teriam mais condições de controlar. A segunda, no que diz respeito à atuação de empresas por meio de um locaute, vai no mesmo sentido: há, de fato, interesses empresariais em jogo – Ruy Braga não os nega – mas a mobilização dos caminhoneiros teria igualmente ultrapassado os limites impostos pelas próprias empresas.
Por fim, a entrevista de Ruy Braga segue na tentativa de situar a mobilização dos caminhoneiros em meio à globalização, ressaltando como a “terciarização”, a dispersão de unidades produtivas pelo globo (com centralização da gestão em alguns polos urbanos) etc. teria dado grande poder de barganha aos trabalhadores da logística como motoboys, taxistas, motoristas de Uber etc. Para ele, uma das características do capitalismo nas últimas décadas de globalização e neoliberalismo seria a passagem dos conflitos anteriormente circunscritos ao ambiente fechado das fábricas rumo ao ambiente aberto e público da logística e dos transportes, e também dos serviços (o chamado “setor terciário”).
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Tendo como base estes dois pontos de vista, é possível chegar a algumas hipóteses sobre os caminhoneiros, e tirar algumas conclusões no campo político.
Os “números” de um lado e do outro têm os limites de qualquer estatística – os números não falam, a não ser que os torturemos. Na PNAD, por exemplo, todas as formas de precarização do trabalho mais clássicas – pejotização etc. – costumam ser agrupadas como “trabalhadores por conta própria”. Sendo assim, por baixo dos “autônomos”/“por conta própria” encontram-se desde o proprietário de uma pequena frota de dois ou três veículos quanto o caminhoneiro pejotizado que encontra em grandes empresas de logística um grupo de compradores oligopsônicos de seus serviços[2]. De modo semelhante, por baixo dos “celetistas” encontram-se tanto os trabalhadores que têm efetivamente garantidos – e não só no papel – todos os direitos previstos em lei quanto os que são contratados por uma intermediadora de mão-de-obra que pode pô-los a perder com uma simples mudança de CNPJ.
Por isto mesmo, não dá para tirar conclusões políticas apressadas com base pura e simplesmente na forma majoritária de contratação da força de trabalho de uma categoria de trabalhadores. Fosse assim, qualquer manifestação de trabalhadores de qualquer categoria poderia ser considerada locaute, pois raros são os setores onde a contratação celetista não seja majoritária. Da mesma forma, não dá para tirar conclusões políticas com base pura e simplesmente na pauta de uma mobilização de trabalhadores. O fato de os caminhoneiros pautarem o preço dos combustíveis, que beneficia também os empresários, parece derivar muito mais das condições de seu processo de trabalho, e parece igualmente por força dos mesmos fatores ser talvez o único onde possa haver uma possibilidade de interferência imediata – veja-se, a este respeito, a comentada ineficácia de itens da “Lei do Caminhoneiro” que poderiam beneficiá-los em outros aspectos.
O que a guerra de números oculta, e que mesmo os comentadores mais “progressistas” insistem em negar, é o profundo desconhecimento por parte da esquerda e da extrema-esquerda no que diz respeito aos caminhoneiros. A guerra de números é a tentativa de dar fundamento “científico” a uma guerra de versões sobre a mesma luta, e sobre outras coisas para as quais se quer aproveitar o capital simbólico construído pela luta, mas sempre que se fala em lutas usando números está a se falar delas de cima e de longe, ou seja, apenas pelo viés estatístico, econômico e sociológico, não pelo viés de quem também está em luta. Convenhamos, isto é papel para gerentes, ministros, economistas de banco, não de militantes de um campo de esquerda. Os números importam para outras coisas, não para guiar nossa solidariedade a tal ou qual setor da classe trabalhadora que esteja em luta.
As mesmas dificuldades para a mobilização sindical podem ser transplantadas sem muitas mediações para o campo da mobilização e organização política, em especial quando o reduzido número de quadros na esquerda e na extrema-esquerda no Brasil não dá conta de estar em tantos lugares ao mesmo tempo. Resultado: como não estivemos – nós, da esquerda e da extrema-esquerda – junto com os caminhoneiros para construir com eles uma pauta “progressista”… Veja-se como sintoma disto a enorme visibilidade das faixas pedindo “intervenção militar”, que tanto escandalizam aos que não conseguem ver aí nada além do significado imediato. Se num mesmo ambiente é possível encontrar os que agitam a palavra-de-ordem “intervenção militar” trabalhando lado a lado com os que agitam a palavra-de-ordem “Lula livre”, seria assim tão difícil entender que acontece a mesma coisa em meio aos caminhoneiros? Em especial quando não estamos falando de pessoas que trabalham numa empresa só, mas sim de uma categoria profissional inteira? Mas claro, nos dirão, num contexto de acirramento da luta de classes cada qual escolhe seu campo. A isto respondemos: teriam a esquerda e a extrema-esquerda ficado míopes e narcisistas a ponto de não enxergarem nada além de suas próprias ideologias, esquemas teóricos pré-moldados e narrativas consolidadas? Teriam tornado-se incapazes de ver o que há de concreto além dos discursos e de agir em cima das contradições reais?
Tanto uma quanto outra palavras-de-ordem só fazem sentido quando se vê o que lhes sustenta, qual sua base material. Não falamos, por exemplo, em tirar ou não tirar Pedro Parente da presidência da Petrobras, porque no contexto do governo Temer um eventual substituto manteria a mesma política de preços para o diesel e demais combustíveis: tirar um diretor da Petrobras sem poder para colocar outro nem para alterar a política de preços (ou qualquer outra) seria, a nosso ver, o cúmulo de uma política de transformação de derrotas em vitórias, de maquiamento de migalhas, de confissão de impotência. Se Parente cair, é porque forças outras aproveitaram as lutas dos caminhoneiros em seu próprio favor, e pouco ou nada isto teria de acúmulo para os próprios caminhoneiros ou para a classe trabalhadora em geral sem, no mínimo, alteração da política de preços da Petrobras.
A nosso ver, tanto a palavra-de-ordem da “intervenção militar” quanto a de “Lula livre” foram construídas pela combinação entre o profundo pragmatismo eleitoral da classe trabalhadora, consolidado em séculos de completo bloqueio aos espaços onde realmente se decidem as questões práticas da vida econômica e social, e uma situação conjuntural de retrocesso a condições de vida semelhantes às de quinze ou vinte anos atrás, ou seja, de aumento do desemprego, de precarização ainda mais profunda do trabalho etc.. Isto, num contexto de extrema fragmentação política dos trabalhadores, leva a comportamentos individualistas, literalmente fratricidas, capazes de condicionar a busca de soluções ao horizonte mais imediato possível – em suma, a “torcer” por qualquer coisa, qualquer “milagre” que tire da miséria, do retrocesso, ainda que ao custo de outros retrocessos. Caminho aberto, portanto, às mais variadas formas de fascismo. A nosso ver, aí está a chave para a conjuntura. É esta a questão a ser enfrentada. O resto são os paliativos que, tal como uma “trégua” nos aumentos de combustíveis por sessenta dias, adia o problema, mas não o resolve.
[1] No jargão dos estatísticos e economistas, “grupamentos ocupacionais” são, na falta de expressão melhor, as “macroáreas” de profissões envolvidas no mesmo setor produtivo. Nas palavras do IBGE: “agrupamento dos subgrupos principais da Classificação Brasileira de Ocupações – Domiciliar – CBO-Domiciliar em: dirigentes em geral; profissionais das ciências e das artes; técnicos de nível médio; trabalhadores de serviços administrativos; trabalhadores dos serviços; vendedores e prestadores de serviços do comércio; trabalhadores agrícolas; trabalhadores da produção de bens e serviços e de reparação e manutenção; e membros das forças armadas e auxiliares”. Segundo a CBO, os caminhoneiros são classificados no grupamento ocupacional de “trabalhadores da produção de bens e serviços industriais”.
[2] No jargão dos economistas, “oligopsônio” é uma estrutura de mercado onde há pouquíssimos compradores de determinado bem ou serviço. É o “oligopólio ao contrário”; se no oligopólio há poucos vendedores, no oligopsônio há poucos compradores. Um exemplo: no mercado internacional de cacau, três grandes empresas (Cargill, Archer Daniels Midland e Callebaut) compram a vasta maioria do produto oferecido por uma ampla gama de produtores que vão desde os pequenos camponeses independentes até produtores em escala extensiva baseados em latifúndios.
Para que a coisa fique mais complexa ainda, encontrei a Pesquisa CNT de Perfil dos Caminhoneiros, publicada em 2016 pela Confederação Nacional dos Transportes (patronal). Ali se diz terem sido entrevistados 68,4% de “autônomos” e 31,6% de “por conta própria”; por outro lado, não se sabe se neste universo de 1.066 caminhoneiros entrevistados pela CNT houve alguma forma de representação tal e qual da participação dos dois tipos de caminhoneiros na categoria, ou se a escolha destas proporções respondeu a outros critérios. Por outro lado, notem como a divisão proporcional é muito próxima daquela apresentada por Ruy Braga. Seria esta sua fonte para afirmar a existência de 70% de “autônomos” e 30% de “celetistas”?
Pra complicar mais um pouco, o PSTU se baseia em outros dados pra analisar a greve dos caminhoneiros:
“Em 2016, a frota total do país era de 1.434.888 caminhões, segundo relatório da ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres). Desse total, 811.916 pertenciam a “transportadores autônomos” (56,6%), 615.481 a empresas de transporte (42.9%) e 7.591 a cooperativas (0.5%).
O setor de “empresas de transporte” inclui pequenas empresas com 5 caminhões, empresas médias, com algumas dezenas ou centenas de caminhões e grandes empresas. As 10 primeiras do ranking possuem frotas que variam de 470 veículos (Transportes Bertolini Ltda.) até 2.335 (Centro Oeste Logística). Dentro dessas grandes empresas, algumas são dedicadas exclusivamente ao transporte e logística, enquanto outras são filiais ou subsidiárias de conglomerados empresariais, como a citada Centro-Oeste Logística (pertencente ao grupo de bebidas Petrópolis) e a JBS Transportes (propriedade do grupo homônimo de frigoríficos).
Os “transportadores autônomos” são 631.960, o que significa que, em média, possuem 1,3 veículos cada, cujo valor varia entre 24.000 e 36.000 dólares (embora alguns modelos possam custar até 60 ou 80.000). Um estudo de uma revista especializada relata que 60% dos “caminhoneiros autônomos” não chegou a concluir o segundo grau, trabalha uma média de 11,3 horas por dia e tem renda mensal líquida de cerca de US $ 1.200 (um setor minoritário de 15 %, obtém renda variando de 1.500 a 3.000 dólares por mês)”
https://litci.org/pt/mundo/america-latina/brasil/debate-com-o-mrt-sobre-a-greve-dos-caminhoneiros-no-brasil/
Mais lenha na fogueira: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/579431-a-raiz-da-greve-dos-caminhoneiros-e-a-regulacao-do-trabalho
INFLAMANDO ANJOS
Talvez sobre lenha (Engels), mas fogueira (Mary Burns) não há.
“Cada qual que cuide do seu enterro, o impossível não há.” Quincas Berro D’água