Por Manolo
Mantenho há anos frutífera correspondência com um amigo residente no exterior em torno de vários assuntos. Nos últimos anos ele tem se mostrado perplexo com a política brasileira, e nisto com certeza não está sozinho. Fala sempre de “confusão”, “derretimento”, “dissolução da política brasileira”, e não acho que nisto ele seja diferente de muitos entre nós, na esquerda e na extrema-esquerda, pois vejo e ouço também em meio a outros mais próximos as mesmas questões.
Acerca desta “confusão”, reiterei junto a ele a tese que tenho defendido aos quatro ventos: tudo fica mais claro quando se mantém a análise do ponto de vista dos trabalhadores a partir da economia, e quando se sai da gritaria da mídia para analisar a questão do ponto de vista de tendências políticas e sociais de mais longo espectro. Quis escrever pouco, mas fui escrevendo e no fim das contas, como saiu algo quase do tamanho de um artigo, ele me sugeriu compartilhar estas reflexões, inquietações e angústias em público. Ei-las.
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Toda a política econômica de Dilma, no primeiro mandato inclusive, voltou-se para apaziguar a FIESP, que literalmente ditou a política econômica estilo supply side e trickle-down adotada de 2011 a 2016. Melhor dizendo, trata-se em primeiro lugar da política econômica desenvolvimentista clássica de Guido Mantega, orientada pela FIESP e centrais sindicais e ao fim avalizada por Dilma; em seguida, da política fortemente contracionista de Joaquim Levy e a moderadamente contracionista de Nelson Barbosa.
Este último, por sinal, foi talvez o primeiro no campo petista a trazer para o debate público uma proposta de teto para os gastos públicos, diferente quase que somente no prazo do “novo regime fiscal” imposto Henrique Meirelles e avalizada por Michel Temer e pelo Congresso por meio da Emenda Constitucional 95 – ciclos de quatro anos para a proposta de Nelson Barbosa, vinte anos (com avaliação nos dez primeiros) para a proposta de Meirelles.
Não tenho os números em mãos agora, mas há indícios fortes de retração na diminuição da desigualdade de rendas iniciando-se precisamente neste período. Seria preciso investigar mais a fundo, na distribuição funcional de renda, se a participação dos salários no PIB inverteu a trajetória ascendente que mantinha até 2010, quando havia aumentado ao ponto de fazer a participação dos salários nas contas nacionais superar as rendas de propriedade pela primeira vez em décadas.
Os defensores da tese do “golpe” deveriam ter atenção a isto, pois se na economia fatos são números, a redução da participação dos salários num PIB que não cresce significa um ataque gravíssimo aos trabalhadores. Mas como nenhum economista até o momento parece ter avançado em dados sobre a distribuição funcional da renda além de 2015, basta ver o que se deu na estratificação da população brasileira segundo a renda para ver que se trata de tendências ainda anteriores ao “golpe”.
A crítica às políticas econômicas adotadas por Dilma e equipe ao longo do tempo é o ponto de convergência analítica entre distintas escolas econômicas.
De um lado, liberais como Fernando de Holanda Barbosa, Samuel Pessoa, Mansueto Almeida e Marcos Lisboa, que dizem terem sido políticas equivocadas do princípio ao fim e defendem a revisão de direitos sociais e previdenciários como solução para fechar as contas públicas e criar espaço fiscal para investimentos (sem especificar de qual tipo).
De outro kaleckianos como Laura Carvalho, que defendem investimentos em infraestruturas de atendimento a direitos sociais e taxação progressiva, incidindo mais pesadamente sobre os mais ricos, como forma de reaquecer a economia e reequilibrar as contas públicas para que o Estado recupere a capacidade de investir. Há outros pontos no espectro, mas é destas figuras que têm vindo a maior parte dos argumentos no debate.
A intensidade das medidas contracionistas de Henrique Meirelles, como por exemplo o suicídio fiscal da Emenda Constitucional 95 (a que limita o teto de gasto por 20 anos), é universalmente atacada. É curioso ver como agências de propaganda do PT como o site Brasil 247 amiúde reproduzem artigos da FGV, think tank da ortodoxia econômica a que o próprio PT se opõe, desde que seja para criticar a política econômica do governo Temer.
Mas como na esquerda o vaivém da política miúda pela imprensa interessa mais que os dados econômicos, porque é mais fácil mobilizar as torcidas que entender os movimentos do capital para depois atacá-lo, este interessantíssimo debate interessa pouco.
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Saindo dos bastidores da economia para o proscênio da política, toda a confusão neste campo vem, primeiro, da articulação da então oposição para usar todos os meios possíveis dentro da legalidade para tomar o poder; em segundo lugar, do fato de o Judiciário ser a única instituição estável (fora as Forças Armadas) em meio à incerteza; e em terceiro lugar da confluência entre a oposição tornada governo e um Judiciário e uma sociedade onde a monomania punitivista vêm sendo gestada há décadas.
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Como na esquerda é comum esquecer que as regras da representação política e da gestão capitalista não se resumem às eleições, mas à complexa relação entre os três poderes, e que estas relações não excluem acordos de bastidores, chamam de “golpe” o resultado de um cenário onde o Executivo nem tinha maioria parlamentar, e portanto estava suscetível a ver bloqueadas todas as suas propostas políticas, nem tinha qualquer margem plausível de negociação por meio de emendas orçamentárias devido à crise econômica e fiscal que se avolumava desde 2013 pelo menos.
Para piorar, o governo Dilma não tinha como atender os novos reclamos da FIESP sem contrariar suas bases políticas tradicionais nos sindicatos e nos movimentos sociais, o que lançou a FIESP da situação à oposição quando o travamento de pautas no Congresso abalou definitivamente a capacidade de o Executivo impor sua vontade sobre o Legislativo, como é a regra no Brasil desde os primeiros anos da República.
O resultado de todo este imbroglio foi a virada de mesa de 2016. Não podia ser um golpe armado, civil ou militar, pois isto numa economia globalizada afastaria completamente os investidores externos e travaria a participação em fóruns globais de governança política e econômica. Tinha de ser o simples uso das “regras do jogo” para derrubar o governo, e mesmo com a incompetência técnica dos acusadores e a fragilidade técnica dos defensores levada em conta, era a correlação de forças política que importava, e o governo Dilma não tinha mais força alguma. Cumpria tabela, segurava-se como podia, e só. Como num presidencialismo não cabe voto de desconfiança para derrubar gabinetes, o impedimento foi a solução.
As mentes inocentes que argumentam pela ilegalidade do law-fare, que igualam law-fare e golpes sem qualquer nuance (cf. as comparações absurdas do impedimento de Dilma com o de Fernando Lugo no Paraguai, este sim um processo escandaloso que mal durou 36 horas) etc. esquecem-se dos inúmeros exemplos históricos, no capitalismo e também nos regimes ditos “comunistas”, a demonstrar que na política vale tudo – inclusive a lei.
“Ah, mas o governo Temer também está se segurando pelas tabelas”, dizem alguns. Como o PMDB é muitíssimo mais fisiológico e clientelista do que o PT mostrou ser no governo, a sucessiva exposição de ministros e funcionários de alto escalão em “escândalos” de corrupção tornou eleitoralmente tóxico qualquer vínculo com o novo governo, levando a um curioso e pragmático paradoxo: ao mesmo tempo em que partidos como o PSDB cedo desvincularam-se do governo, votam favoravelmente às medidas que este último propõe, pois trata-se de seu próprio e impopular programa sendo aplicado por um governo já notoriamente impopular (as taxas de aprovação do governo não ultrapassam um dígito pelo menos desde o ano passado).
Isto, e o fato de o governo Temer ser como que um “governo tampão” até as eleições deste ano, condenado ab initio à provisoriedade levam à sua lenta sangria política enquanto a equipe econômica segue funcionando sem maiores sobressaltos, e é isto o que importa ao fim e ao cabo. Afinal, derrubar Temer para colocar quem lá, Rodrigo Maia? Trocar seis por meia dúzia? E depois quem, Eunício Oliveira, Carmem Lúcia? Dias Toffoli, que entra no jogo em 13 de setembro quando assumir a presidência do STF? Como diria Tiririca, “pior que está, não fica”.
O governo Temer é um espantalho, um saco de pancadas – desde que a economia funcione e que se tenha alguém em quem bater durante as eleições.
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Curiosamente, retornando brevemente ao campo econômico para tratar de uma sua interface com a política, liberais, desenvolvimentistas e kaleckianos convergem quanto a um aspecto da reforma da previdência: reduzir drasticamente as pensões e aposentadorias no topo da pirâmide previdenciária.
Retornando ao campo político, esta convergência é transformada aqui em ataque a todo o funcionalismo público, e não aos estratos com salários mais altos ou certos regimes previdenciários especiais (como as pensões pagas a filhas solteiras de militares – que não se casam oficialmente para seguir recebendo-as, o auxílio-moradia de juízes etc.), que comprovadamente – é o que dizem num só coro liberais, keynesianos e kaleckianos – oneram enormemente a folha previdenciária.
Da mesma forma, para não mexer nos estratos mais altos, propõe-se um regime previdenciário em que todos terão de trabalhar mais ao longo da vida e receber menos ao final dela, salvo raríssimas exceções.
O problema previdenciário brasileiro tem como base as inegáveis alterações no perfil demográfico da população, mas as soluções apresentadas no Congresso têm sido as piores possíveis do ponto de vista dos trabalhadores, em especial dos mais precarizados que sequer contribuem para o INSS. “É o golpe!” Para quem não acompanha as propostas apresentadas e as mudanças que vêm acontecendo na previdência pelo menos desde 2003, claro, “é o golpe”. Para mim, que as acompanho, é outra coisa.
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A isto se soma um Judiciário formalmente “imparcial”, mas ativamente militante – não no sentido político propriamente dito, mas no sentido de militar em causa própria. Desde que entrei na faculdade sei da parcialidade dos juízes, e de sua monomania persecutória que atende muito mais a seus próprios egos que a qualquer ideologia política claramente delineada.
No Brasil – e em outros países onde não se acede ao Judiciário por meio de eleições – juízes são vitalícios (e portanto não precisam se preocupar com popularidade ou cálculos eleitorais, nem tampouco com perda de cargos), inamovíveis (e portanto não precisam se preocupar com contrariar os superiores por medo de transferências, salvo no que diz respeito à progressão para comarcas mais populosas como resultado do tempo de carreira) e têm salários irredutíveis (e portanto não precisam se preocupar com cortes salariais e medidas do tipo). As preocupações dos juízes em tal sistema são muito diferentes daquelas dos políticos. As confluências dos juízes com políticos, salvo raríssimas exceções, obedece muito mais a esta matriz personalista que ao tipo de cálculos e especulações comuns aos políticos profissionais.
A parcialidade dos juízes, por sinal, é – ou era – o beabá de qualquer formação política na esquerda. Mas há quem queira que eles sejam “imparciais”, e que as leis sejam unívocas (desde que a “nosso” favor, claro).
Um Moro, um Dallagnol, uma “força-tarefa da Lava Jato” etc. não são raios em céu azul, nem tampouco sua notória arbitrariedade. Como em meio à inconstância da minguante base aliada do PMDB e do próprio alto escalão governamental o capitalismo precisa continuar funcionando, o Judiciário é nesta conjuntura a única instituição capaz de manter algum controle político em meio à incerteza – para horror dos políticos, claro.
“Ah, mas o Judiciário não pode ser político”, dizem alguns. Ao que respondo: pura inocência. Uma instituição cuja missão específica não é aplicar a lei (isto o fazem também o Executivo e o Legislativo, cada qual a seu modo), mas resolver conflitos, é uma instituição política ao extremo. Pior ainda quando as três prerrogativas acima fazem dos juízes como que seres postos acima dos demais, a arbitrar conflitos como se “aplicar a lei” não fosse, também, uma política de governo.
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Se estes traços do Judiciário são históricos, eles tornam-se críticos num contexto em que setores da sociedade brasileira de todos os espectros políticos defendem abertamente, e há muitas décadas, desde punições severas contra a “corrupção” até a mais rigorosa severidade contra “ladrões de galinhas”.
Basta dizer a este respeito que a mesma Lei da Ficha Limpa que impede a candidatura de Lula foi construída desde 1997 pela CNBB, pela OAB e por muitas ONGs ditas “progressistas”, e resulta de uma longa coleta de assinaturas para protocolamento de um projeto de lei de iniciativa popular. Lembro-me muito nitidamente de certos diagnósticos, em especial de economistas do INESC, que cito vagamente da memória de ouvir dizer, que apontavam que para cada R$ 1,00 investido no orçamento público, a “corrupção” fazia chegar na ponta do investimento apenas alguns centavos. Era o que nos animava há muitos anos, antes de vermos que o buraco é mais embaixo.
Certo esteve em 2010 o Stédile, que apontou como a Lei da Ficha Limpa poderia ser usada contra candidaturas de lideranças populares que haviam sido presas, processadas etc.; agora já é tarde, Inês é morta, Lula está preso e arrisca vencer uma vitória de Pirro, se vencer. Stédile acertou igualmente em 2001 quando apontou que a Lei de Responsabilidade Fiscal poderia ser usada para cortar investimentos em serviços públicos e investimentos sociais, e os resultados na proposta de orçamento para 2019 comprovam-no.
Veja-se, de outro lado, a nova jurisprudência do STF a autorizar a prisão de condenados em segunda instância. Isto vai contra tudo o que diga respeito à presunção de inocência nos países de tradição jurídica romano-germânica, mas é regra nos países de common law onde acordos judiciais podem resolver mesmo questões penais; enquanto nestes últimos os acordos podem transformar a pena de prisão em outra coisa, pois juízes podem inovar na aplicação de penas, naqueles primeiros os juízes só podem aplicar as penas estabelecidas em lei, e a regra era de preservar a liberdade até que a pena de prisão seja incontestável e irrecorrível.
Mas ora, diria um juiz ou um qualquer cidadão de matriz punitivista, de que vale tudo isto quando se tem no Brasil um Judiciário sobrecarregado de processos, onde há menos juízes que o necessário, onde proliferam os recursos e onde a sensação de impunidade é geral?
A “inflação de recursos” é fato discutível; o que há é o recorrente uso procrastinatório dos recursos, algo já proibido e penalizado nas leis processuais brasileiras – mas quando deveriam aplicar as penas cabíveis para inibir a prática, os juízes são complacentes.
De igual modo, a “sensação de impunidade” explica-se mais pela escassez de juízes, e consequente inflação de processos que demoram décadas até chegarem a sentenças definitivas, que a qualquer permissividade do sistema legal brasileiro, por sinal muito atrasado em diversos aspectos na comparação internacional.
Quando o interesse da burocracia judiciária em reduzir o número de processos e de recursos pela via mais restritiva e que não demande investimentos estatais se soma ao interesse de setores da sociedade em ver mais punições, o resultado não poderia ser outro.
“Ah, mas só mexeram no assunto na hora de condenar Lula”, dirão alguns. Falso: prisão para recorrer foi a regra no Brasil durante séculos, e o debate em torno da questão é mais complexo do que querem fazer parecer as campanhas midiáticas.
Sob o regime do artigo 594 do Código de Processo Penal (este rebotalho fascista, este refugo autoritário do Estado Novo varguista, enfim revogado em 2008), a prisão podia acontecer já na primeira instância, logo depois de uma condenação em primeiro grau, e só era possível recorrer se o condenado estivesse preso, era preciso estar preso para recorrer à segunda instância.
Ainda em 1990 saiu a Súmula 9 do STJ, cujo teor não poderia ser mais claro: “a exigência da prisão provisória, para apelar, não ofende a garantia constitucional da presunção de inocência”. Não foi na ditadura, não foi no Estado Novo, foi em plena vigência da Constituição de 1988.
Tratava-se de dizer, contra as teses da inconstitucionalidade da prisão como requisito para recurso, que a liberdade era a regra, e que como a segunda instância podia julgar o mérito do caso, não era possível exigir que acusados estivessem presos para que recorressem.
Com a revogação do artigo 594 do Código de Processo Penal em 2008, no ano seguinte o STF julgou o habeas corpus 84.078 e decidiu que era inconstitucional a chamada “execução antecipada da pena”, ou seja, aquilo que diziam tanto a Súmula 9 do Superior Tribunal de Justiça quanto o artigo 594 do Código de Processo Penal, a esta altura já revogado. A novidade foi alargar o debate para que os condenados recorressem em liberdade até o fim de todas as possibilidades de recursos, incluindo aí os tribunais superiores (STF, STJ etc.).
Todo este processo, a meu ver muito positivo, gerou uma gritaria generalizada em meio aos setores punitivistas, dos quais Sergio Moro é um dos mais visíveis representantes. A gritaria resulta em que, em 2016, o STF recuou parcialmente, restringindo as possibilidades de recurso em liberdade e permitindo a execução da pena depois da decisão de segunda instância.
Nos estritos termos deste debate, defendo a tese da liberdade dos acusados antes de esgotados todos os recursos, não somente os de segunda instância. No campo muito restrito da “técnica jurídica” (ou seja, o senso comum dos juristas), entretanto, a nova jurisprudência do STF faz sentido, pois depois da decisão de segunda instância não se julga mais o mérito da questão, apenas questões procedimentais; e como é a “técnica juridica” quem define as coisas no direito, em especial depois de sete anos de debates acesos sobre o assunto na “comunidade jurídica”, não dá para dizer que a jurisprudência do STF tenha mudado única e tão somente em função de Lula.
Mas é claro, não é preciso ser de extrema-direita para dar crédito a teorias da conspiração. O próximo passo, decerto, é afirmarem os defensores da tese do “golpe” que todo o STF, e não apenas Moro, foi comprado pelo “imperialismo ianque”. Mesmo os filósofos medievais mais abstrusos conseguiam pensar o mundo por meio de modelos causais bem mais sofisticados, e entendiam o que vai por trás da frase post hoc ergo propter hoc.
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Tudo isto, claro, levando-se em conta tudo quanto necessário para que no Brasil o capitalismo mantenha sua coesão.
Para um revolucionário deveria interessar mais tudo quanto possa facilitar o inter-relacionamento social genérico entre trabalhadores, todas as oportunidades de estarem juntos fazendo alguma coisa, e o que fazem quando estão juntos. Deveria interessar tudo quanto lhes sirva de instrumento para alguma ação coletiva. Deveria interessar toda e qualquer mobilização de trabalhadores, das mais simples e isoladas às mais massivas e combativas.
Mas como mesmo os revolucionários por aqui têm sido dragados pela voragem midiática em torno destas questiúnculas, as ações dos trabalhadores passam ao largo, interessam apenas quando são “a favor” ou “contra” os participantes desta dança das cadeiras. Por isto, é preciso dizer alguma coisa sobre o assunto, mesmo a contragosto.
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Não acreditar que o impedimento de Dilma tenha sido um “golpe” implica em apoiar o governo Temer? Vade retro! Mas, como se sabe, este non sequitur, verdadeiro zdanovismo redivivo, é a acusação que mais se lança contra quem não aderiu e nem adere à histeria.
Não acreditar que o impedimento de Dilma tenha sido um “golpe” implica em viver de fazer detonação com tudo o que fazem hoje os integrantes do campo político apeado do poder? De forma alguma. Claro, há quem aposte nisso (os agitadores do “necrogovernismo” e que tais), mas fora de um contexto de futrica de redes sociais e picuinha de intervalo do 6º ano do ensino fundamental isto não se sustenta. Há espaço para que concordemos em questões pontuais e muito específicas. Por sinal a maioria de tais questões já vinha sendo pontuada pela extrema-esquerda durante os governos Lula e Dilma – mas, já dizia o velho Léon Blum, “a gente muda perspectiva quando vira chefe de governo”.
Por isto mesmo, passo reto por ações conjuntas cujo único objetivo é jogar água no moinho lulista. Em especial em 2018. É possível, sim, encontrar convergências práticas com este campo, mas sempre com muito tato e cuidados, pois sua posição oposicionista é conjuntural e há a tendência nele de esquecer o passado – exceto o que lhe aproveita, claro.
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Eis, em suma, o que penso acerca da “confusão” pelas bandas de cá. Trata-se do desenvolvimento de posições que venho mantendo e defendendo há quase três anos.
O problema de dizer isto tudo é a fatigante sensação de pregar no deserto. De perorar aos abutres, corvos, pegas, gralhas, milhafres e demais aves de rapina. De ter de demonstrar, mais uma vez e ainda outra, tudo isto junto aos defensores da tese do “golpe”, cuja mistura entre fantasia e realidade torna-se cada vez mais problemática para a esquerda como um todo.
Porque aí precisa-se descer ao miúdo, a cada medida governamental, a cada decisão judicial, a cada correlação entre medidas, decisões e datas, a cada gravação vazada, a cada “escândalo” presente ou passado, a cada centavo – em suma, contestar no varejo coisas que só se entendem no atacado, pois trata-se de várias tendências políticas, econômicas e sociais de ritmos, origens e resultados distintos manifestando-se simultaneamente na conjuntura.
Como o campo político apeado do governo federal pretende estabelecer uma linha discursiva e argumentativa sólida para cacifar seu lugar na oposição e lastrear uma nova corrida ao poder (em outros tempos, a histeria “contra a corrupção” serviu-lhe para o mesmo efeito); como há um público ávido por explicações simplificadoras em meio à complexidade da vida, máxime quando se trata de uma vida em meio a uma economia cada vez mais globalizada, com meios técnicos cada vez mais complexos etc., junta-se a fome com a vontade de comer e temos aí um prato feito.
Como não vivo disso e tenho mais o que fazer, simplesmente digo tudo o que disse acima quando me falam de “golpe”, dou de ombros, tampo os ouvidos e rogo a Santo Errico Malatesta por paciência.
Em outro canto, Leo Vinícius apressou-se a publicar este comentário ao artigo:
Respondi-lhe assim:
é no mínimo engraçado que Leo Vinicius tenha recentemente escrito um texto criticando Pablo Ortellado por sua análise liberal e institucionalista sobre junho de 2013, mas insista em uma análise estalinista e institucionalista para tratar o impedimento de Dilma.
A questão me parece mais grave. Quem ler o artigo com olhos de quem lê verá que:
1) Em momento algum defendi que “não houve golpe usando o argumento de que o governo do PT fazia política econômica dentro dos princípios hegemônicos de gestão pública do capitalismo global”.
2) Em momento algum disse ou insinuei que “não foi golpe porque ele considera que o governo do PT nao era suficientemente rebelde ou anticapitalista”.
3) Em momento algum afirmei que “golpe de Estado se dá apenas contra governos demasiado arredios ao capital”.
Leo Vinicius parece estar argumentando contra o que outra pessoa escreveu. Por que ele resolveu argumentar contra o que eu não disse, não faço a menor ideia. Acho, entretanto, muito sintomática esta argumentação contra o nada e contra ninguém.
Penso eu em que consiste tamnho esforço. Quais os efeitos possíveis desse artigo naqueles que o lêem? Tese importante é tentar demonstrar o andamento normal – do ponto de vista da ideologia jurídica burguesa – dos atos processuais que culminaram em tal “golpe”. Não vejo como essa reflexão pode nos interessar. Ela é um convite – ou arapuca – a pensar o discurso dominante no campo da esquerda a partir de sua consistência com a … teoria jurídica? Acho que o ponto de partida não é pensar a contingência da tese do golpe, mas sua necessidade. Por que é essa a tese que tem hegemonia entre aqueles que se dizem a favor dos trabalhadores?
Não houve e nem haveria necessidade de pressa da parte de Leo Vinícius para responder ao seu texto, pois um análise detalhada levaria às mesmas conclusões que ele teve. O que acontece é que logo no início voce desvia de tal forma dos fatos que fica evidente o quanto ideológica, ou idealista, é sua perspectiva. A melhor observação que ele faz é quando critica voce no que concerne ao fato de que “golpe de Estado se dá apenas contra governos demasiado arredios ao capital”, justamente onde voce tenta defender sua argumentação e não o faz. É sabido que os golpes na América Latina tem se perpetuado contra presidentes reformistas e nacionalistas. em suma, guardiões de interesses capitalistas. Seria de melhor tom analisar porque do apoio massivo da classe capitalista local a uma inciativa catastrófica como esta. Houve sim um golpe contra a classe trabalhadora, não houve um golpe no PT, pois este tem (e principalmente mantém) um cordão umbilical que o atrela ao “sistema político” que o desqualifica a falar em golpe.
Os preocupados com as bancas de avaliação e com a academia podem versar anos sobre o “golpe” ou “não golpe”.
Politicamente, agitar a palavra golpe tem a função exclusiva de direcionar a luta social contra uma arbitrariedade política, uma jogada “fora das regras”, e é por isso que na maioria dos casos na américa latina a luta nunca se dava contra um “golpe” mas sim contra o novo regime que se instalava. A questão é que existe um setor que quer ser mais papista que o Papa, já que o PT em nenhum momento expressou vontade de lutar contra o “golpe” nem nunca denunciou a instalação de um novo regime no país, então ele se tornou pura retórica eleitoral – e a esquerda eleitoralista que faz seguidismo do PT para não parecer sectária acaba gritando “golpe” mais forte para parecer mais autêntica que o próprio PT.
“‘Golpe’ contra a classe trabalhadora” é apenas mais uma mostra do uso tosco das palavras e expressões, mais uma forma do conceito “ingênuo” de golpe como “jogada, cama-de-gato, etc”, que poderia ser usada também para referir-se à reforma da previdência do primeiro governo Lula, para a repressão brutal contras as greves em Jirau, para a repressão brutal contra as manifestações de 2013, para todas as vezes que Lula e Dilma permitiram a entrada do exército nas favelas do Rio (a pedido dos governadores amigos), enfim, “golpes” à classe trabalhadora é que há de menos novo no cenário da luta de classes brasileira.
Ricardo Pinto segue a mesma linha de Leo Vinícius: argumentar contra o que eu não disse. Incorre, portanto, nos mesmos problemas. Nem seria o caso de refutar este tipo de argumentação, mas como isto abre a oportunidade para desenvolver melhor alguns pontos que no artigo estão apresentados de modo bem resumido, aproveito para fazê-lo.
Antes de seguir, insisto e repito: não disse, sequer nas entrelinhas, que “golpe de Estado se dá apenas contra governos demasiado arredios ao capital”. Golpes de Estado aplicam-se contra governos de esquerda e contra governos de direita. Basta olhar para os golpes que aconteceram na História para comprová-lo. Convido os que querem dizer que eu disse o que não disse a localizar aqui neste artigo, ou em qualquer outro de minha autoria na internet, afirmação semelhante, ou mesmo uma insinuação neste sentido. O Google está aí para isso. Acho, um pouco lateralmente, que nesta linha de argumentação explicita-se a tragédia da educação brasileira, pois analfabetismo funcional é a qualificação mais leve que posso dirigir a quem argumenta contra moinhos de vento com este tipo de tresleitura.
O tal “desvio dos fatos”, na verdade, é pura e simplesmente uma mudança de perspectiva. Os que defendem que “foi golpe até por manual de ciência política” pautam-se por uma interpretação muito particular, criada a partir de 2016, de um livro do estrategista estadunidense Edward Luttwak e de um verbete do Dicionário de política organizado por Norberto Bobbio. O que trago neste artigo é uma interpretação dos fatos com base na economia, cruzando-os com a política. Vê-se por este método a política econômica, suas continuidades e rupturas. Vê-se também a quem interessa tal ou qual medida econômica, e o que fez quando contrariado. Vê-se também as consequências das decisôes econômicas do governo Dilma/PT relativamente aos sujeitos com quem elas haviam sido pactuadas, seja explicitamente (caso da FIESP e das centrais sindicais para a política “desenvolvimentista”), seja implicitamente (caso das centrais sindicais, quando o governo Dilma/PT foi pressionado pela FIESP a adotar uma política que romperia com esta base de sustentação do governo).
O ponto de divergência entre o governo Dilma/PT e os capitalistas, de quem a FIESP é o maior exemplo, foi precisamente o avanço na destruição de garantias trabalhistas. O “golpe contra a classe trabalhadora” estaria aí. Se bem que mesmo nisso é preciso ver as coisas com calma, pois a desoneração da folha de pagamento em vários setores, medida com certa centralidade na política econômica “desenvolvimentista” do governo Dilma/PT, não ataca os direitos trabalhistas (algumas destas desonerações ainda estão em vigor), mas afeta a capacidade de custeio da previdência por força das renúncias fiscais, e portanto tem impacto direto sobre a questão previdenciária que só não foi adiante por causa do bloqueio de pauta constitucional causado pela intervenção militar no Rio de Janeiro. Atacar a previdência, reduzindo uma de suas fontes de custeio, é ou não um ataque contra os trabalhadores? Não sei o que pensam a respeito os defensores da tese do “golpe”, mas entendo isto como um ataque bem direto.
É precisamente por esta ótica das continuidades e rupturas na política econômica que os defensores da tese do “golpe” poderiam aprofundar o debate, trazendo os elementos da economia capazes de confirmar sua própria tese. Mas não o fazem. Preferem a simples teoria da conspiração. Justo onde poderiam apresentar pontos importantes para um debate público, não apresentam nada.
Quanto aos golpes na América Latina, sim, eles atacaram muitos presidentes “reformistas” e “nacionalistas”. Trata-se de história, de fatos históricos, isto é inegável. Mas é preciso ter cuidado para não ver as coisas somente pelo lado que nos interessa. Assim como houve golpes de Estado contra estes presidentes “reformistas” e “nacionalistas”, houve também na história da América Latina golpes de Estado que restringiram-se à disputa entre classes dominantes. Para não sairmos de nosso quintal, a própria fundação da república no Brasil, assim como a “revolução de 1930”, são exemplos bem marcantes.
(Mesmo quando se tem em vista apenas os presidentes “reformistas” e “nacionalistas”, é preciso deixar bem claro o que se quer dizer com isto, porque, por exemplo, “reformista” e “nacionalista” foi também o filofascista Juan Perón, ele próprio integrante do Grupo de Oficiales Unidos responsável pelo golpe de Estado de 1943 na Argentina e depois ele mesmo derrubado por um golpe de Estado em 1955.)
O que questiono, ao que me parece com bastante razão, é o fato de que nenhum destes golpes se parece, por qualquer critério, com o “golpe” que tirou Dilma e o PT da presidência. A única semelhança notável destes golpes da História e o impedimento movido contra o governo Dilma/PT está no fato de que houve, sim, muita conspiração nos bastidores e no proscênio em todo o processo do impedimento — mas, convenhamos, quem acredita que a política de Estado se faz às claras, abertamente, sem conspiração e conluios, estes sim são muito inocentes.
Nesta mesma linha, se há um fato incontestável, é o de que “golpe contra a classe trabalhadora” é o próprio funcionamento normal do capitalismo. Se a simples extração de mais-valia — olhem bem, reparem, prestem atenção naquilo que estou chamando de “simples” de modo bem exagerado! — já é a exploração econômica funcionando a pleno vapor, é o próprio assalariamento, é a própria submissão dos trabalhadores à exploração dos capitalistas que é um golpe. Isto é o beabá anticapitalista. A não ser, é claro, que a exploração econômica diária de milhões seja, para pegar leve, “justa”.
Existe uma versão mais suave e refinada deste argumento: a agenda econômica implementada desde 2016 em diante aprofundou os mecanismos da exploração capitalista. Em especial pelos seguidos ataques à organização sindical, à perda de direitos trabalhistas etc. Ora, mais uma razão pela qual mostram sua inocência os defensores da tese do “golpe”, pois numa crise recessiva como a de 2014-2017 é precisamente isto o que os capitalistas farão por conta própria se não conseguirem convencer os governantes de plantão a apoiá-los. Estamos falando de briga de cachorro grande, de gente que sabe muito bem o que está em jogo nesta briga, e que optou por uma política econômica ao estilo “primeiro crescer, depois dividir” cujos impactos mais perversos foram minimizados por políticas sociais exitosas cujo próprio financiamento ficou comprometido pela intensidade da crise e por muitos, mas muitos diagnósticos equivocados quanto à conjuntura.
Paralelamente a isto, o que tentei apresentar de forma muito rápida neste artigo foi como parte significativa da política econômica implementada pelo governo Temer/PMDB já vinha sendo gestada durante o governo Dilma/PT, ou mesmo antes. Teto de gastos e reforma da previdência (a geral, porque a do funcionalismo público foi o próprio PT quem implementou), tudo isto não vinha sendo apenas debatido no governo (como se “debate” no Ministério da Fazenda fosse coisa pequena como uma conversa de mesa de bar); houve tentativas de implementar tais medidas.
Para simples comparação, tomemos o teto de gastos na versão apresentada por Nelson Barbosa, ministro da Fazenda de Dilma, em 19 de fevereiro de 2016.
A comparação entre o plano de teto de gastos de Nelson Barbosa (ministro de Dilma), materializado no PLP 257/2016 e o de Henrique Meirelles, materializado na Emenda Constitucional 95, é bem rotineira e conhecida.
(Como o plano de teto de gastos de Antônio Palocci (de 2005) nunca chegou a ser materializado em qualquer proposta antes que Dilma o desautorizasse em público, infelizmente não é possível conhecer o que a equipe econômica do primeiro governo Lula projetava sobre o assunto na época.)
Muitos economistas já compararam os dois planos, dos mais “ortodoxos” aos mais “heterodoxos”; todos apontam como a EC 95 é inexequível. Isto é fato, basta ver em primeiro lugar seus mecanismos e em segundo lugar seu longo prazo.
Qualquer pessoa interessada, entretanto, verá que entre o PLP 257/2016 e a EC 95 há muitas semelhanças de mecanismos, escondidas sob a enorme divergência de prazos. Nomeadamente, no que diz respeito aos casos de descumprimento: proibição à concessão de vantagem, aumento, reajustes ou adequação de remunerações a qualquer título, ressalvadas as decorrentes de atos derivados de sentença judicial; limitação do crescimento das despesas ao crescimento da inflação; proibição à edição de novas leis ou a criação de programas que concedam ou ampliem incentivo ou benefício de natureza tributária ou financeira; suspensão à admissão ou contratação de pessoal etc., tudo está lá no PLP 257/2016. Muitos dos mecanismos da Emenda Constitucional 95 parecem um literal corta-e-cola do PLP 257/2016, mas para reconhecê-lo seria preciso ter lido e comparado as duas normas.
Há questões na EC 95 muito piores que o prazo, como o fato de precisar de 2/3 para alteração (já que é de constituição que se trata, não de lei ordinária). Há mecanismos comuns aos dois planos que promovem um literal suicídio fiscal. Mas — e é o que importa para o debate — é preciso reconhecer um “golpe” contra o governo Dilma para tratar da sucessão de ataques à classe trabalhadora representados pela EC 95? Não. Quem argumenta por esta linha entra num non sequitur, numa conclusão equivocada, numa conclusão que não decorre dos fatos que se está a analisar.
Por outro lado, permito-me um pequeno exercício de pensamento. Houvesse correlação de forças para aprovar o PLP 257/2016 quando de sua proposição, ele estaria hoje em vigor, com efeitos muito semelhantes aos da Emenda Constitucional 95, dado que o prazo dele é de quatro anos, revisável a cada quatro. A história não se faz com os “se”, mas é de se perguntar se o quadro de desinvestimento estatal em várias áreas, dada a semelhança de mecanismos e o fato de em 2018 ainda nos encontrarmos no que seria a vigência inicial do PLP 257/2016, não seria muito semelhante. Seria o teto de gastos do PLP 257/2016 um “golpe contra a classe trabalhadora”? Nunca saberemos, pois o governo Dilma/PT foi derrubado antes que pudesse implementar tais medidas. Mas a curiosidade não sai da minha cabeça.
Depois de escrever tudo isto, me vejo fazendo exatamente aquilo para o que disse não ter mais a menor paciência: “descer ao miúdo, a cada medida governamental, a cada decisão judicial, a cada correlação entre medidas, decisões e datas, a cada gravação vazada, a cada “escândalo” presente ou passado, a cada centavo – em suma, contestar no varejo coisas que só se entendem no atacado, pois trata-se de várias tendências políticas, econômicas e sociais de ritmos, origens e resultados distintos manifestando-se simultaneamente na conjuntura”. Por isto, fico por aqui. Convido quem quiser entender o que afirmo com argumentos bem mais extensos e recheados de dados a ler a série Fascismo à brasileira?, que escrevi e o Passa Palavra está publicando aos poucos.
Um dos méritos do Passa Palavra, e que é talvez a razão principal da sua existência, é dirigir a perspectiva crítica não só para o outro lado, o lado do capital, mas também para o lado de cá, o da esquerda — essa tão difusa e indefinida esquerda. É por isso que o Passa Palavra incomoda, e ainda bem, porque é confrangedor ver uma esquerda atolada em derrotas e confortavelmente sentada na certeza das suas certezas. É nesta perspectiva que eu entendo o debate entre os que defendem que houve golpe e os que defendem que houve «golpe».
Trata-se de um debate tão importante, e mais importante ainda será depois de se conhecer o resultado das próximas eleições presidenciais no Brasil, que eu receio vê-lo enleado em minúcias semânticas ou, pior ainda, na escolha de sinais gráficos. Por isso proponho-me fazer o contrário e, em vez de afunilar a discussão, ampliá-la.
1) Antes de mais, ampliá-la no contexto brasileiro. É certo que Dilma Rousseff foi vítima de um impeachment e não de um processo judiciário, mas a sua destituição não teria decerto ocorrido se não fosse o avassalador conjunto de processos de corrupção e a ameaça de continuarem. Ora, estes processos, que enfraqueceram decisivamente o PT e o impedem agora de apresentar como candidato a única figura política a que ele se reduziu, atingiram igualmente políticos muito importantes de outros partidos. E o afã judiciário que destronou o PT deixou inoperante o governo que se lhe seguiu. Acho realmente curioso que a mesma esquerda que ataca as investigações policiais e as decisões do judiciário quando elas se orientam contra o PT use e divulgue os resultados dessas investigações quando visam os outros partidos. Ora, é só no âmbito conjunto de toda essa acção policial e judiciária que o impeachment de Dilma pode ser analisado.
2) Mas o âmbito do problema é mais vasto ainda porque, ao contrário do que os brasileiros imaginam, o Brasil existe no mundo e é atravessado pela mesma teia de problemas que atravessa o mundo. Ora, numa variedade de países, em diferentes latitudes e com histórias e regimes políticos que não se confundem, observa-se nos últimos anos um igual reforço da iniciativa do poder judiciário. Um dos casos mais importantes é o da demissão de Jacob Zuma na África do Sul, em Fevereiro de 2018, e não menos significativos foram, em 2016-2017, o impeachment e a posterior prisão da presidente Park Geun-hye na Coreia do Sul. Com a demissão da presidente Ameenah Gurib-Fakim, em Março de 2018, as Ilhas Maurícias oferecem igualmente um exemplo, tal como tem sucedido em alguns países do Leste da Europa. Ainda recentemente na Roménia os choques entre o judiciário e o executivo levaram a confrontos de rua mais violentos do que tudo o que se presenciou no Brasil. O reforço da iniciativa do poder judiciário pode parecer estranho porque, salvo algumas excepções, este poder não resulta de eleições, contrariamente ao que sucede com o executivo e o legislativo. No entanto, desde há muito que os apologistas da democracia representativa a definem não em função da soberania popular mas em função do equilíbrio entre os poderes. Nesta perspectiva, devemos averiguar quais os motivos que têm levado em diversos países ao reforço da iniciativa do judiciário.
Parece-me que só assim, ampliando muito o terreno da análise, a discussão entre os aspistas e os anti-aspistas poderá continuar a ser frutuosa.
Não conheço a maior parte dos exemplos apresentados pelo João Bernardo, mas levando em conta a presença, entre eles, da África do Sul (um pedaço dos BRICS), da Coreia do Sul (um dos tigres asiáticos) e das ilhas maurícias (conhecidíssimo paraíso fiscal), países muito bem integrado nas malhas da economia global, diria que as duas hipóteses complementares que ele apresenta convergem com algo dito de modo quase tangencial no ensaio: “Não podia ser um golpe armado, civil ou militar, pois isto numa economia globalizada afastaria completamente os investidores externos e travaria a participação em fóruns globais de governança política e econômica. Tinha de ser o simples uso das “regras do jogo” para derrubar o governo […]”. Claro, trata-se apenas de duas frases, e a inserção do caso brasileiro no contexto internacional pediria a apresentação de um quadro mais amplo de referências e de comparações de casos similares. Mas acho, sim, uma perspectiva muito boa para que o debate saia da esterilidade.
Um dos efeitos imediatos do Junho de 2013 foi a derrubada da PEC 37, que reforçava a norma constitucional de que as polícias tinham o monopólio da investigação criminal. É depois disso que o MP começa a abrir as asinhas. Muito provavelmente não haveria Lava Jato sem a revogação da PEC 37.
É bom não se esquecer que a derrubada da PEC 37 foi uma da pautas alienígenas incluídas nas Jornadas de Junho depois de os coxinhas apareceram para o mundo. Essas pautas alienígenas engoliram a pauta original de uma forma tão avassaladora que parecia coordenada.
Uma investigação sobre como se deu o reforço da iniciativa do judiciário nesses países citados pode ser um bom início de caminhada nesse vasto terreno.
Mais um para a lista de casos internacionais semelhantes ao do Lula: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2018/09/17/cristina-kirchner-vira-re-no-caso-dos-cadernos-das-propinas.ghtml
Ou seja, outro caso para chamarem de “perseguição política” ou, sabe-se lá, até de “golpe”.
O caso dos “cuadernos de las coimas” é uma caricatura argentina da Lava-Jato brasileira. Vamos a alguns detalhes:
1) Diferente da tese de João Bernardo, na Argentina o poder judicial é um fantoche ridículo. Ele não difere muito do resto do Estado nacional: ao ganhar as eleições, o novo governo tem o direito a trocar praticamente todos os quadros médios administrativos, não existem funcionários de carreira. O mesmo ocorre no setor judicial: o novo governo vai pressionando até conseguir a remoção de personalidades opositoras de funções como Procuradoria Geral, os juízes das principais cortes, etc. Se existiu uma profunda diferença do peronismo com o varguismo foi a consolidação do Estado como uma corporação específica, no caso do segundo, enquanto que na Argentina o Estado sempre foi “recheado” por corporações com certa autonomia (o PJ e o peronismo sindical são expressões disso).
2) De todas formas, o caso dos “cuadernos de las coimas”, que são fotocópias de supostos cadernos onde o motorista (ex-militar) de um funcionário do kirchnerismo anotava a entrega de bolsas e as quantias de dinheiro de cada uma, é uma trama bem pouco verossímil (por que é que um simples motorista teria conhecimento de tudo isso? por que é que as evidências físicas foram destruídas? etc), mas que serviu de base para a prisão preventiva de mais de 30 empresários que imediatamente procederam à delação premiada, ferramenta terrorista-jurídica utilizada por primeira vez na Argentina. Os empresários já estão todos soltos e agora o juiz responsável está tentando prender Cristina com base a estas delações. A Lava-Jato demorou quase 4 anos para prender Lula, os “cuadernos de la coima” está tentando fazer tudo isso em 1 mês.
3) Um último aspecto sobre a palavra “golpe”. Desde que Maurício Macri chegou ao governo, foram diversas as vezes que a oposição foi acusada de “golpismo” por sugerir que uma crise econômica e política poderia fazer com que Macri repetisse a famosa cena do helicóptero de 2001. Sempre quando aparecem notícias de saques a supermercados em algum lugar do país, vozes se levantam para dizer que existem setores “golpistas” estimulando o caos. Quando o dólar salta 5%, se trata de um “golpismo financeiro”, etc etc etc. Enfim, sempre se tratou de uma disputa narrativa muy republicana para quem não quer falar de luta de classes.
Bem interessante esta matéria (https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/09/pt-segue-com-lula-mas-partido-socialista-me-deixou-diz-ex-premie-de-portugal.shtml). O político português se lamentando porque o partido dele, ao contrário do PT, demonstrou vitalidade como instituição ao afastar-se dele, enquanto o PT demonstrou o nível de sua degenerescência ao prender-se ao único cacique que lhe restou.