Por Mencheviques
Apresentação do documento
É bem conhecido o fato de os mencheviques terem sido opositores do comunismo de guerra durante a Revolução Russa. Menos conhecido é o fato de que esta oposição não era puramente verbal; ela foi consolidada num programa escrito em 1919, de autoria incerta (mas frequentemente atribuída a Julius Mártov), que serviu de base à participação dos mencheviques no Sétimo Congresso Pan-Russo dos Sovietes (dez. 1919). O documento encontra-se hoje disponível na íntegra na coletânea organizada por Abraham Ascher, The Mensheviks in the Russian Revolution (Londres: Thames & Hudson, 1976, pp. 111–117).
É um documento surpreendente, que deve comparado com as medidas implementadas pela Nova Política Econômica (NEP) em 1921. É flagrante, ainda que partam de pontos de vista radicalmente distintos, a semelhança de algumas das propostas econômicas do programa menchevique de 1919 com aquelas defendidas por Lênin em 1921, que o mesmo Lênin combatera em 1919 (documento em inglês) no Sétimo Congresso Pan-Russo dos Sovietes.
A comparação não nos interessa por si só. O que está feito está feito, não adianta nada fazer exercícios especulativos como “o que aconteceria se o programa menchevique houvesse sido adotado?”, ou “o que aconteceria se as medidas da NEP houvessem sido implementadas durante a guerra civil?”.
O programa menchevique interessa por evidenciar uma lacuna historiográfica, ao menos no mundo lusófono. O que levou os mencheviques a propor tais medidas? Teria algo a ver com sua experiência à frente do governo da Geórgia entre 1918 e 1921? Que relação guarda o programa com outras posturas e ações mencheviques durante a guerra civil?
A não ser que tomemos os impropérios dos polêmicos discursos de Lênin como verdade histórica inquestionável — o que não são — trata-se de questões importantes para entender o panorama de alternativas históricas postas durante a Revolução Russa, e por que a História foi o que foi.
Passa Palavra
Aos trabalhadores da Rússia: o que fazer?
A Revolução Russa encontra-se cercada por perigos internos, catástrofes e inimigos externos – Kolchak, Denikin, Yudenich e os aliados imperialistas – bem como pela falta de comida e combustíveis, pela escassez de bens, pelo aumento avassalador de todos os preços, pelo desespero e indiferença das massas trabalhadoras, pelo ódio dos camponeses e desespero dos citadinos. O que fazer se queremos salvar a revolução? É este o problema que perturba todos os trabalhadores politicamente conscientes que veem suas energias e forças exauridas a cada dia, e também a insatisfação das massas desesperadas, as greves e levantes que pioram ainda mais a situação.
O Comitê Central do POSDR chama a atenção ao programa que provê a única saída (do ponto de vista do Comitê Central) aos trabalhadores organizados em várias tendências – os social-democratas, os comunistas, os socialistas-revolucionários de esquerda e de direita, os militantes partidários.
Todos os trabalhadores conscientes devem objetivar a defesa da Revolução e garantir seu desenvolvimento normal e sadio, de modo a poderem unir-se ao proletariado revolucionário do Ocidente numa forte onda, e levar os princípios do socialismo a cada nível da vida política. Para este fim, devemos construir, fortalecer e proteger o poder político de nossa classe trabalhadora sobre alicerces sólidos como pedras; devemos trabalhar pela revitalização de nossa economia, ferida pelos quatro anos de guerra no estrangeiro e dois anos de guerra civil.
Como chegaremos a tal objetivo?
A primeira e mais fundamental tarefa é, evidentemente, ganhar a guerra, defender os ganhos do poder operário e da revolução contra seus inimigos, e prover alimento e matérias-primas ao país. Devemos fazer todos os esforços possíveis para derrotar os capangas contrarrevolucionários que atacam a Rússia soviética e mostrar aos governos europeus e a seus povos que nossa revolução não poderá ser derrotada no campo de batalha – o que levará os Aliados a parar a sangrenta carnificina.
Mas a guerra liga-se estreitamente aos problemas econômicos e políticos. Não basta derrotar um Armstrong ou um Denikin e afastar suas forças de Moscou. Devemos nos assegurar de que não possam contra-atacar em menos de três meses. Os camponeses, trabalhadores e todo o povo explorado, prontos a lutar com suas pequenas tropas e grupamentos sob a bandeira da contrarrevolução porque, como resultado da indiferença, ódio, exaustão ou devastação dos camponeses e trabalhadores, o poder revolucionário não consegue mobilizar força suficiente para obter uma vitória rápida e decisiva; eles não podem se agrupar. Em poucas palavras, devemos por um fim à situação na Ucrânia e na Bielorrússia, nas bacias do Don e do Volga, nos Urais e na Sibéria, onde eles recepcionam calorosamente o poder revolucionário, o primeiro a salvá-los dos terratenentes e guardas-brancos; mas que dois meses depois sentiram falta da velha ordem e puseram-se a salvar-se a si próprios das dificuldades da administração revolucionária, dos atos de violência ofensivos à nossa causa e das atividades ilegais.
Se tivermos sucesso no combate aos contrarrevolucionários, devemos por fim às turbulências econômicas e ao crescente pauperismo em meio aos trabalhadores, que torna impossível equipar e transferir trabalho ou mesmo receber apoio pronto e apto dos trabalhadores e camponeses. Devemos melhorar os meios de produção e de troca implementados na Rússia soviética até o momento, e empregar melhor as forças sociais capazes de estimular a economia, melhor do que fizemos até agora. Em poucas palavras, devemos mudar drasticamente nossa política econômica e parar de adotar medidas parciais ou casuísticas, e devemos fazê-lo para por fim às mais recentes reclamações em nosso campo; devemos trabalhar de acordo com algum tipo de plano, e com um só propósito; deve-se permitir às organizações fazer tudo aquilo que o Estado pode fazer com seus recursos, e também permitir a indivíduos, organizações e grupos privados desempenhar tarefas que executem de modo mais conveniente e rápido que o Estado.
Ao mesmo tempo, se queremos resolver a questão militar e lidar com nossas urgentes necessidades econômicas, devemos também avaliar corretamente e resolver o problema político. No atual sistema, o poder está nas mãos de um só partido representativo de um pequeno segmento da população, e sem qualquer controle pelas massas, privadas de seus direitos, recorrem livremente ao terrorismo. Neste sistema, é óbvio que a defesa militar não resolverá as questões, nem pode suportar o caos econômico. Ele deveria ser empregue para melhorar a situação dos trabalhadores; mas levanta fundos públicos não-contabilizados, e nas províncias confere autoridade e privilégios a burocratas e a um pequeno número de trabalhadores e camponeses que desprezam seus concidadãos ao agir como burocratas; por toda parte o governo preenche seus escritórios e instituições com burocratas incompetentes que valorizam o ser humano de acordo com sua obediência à autoridade, não de acordo com suas habilidades.
Este sistema permite aos burocratas e às células comunistas privilegiadas bloquear, prevenir e distorcer o que não desejam, seja o beneficial, seja o necessário. A polícia e a Cheka têm papel decisivo nos destinos de cada trabalhador e de cada vila, assim como dos intelectuais e da burguesia… Os camponeses e as massas trabalhadoras perdem completamente o interesse pelos assuntos tratados em longas e impenetráveis reuniões políticas. A revolução somente poderá ser salva de imediato deste perigo implacável pela ação entusiástica, independente e criativa das massas; não obstante, os trabalhadores comuns e os aldeões, e também os membros responsáveis do proletariado, entram em letargia, e frente aos enormes esforços de combate à contrarrevolução, de melhoras na produção e na disciplina do trabalho, veem horrorizados murmúrios de indiferença. Os trabalhadores e camponeses agem como se dissuadidos de um papel livre e independente na vida política. Não se sentem mais senhores do Estado, nem que o governo e os funcionários públicos estejam a seu serviço; pelo contrário, aprenderam que o poder deles é, de fato, independente da vasta maioria do povo.
Eis por que devemos não somente lutar energeticamente e promover reformas econômicas radicais, mas mudar com igual radicalismo o sistema político.
Por esta razão, o Comitê Central do POSDR apela a todos os trabalhadores politicamente conscientes; o colapso econômico e as más condições da classe trabalhadora podem ser prevenidos, os trabalhadores e as massas democráticas poderão renovar sua fé na Revolução, a Rússia revolucionária será capaz de organizar-se de modo expedito e aumentar sua capacidade bélica, de acordo com as seguintes medidas.
Medidas econômicas
1. Os camponeses poderão reter, em bases individuais ou coletivas, tal como for de sua livre decisão, as terras públicas e privadas que tomaram e parcelaram durante a revolução. Outras terras, ainda não distribuídas, devem ser emprestadas em longo prazo para os camponeses necessitados e para as associações de camponeses, exceção feita às terras onde a atividade agrícola de larga escala estiver sendo desenvolvida e puder continuar a sê-lo, seja pelo Estado, seja por arrendatários. Os decretos abolidores dos Comitês dos Pobres devem ser postos em prática sem exceção.
Comunas agrícolas não deverão ser estabelecidas pela força, seja direta, seja indiretamente. Suprimentos, implementos agrícolas e sementes em posse do governo deverão ser equitativamente distribuídos não apenas entre as comunas, mas também a todos os camponeses que deles precisem nas comunas e terras de sovietes.
2. O atual sistema de abastecimento alimentar deve ser substituído por outro, nas seguintes bases:
a. O Estado deverá comprar grãos a preços acordados, envolvendo larga aplicação do princípio do escambo; eles devem, então, ser vendidos a preços módicos aos moradores mais pobres da cidade e do campo, com o Estado cobrindo a diferença. O Estado deve fazer compras por meio de seus agentes, de cooperativas ou de negociantes privados, estes últimos à base de comissões.
b. O Estado deverá comprar, a um preço igual ao custo de produção, certa proporção de excedentes granários em posse dos camponeses mais bem colocados nas províncias mais férteis, em proporção a ser decidida com o aconselhamento de representantes livremente eleitos do campesinato local.
c. Cereais devem ser adquiridos por cooperativas e organizações de trabalhadores, que devem ao mesmo tempo repassar os estoques assim granjeados aos órgãos governamentais encarregados do abastecimento alimentar. O Estado mantém o direito de requisitar suprimentos de grandes terratenentes que deliberadamente os açambarcarem para fins especulativos. As providências para o transporte ficam sob o controle primário do Estado, das cooperativas e das organizações de trabalhadores. Todos os destacamentos anti-especuladores devem ser debandados. A transferência de gêneros alimentícios de uma localidade a outra não deve ser proibida, salvo em circunstâncias excepcionais e por deliberação da legislatura central.
O Estado deve dar assistência, materialmente e por medidas administrativas, à transferência de trabalhadores e de suas famílias das localidades onde a comida é mais escassa, e à sua relocação em áreas férteis.
3. O Estado deve manter o controle das maiores empresas industriais, fundamentais para a vida econômica, tal como minas, metalúrgicas, os ramos centrais da indústria metalúrgica etc. Todavia, em todos os lugares onde tal medida possibilite melhorar ou animar a produção ou estender seu alcance, o Estado poderá recorrer à organização de tais empresas por meio de uma combinação entre capital privado e estatal, pela formação compulsória de trustes sob controle estatal ou, em casos excepcionais, por meio de concessões.
Todas as demais empresas industriais de grande porte, exceto onde o controle estatal seja desejável por razões fiscais ou outras e não seja deletério à produção, devem ser, via de regra, gradualmente transferida para mãos privadas, por meio de arrendamento a cooperativas, novos empresários ou aos antigos donos, sob a condição de aceitarem a obrigação de restaurar e organizar a produção. O Estado deve regular a distribuição de combustível e matérias-primas a diferentes ramos da produção, empresas e áreas.
4. Indústrias de pequena escala não deverão ser nacionalizadas em nenhum caso.
5. O Estado deve regular a distribuição a diferentes áreas, de acordo com um plano previamente estabelecido, dos principais artigos de consumo de massa como têxteis, implementos agrícolas, sal, material elétrico etc., com o apoio de cooperativas e comerciantes privados.
6. No que diz respeito ao comércio de outros artigos de primeira necessidade e também de bens suntuários, o Estado deve evitar impor restrições, e deve permitir a cooperativas e empresas privadas funcionar livremente, exceto em casos onde a regulação ou mesmo o monopólio sejam desejados por força da extrema escassez do produto, p. ex., suprimentos médicos.
7. O sistema de crédito deve ser reorganizado para facilitar de todas as maneiras o uso, no comércio e na indústria, dos fundos disponíveis acumulados pelos produtores na cidade e no campo, e para dar espaço à iniciativa privada no comércio, indústria e agricultura.
8. A repressão à especulação e aos abusos comerciais deve ser deixada às cortes e governada por provisões legais específicas. Todos os atos arbitrários de requisição, confisco e retenção de bens deve ser punida. A lei deve proteger os direitos de propriedade no caso de todos os negócios industriais e comerciais livres da nacionalização. No futuro, quando a expropriação for requerida pelo interesse público, ela deverá ter lugar com base na decisão dos corpos legislativos supremos, e sob condições por eles determinadas.
9. Os sindicatos de trabalhadores, além de tomar parte direta no trabalho dos corpos regulatórios, são também, e primariamente, representantes dos interesses do proletariado vis-à-vis o Estado e os empresários privados. Nesta última atribuição, devem ser totalmente independentes de quaisquer corpos estatais.
10. As médias salariais nas empresas estatais devem ser aumentadas, e médias salariais mínimas devem ser fixadas para as empresas privadas, de acordo com o nível comercial dos preços dos bens de primeira necessidade.
11. O decreto sobre as comunas de consumidores deve ser revogado. As cooperativas de trabalhadores, e as cooperativas em geral, devem ser preservadas como organizações autônomas, sem a imposição de funcionários públicos em cargos de supervisão ou de qualquer outra interferência em seus assuntos internos. Elas devem também ter o direito de desenvolver atividades não-comerciais, tais como publicações, educação etc.
Medidas políticas
1. O direito a ser eleito como membro dos sovietes deve ser estendido a todos os trabalhadores, de ambos os sexos. Sovietes da cidade e do campo devem ser eleitos por todos os trabalhadores, com votação secreta e liberdade de realização de campanhas eleitorais por meio oral ou pela imprensa. Os sovietes e comitês executivos devem ser sujeitos à reeleição em intervalos fixos. Os sovietes não deverão ter o direito de excluir membros individuais ou grupos de seu seio por razões políticas. Todos os funcionários e órgãos públicos deverão ser subordinados aos sovietes locais e aos comitês executivos centrais.
2. O Comitê Executivo Central dos Sovietes deve mais uma vez funcionar como corpo administrativo e legislativo supremo, e suas sessões devem ser abertas ao escrutínio público. Nenhuma lei deve ser promulgada sem antes ser discutida e aprovada pelo CEC.
3. As liberdades de imprensa, reunião e associação devem ser restauradas, e qualquer partido representativo dos trabalhadores deve ter o direito e a possibilidade de usar qualquer recinto para reuniões, estoques de papel para imprensa, gráficas etc. Qualquer restrição a este direito que venha a se tornar necessária por força da guerra contra a contrarrevolução deve ser estabelecida e claramente definida pela legislatura, não deve infringir a liberdade básica e deve ser aplicada apenas pelas cortes e instituições sob seu controle direto.
4. Os Tribunais Revolucionários devem ser reorganizados de modo a que os juízes sejam eleitos por todos os trabalhadores. Juntamente com as comissões de investigação que lhes são subordinadas, eles devem ter a única responsabilidade de combater a contrarrevolução. Todos os funcionários devem ser diretamente sujeitos à investigação perante tais tribunais por atos ilegais cometidos no exercício de seus deveres, por iniciativa da parte lesada no caso concreto. O terror como instrumento de governo deve ser eliminado; a pena de morte deve ser abolida, e de igual modo todos os órgãos investigativos e punitivos independentes das cortes, tal como a Comissão Extraordinária (Cheka).
5. As instituições e células partidárias devem ser privadas de autoridade estatal, e os membros do partido devem perder todos os privilégios materiais.
6. O aparato burocrático deve ser simplificado pela ampliação do autogoverno local.
7. Uma política de entendimento deve ser buscada vis-à-vis as nacionalidades que por quaisquer razões tenham rompido com a Rússia, para por rapidamente um fim à Guerra Civil e restaurar a unidade do Estado com base na autodeterminação nacional. Aos distritos cossacos — Don, Kuban, Tersa, os Urais, Astracã, Oremburgo etc. — deve ser garantida a mais ampla autonomia possível, e não deve haver interferência alguma em seus assuntos internos ou em seus sistemas de apossamento da terra. A Sibéria deve ter um autogoverno regional, e as independências da Polônia e da Finlândia devem ser reconhecida.
Comitê Central do Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR), 12 de julho de 1919.
Sotsial-demokratiia i revolutionsiaa. Sbornik dokumentov (Odessa, 1920), pp 9-15.