Por Douglas Rodrigues Barros
Os textos dispostos em forma ensaística foram apanhados nas reflexões que faço no Facebook, lugar no qual tive a loucura de tornar um campo de batalha das ideias, quase como um João Batista louco clamando no deserto. O resultado foi esse que segue, com algum encadeamento externo. Agradeço ao Manolo por dar essa ideia.
Não desperdicem um só pensamento com o que não muda!
Mas retirem toda a humanidade sofredora do poço
Com as cordas que existem em abundância
(Brecht)
Um dedo de materialismo
Nós hegelo-debordianos, quando falamos em sociedade do espetáculo não estamos dizendo que existe um espetáculo que oculta a realidade. Pelo contrário, estamos dizendo que o espetáculo é a própria realidade que torna palatável o escândalo do real. A eleição tornada o espetáculo da democracia, não é algo falso, a democracia ocidental-liberal é isso mesmo, esse espetáculo que, queiram ou não as belas almas de esquerda, provoca grandes alterações na vida social, portanto, virar as costas para as eleições em nome de “princípios” é ingênuo. Criticar a democracia e sua limitação eleitoreira é a tarefa premente que significa disputar esse significante esvaziado pela própria lógica do espetáculo.
Por isso, é exercício fundamental demonstrar aqui e agora os limites da democracia enquanto presidencialismo de coalizão. Uma das melhores lições que a esquerda poderia tirar não é negar que é corrupta, mas demonstrar o porquê a corrupção é endêmica e como a democracia posta nos limites da representatividade liberal é reduzida a apenas jogos de poder em que ganham os que detêm dinheiro. Nosso pacto social pós-ditadura em 2014 se esgotou, independente de quem assumir o pepino, teremos um parlamento regressivo totalmente ligado às oligarquias econômicas. Apenas 20 bancos cuidam do setor estratégico da economia, e pouco mais de 100 empresas podem abalar e desfazer o país. Todos estão nesse momento implicados com os acontecimentos políticos e dão as diretrizes do mercado e das ações a serem implementadas. Se não demonstrarmos que a corrupção está aí, nesse inferninho, de nada adianta o discurso moral. Discurso que a mídia tem prazer em fazer ecoar sendo ela própria parte feliz da corrupção.
É preciso fazer um debate mais profundo, requer mais atenção de nossa parte, principalmente tendo em vista que o fascismo bate à porta. O que está por trás de toda movimentação política são os movimentos do capital em sua fase de crise lapidar e espoliação como manutenção da taxa de lucro. No lado sul do mapa global o capital nunca deixou de fazer sua acumulação primitiva às custas de uma superexploração do trabalho. Se já nascemos modernos, essa modernidade nunca se livrou de seu componente colonial, tanto política como espiritualmente. O Brasil é um país que na lógica global será dependente enquanto dure esse modelo econômico. Em face da onda de crise o dispositivo ético-político batizado de neoliberalismo – que aliás nunca foi democrático – comanda as novas ações políticas que deverão ser empreendidas. Noutros termos, a democracia – mesmo a liberal que nossos “libertários” criticam – deixou de ter validade. Venceu seu prazo. O Estado está sequestrado por uma financeirização econômica que encontra lastros na produção e que dificilmente se livrará disso enquanto persistirem as formas de conciliação amplamente enfatizadas pela esquerda. Quer dizer: a esquerda, nossa esquerda, ainda não entendeu que sua tarefa é justamente não só denunciar isso, como tratar de radicalizar sua pauta político-econômica num sentido adverso ao que tem proposto.
Os caras vão passar a custar 8 bilhões aos contribuintes ao mesmo tempo que aumentam nossa carga de trabalho para duas horas e diminuem nosso salário em 30%, terceirizando todas as áreas. Onde foram parar as comissões de fábricas, os conselhos operários, as organizações de bairro, os movimentos sociais que buscam equiparações de salários? Militantes anestesiados pela eleição, falta de pertencimento a classe, criação de um consenso de classe-média via consumo – e não acesso aos bens sociais – atomização das pautas, desorganização geral da classe trabalhadora. Ninguém se vê como proletário. Resultado: há muito “patrão” para um lucro altamente concentrado na mão das oligarquias e nenhuma força civilizatória capaz de responder os retrocessos.
Contra o merchandising
Estou farto da autoajuda publicitária travestida de pensamento filosófico emancipador. Do pensamento pseudo-deleuziano bem-comportado que agora aposta no irracional e no misticismo vulgar pseudo-afro-oriental como válvula de escape para a violenta civilização ocidental. Liberdade é a compreensão das necessidades, cínica e dolorosa, mas fundamental, já dizia o bom Sartre; não é fazer o que se quer, mas transformar aquilo que fizeram de nós. Descolonizar o pensamento não significa negar a razão, mas desmistificar os preconceitos traduzidos em verdades absolutas. A razão segue sendo um norte para o pensamento e para a postura da emancipação. Estou cansado desse auto-ego-centrado que pensa fazer política quando na verdade institui a má-fé como solução para uma fuga do que não se pode fugir. Um Eu=Eu sem mediação, uma empresa diretamente investida de libido por apoio de outros eus iguais ao meu. Nunca fui nietzscheano o suficiente para acreditar que a saída fosse individual, mas sempre fui suficientemente nietzscheano para saber que a vida é sofrimento (aliás, como dizia Os Racionais), contradição e negação do meu Eu. A vida é absurda e sem sentido, o mundo é negação e morte. A construção contra o adoecimento da alma se faz todos os dias, não negando esse sofrimento, mas o aceitando e ultrapassando-o, sabendo lidar com o absurdo da existência! É incrível que quanto mais cresce esse discurso de negação do sofrimento – como mantra budista e toda parafernália new wave pseudoesquerdista -, cresce mais e mais o número de suicídios. Na UERJ já estão colocando telas para evitar que alunos se lancem dos andares superiores. Na Unifesp foram 4 suicídios que tenho notícia, sendo dois de amigos íntimos, em pouco mais de seis anos! Definitivamente não é negando as contradições que iremos superar tal estado de coisas, aliás, as contradições só terminam quando o “resto for silêncio!”
Não! O amor não vencerá o ódio – é preciso abandonar esse slogan estúpido – a única força capaz de barrar esse ódio é a organização dos condenados da terra juntamente com um programa de transformação econômico-social efetivo que vise dar dignidade para além das particularidades constitutivas dos indivíduos. A única maneira de regressarmos à vida é recusarmos violentamente a violência imposta que ceifa anualmente 65.000 vidas.
Não! Não adianta bradar que vidas negras importam, esse grito só é dado na medida em que se deixou evidente por todos os lados que nas modalidades de distribuição de morte, pelo permanente Estado de Exceção, os negros estão na mira – um excedente de mão de obra inutilizada que precisa desaparecer nas condições necropolíticas de organização social.
Sim! Sabemos quem matou Marielle, portanto, a pergunta retórica só serve para mistificar o estado de coisas opacas e violentas que tomou o país. Em suma, como conclui Fanon, para nós “a vida é aquilo que a luta conseguir produzir” e essa luta precisa reconstituir sua gramática e extirpar o liberalismo de si.
As limitações do apego identificador
Mas, também né, esperavam o quê? Vocês que achavam que o racismo acabaria por meio da pregação verborrágica da suposta performance? Ou que a homofobia fosse suprimida por meio da disputa dos espaços de poder? Vocês que quiseram ensinar uma nova moralidade além da burguesa sem, no entanto, pensar em ultrapassar o mundo burguês? Sem tocar nas raízes que fundamentaram a noção de sujeito burguesa? Sem pensar a superação do modelo econômico que cria identidades para controle dos corpos? Sem questionar que o racismo nasceu com a modernidade e sua gestação colonial? Admirar com desconfiança o Esclarecimento e ver hoje um professor esclarecido, orientado por uma das melhores professoras da atualidade, declarar seu irrevogável apoio ao candidato que provavelmente destruirá a Universidade pública na qual esse mesmo professor dá aula, só pode indicar que uma educação sem um projeto transformador e crítico de nada vale. Vocês que riam dos arcaicos marxistas que ensinavam que sem a revolução social poderíamos ter as melhores intenções que acabaria nisso. Vocês que diziam viver uma vida antifascista, sem jamais criticar o capitalismo em vossas teses. Vocês precisam também se responsabilizar por essa merda…
Há algum tempo, talvez anos, tenho chamado atenção de todos os meus companheiros – por artigo, ensaio ou romances – sobre as limitações e o claro caminho regressivo dos apegos e apelos identitários. Tenho criticado com algum empenho as mistificações trajadas de progressistas sobre uma suposta busca pelas raízes. Tenho lutado para que a superação das diferenças não seja a exclusão do Outro fantasmagórico – que supostamente tem tudo (versão de “esquerda”) ou está roubando tudo que temos (versão de direita) – mas sim por sua plena ressimbolização social e uma política que demonstre que a única coisa que temos em comum, como sujeitos plenos, é a diferença que nos constitui. Tenho demonstrado como aquele processo de identificação originária e narcísica é fascista. A luta contra as opressões ou é anticapitalista ou não é nada.
Acertando as contas com Cristo
Vocês que dizem: “eu não entendo como alguém que se diz cristão pode votar no coiso”. Vamos lá: em primeiro lugar, o cristianismo não é um bloco monolítico – haja vista as grandes e históricas disputas de seu significante ao longo da história; em segundo, a tendência hegemônica do cristianismo – tornada política de controle em Roma – pouco ou nada tinha em comum com Jesus Cristo. Com a queda de Roma e a dissolução do Império, a Igreja Católica Romana se torna a única possibilidade de congregação e unidade organizativa dos povos dispersos num vasto território. Logo, a Igreja implica uma agência e um poder político cujas disputas serão sangrentas e o preço a ser pago é a resignação do corpo e a suspensão dos prazeres na busca do controle. Não preciso dizer que os prazeres reprimidos tornam-se sádicos e que os autos de fé eram momentos de catarse coletiva. Estou dizendo isso de saída para ilustrar como o cristianismo nunca foi coeso. Por suposto, não vejo ligação alguma entre o neopentecostalismo e o protestantismo. Enquanto o segundo presumia a razão e o conhecimento das escritas para se achegar a Deus, o primeiro se baseia na tradição oral da pregação sem critérios teológicos – sentimento de fé guiado pelas novas línguas com o batismo do Espírito Santo. Enquanto o segundo tinha o significante preenchido por uma nova ordem social emergente – a modernidade – o primeiro tem o seu significante esvaziado pela laicidade que passou a dominar a vida sob império do novo deus: o capital. Tornando-se mera ideologia e, portanto, capaz de ser cooptado para uma ordem aquém ou além do próprio Cristianismo. Em suma, a disputa do significado de universalidade cristã sempre presumiu uma violência voltada àqueles que não cabem nessa universalidade – indígenas e negros, mas também ciganos e mulheres que não são do lar. Quando essa universalidade é reduzida a irracionalidade, a falta de leitura e conhecimento dos próprios desdobramentos históricos do cristianismo, só pode culminar numa regressão dos horizontes em que “aqueles que não são como nós merecem o inferno e a tortura”.
Desse modo, a reflexão sobre o fenômeno do neopentecostalismo é também uma reflexão sobre organização, militância e existência de milhares de pessoas que não tendo saída encontram na igreja a possibilidade de sociabilizar e socializar afetos. Não se trata somente de fé, programa político direitista, dogma de ódio contra as minorias, trata-se antes de vivência, experiência contraditória com uma estrutura simbólica que garanta um coração num mundo sem coração. Trata-se da revelação de nossa miséria enquanto país e de nossa mediocridade enquanto esquerda.
Quinta-feira, vou comprar pão e paro em frente de uma dessas igrejas que, sem dúvida, formaram Daciolo. Aqueles jovens negros que cantam alegremente, que sorriem e erguem os braços encontram ali um momento de fuga e expressão de anseios, de calma em meio ao mar de desemprego e vida insalubre, sorriem para si, alguns choram, outros glorificam, fecham os olhos, sentem a catarse correr livremente. Cantam bem. Estão calmos, numa unidade fraterna. Freud alertava em “psicologia das massas e análise do eu” quais eram os processos de identificação em sua manifestação emocional e ligação com o outro, alertava para os artifícios nos quais a massa buscaria ser dominada por uma força irrestrita, a configuração de um pai primordial que não é aquele do Cristianismo. O que ele não sabia, porém, é que esse processo em Pindorama se faria presente a despeito do espectro político. Vocês que acusam os neopentecostais de ignorância, também não querem um pai primordial quando se limitam a bradar que Lula seja livre da cadeia e retome nas mãos a autoridade do Estado de bem-estar social? Ignoram que os números do Estado homicida nunca deixaram de subir na era petista?
Portanto, os significados do cristianismo ainda permanecem em aberto, nós materialistas dialéticos estamos nele implicados, é preciso escavá-lo, entendê-lo: com a crucificação, Deus desceu à terra adquirindo sua realidade humana e, portanto, precisando enfrentar sua dilaceração absoluta. Nesse momento o cristianismo impôs a si mesmo a necessidade de auto superar-se tanto como igualdade quanto fraternidade. A filosofia, em sua grande aventura, tornou-se quase inteiramente, como muito bem o aristocrático Nietzsche demonstrou, coisa de escravo pela influência direta que o cristianismo lhe impôs. Precisamos ultrapassar ambos…
Lembrança da casa dos mortos
Não tenho nostalgia de meus anos de ensino médio ou de minha adolescência. A escola pública foi o lugar da violência. Quando digo violência, minha plateia de classe média, digo violência radical que vai desde exclusão racial, preconceito violento contra homossexuais, machismo exuberante com coisificação das meninas e abuso inerente, ódio profundo contra qualquer diferença, até assassinato, pela polícia ou pelo tráfico, de amigos e parentes. Nossa geração, localizada na antecâmara da popularização da internet, sofreu de todas as formas possíveis (naturalmente estou falando de uma classe crescida na periferia da periferia de São Paulo) nas mãos de uma imprensa e mídia que perpetuavam os preconceitos e nunca abriam debates pertinentes à vida comum. Eram tempos difíceis, sem perspectivas ou esperanças. A violência corria em nossas veias e a escola era o local em que a potencialidade se tornava ato. Brigas e depredações eram rotinas misturadas com uma merenda azeda e miséria. Nesse processo de violência profunda, muitos se perderam para as drogas, para a depressão, para o suicídio material e espiritual. Uma das cenas mais chocantes que me lembro na escola foi quando o “Sarita” – um menino homossexual com 15 anos de forte traços e jeito afeminados, que inclusive tinha recebido esse apelido graças a um personagem de novela da Globo – foi escoltado pelos inspetores debaixo de fortes gritos de “viado” sob um ódio coletivo indescritível. Durante o intervalo, ele era obrigado a ficar num tipo de cela separado dos demais para não ser linchado! Isso me marcou profundamente.
Hoje são avanços mínimos, graças aos movimentos sociais, negros, indígenas e LGBT, graças ao espectro político à esquerda. E é justamente contra esses avanços mínimos, mas que fazem profunda diferença, que surgem esses espantalhos conclamando a ausência de discussão de gênero e sexualidade, buscando destruir a discussão em torno da exclusão racial e do feminismo. O que esses canalhas querem é perpetuar a violência que sempre impuseram. Esses canalhas não estão preocupados com a educação dos adolescentes que moram nas periferias, o que eles querem é uma sociedade civil domesticada, calada e violenta entre si. Resistamos: paz entre nós, guerra aos senhores.
De quantos Eus preciso?
“a verdadeira política de identidade, consiste em incessantemente alimentar, atualizar e reatualizar as suas capacidades de auto-invenção”
(Mbembe)
Para que não hajam dúvidas: eu que sou um nordestino – filho de retirantes orgulhosos e distintos da tribo Kariri – sou também um refugiado no mediterrâneo, sou um palestino na faixa de gaza, sou uma prostituta em alguma viela da Augusta, sou um negro no Instituto de Matemática, sou uma travesti aqui no trevo de casa, sou um trabalhador precarizado que olha com sangue nos olhos o aumento da lata de leite! Sou um proletário! Sou indiferente a todos os detalhes que formam nosso Eu, mas não indiferente às injustiças que nos cercam e nos comprimem nesse Eu!
A xilogravura em destaque e a última são de Víctor L. Rebuffo, as demais são de autoria de Américo A. Balán
Gostei da estrutura. Simples e direta. Queria, no entanto, fazer uma questão ao autor: como estabelecer a relação da identidade e da desidentidade que pede a noção de classe?
Para ser sincero, é exatamente esse trabalho teórico que estou formulando com tempo e compromisso. Mas, já vou dizendo que sim, não acho mesmo que a classe seja uma identidade como a sociologia atual desde de Stuart Hall elabora. O passo decisivo da noção de classe é sua negação da identidade. Portanto, não há identidade de classe, mas sim consciência de classe que nega qualquer especificidade do Eu. Debate longo, mas bem necessário atualmente…
Livro (em PDF – para download): Crítica da Razão Negra, de Achille Mbembe.
https://drive.google.com/file/d/0BzakuRmfyHE0Y3E1ckNVSHFjZ2M/view
Quê texto! Quê texto! Confissões diretas, não!? Dialogam conosco e expõe as veias abertas da esquerda atual…
grande abraço!