Por Rosa Ribeiro
Carta escrita em resposta colaborativa ao vídeo “Boletim do Fim do Mundo – Gilet Junho?” do Bruno Torturra com Gregório Duvivier.
Olá Bruno e Gregório, atendendo ao chamado de vocês por uma “boa alma” que pudesse ajudar com a tradução e interpretação do que está acontecendo na França, envio abaixo minha pequena colaboração.
Em primeiro lugar, o que acredito que deva ser apontado como paralelo entre os protestos dos gilets jaunes na França e o Junho de 2013 no Brasil é que exatamente isto que o Bruno chamou de “pequeno aumento” no imposto sobre os combustíveis equivale aos 20 centavos em São Paulo: foi a gota d’água que faltava para transbordar o vaso de um longo percurso de decepções (no caso brasileiro contra o PT, que não cumpriu a pauta social esperada, e no caso francês contra Macron, que governa com uma pauta supostamente à esquerda em termos culturais e de política externa, mas à direita em termos econômicos).
Realmente é muito difícil entender o que se passa na França com a cabeça no Brasil. Por isso é preciso fazer um pequeno esforço para tentar compreender que o aumento dos impostos sobre os combustíveis não foi assimilado na França por grande parte da população como uma “pauta ecológica”, e esta visão está correta. Vejam bem, vocês falaram que Macron não entende nada de comunicação. Isto não é verdade e este é um bom exemplo. Para o mundo, que fica sabendo das medidas macronianas de uma forma absolutamente descontextualizada, esta foi uma medida importante que vem responder aos efeitos do aquecimento global, blá, blá, blá. Em consequência, os manifestantes aparecem neste contexto como conservadores, “carrodependentes”, apegados ao status do automóvel, mas não é bem assim. Concretamente o que está em jogo é, como Gregório apontou, a compensação aos cofres públicos dos sucessivos cortes de impostos dos ricos (que foram vários), sendo que o mais chocante foi a supressão do ISF (Imposto de Solidariedade sobre a Fortuna), que rendeu a Macron a alcunha de Robin Hood dos ricos. Percebam que as imensas somas que eles esperam arrecadar com o aumento do imposto sobre os combustíveis (que já é altíssimo) não vão servir para financiar a tal “transição ecológica”, mas sim para cobrir o rombo nos cofres públicos causados pela supressão dos impostos sobre as rendas do capital financeiro.
Em segundo lugar, Macron quer impulsionar a economia francesa, assim como Lula também o fez, apostando algumas de suas fichas numa nova fase da indústria automobilística. Neste caso, tentando forçar a todo custo uma renovação da frota de automóveis do país por veículos elétricos com medidas que vão muito além do aumento do combustível e que passam pela restrição dos carros a diesel nos centros urbanos e chegam à promessa de sua proibição total em 2025. Não há absolutamente nada de ecológico nisso! Além de promover uma nova onda consumista na França, na prática, os carros movidos a diesel vão ser empurrados para os países do leste europeu. Ou seja, não vai se resolver o problema, ele vai ser apenas “deslocalizado”.
Estas medidas supostamente ecológicas são ainda uma resposta de Macron ao lobby das montadoras francesas no contexto da nova guerra econômica que passa pelas novas tecnologias em torno dos carros elétricos e inteligentes (lembram que a Tesla mandou um carro elétrico para o espaço?). Este é um novo mercado onde entram em disputa montadoras francesas, alemãs, americanas, chinesas, dentre outras. Esta faceta da questão não me parece muito clara ao brasileiro, pois, sabemos, fomos reduzidos a “celeiro do mundo”, enquanto os países centrais estão na corrida pelo desenvolvimento da inteligência artificial, controle das redes (do pensamento), da comunicação, da circulação global, das biotecnologias, etc.
Outro fator que demonstra muito bem que Macron não tem nada de ecológico é a sua política de supressão dos trens que ligam pequenas cidades por não serem “economicamente viáveis”. Uma medida no mínimo incoerente para um presidente que diz querer diminuir o consumo de combustíveis fósseis, mas nada contraditório com sua política antipovo, antipobre, que governa para a elite financeira parisiense. Uma outra incoerência nesta suposta política ecológica macroniana está no fato de não haver nenhuma taxação sobre o combustível dos aviões, que são de longe os veículos que mais poluem o planeta. Estima-se que a França perde incríveis três bilhões de euros por ano por esta política de evitar a taxação dos veículos dos mais ricos. É bom ainda saber que este ano o ministro da transição ecológica, Nicolas Hulot, um ecologista/ativista muito popular entre os franceses, pediu demissão alegando que não queria que sua presença no governo fizesse com que as pessoas pensassem que “estava indo tudo bem” com a França em termos de políticas ecológicas. Ele saiu do governo fazendo denúncias muito duras, como a da presença de lobistas em todas as reuniões que teve com Macron que impediam que alguma medida mais concreta fosse adiante.
Para entender (um pouco) a reação do povo francês à alta dos impostos sobre o diesel e sobre a gasolina é preciso ter uma certa aproximação ao cotidiano das famílias deste país. É importante ter em mente que aqui na França o carro é principalmente um transporte de pobre e precário. Dito de uma outra forma: é o pobre e o precário que têm a necessidade de usar o automóvel como meio de transporte e não o bourgeois boheme (burguês boêmio) que mora a dois passos da Torre Eiffel e a um passo de uma estação de metrô ou Vélib’. Se para uns o carro é mais uma opção, para muitos ter um carro se torna uma obrigação. Poder trabalhar a uma distância possível de ser vencida em bicicleta é um luxo que uma minoria tem a chance de ter, mesmo aqui na França. Se o metrô e o trem são excelentes para quem precisa ir trabalhar nos centros e pólos de concentração de empregos, estes são péssimos para ir visitar um vizinho ou fazer compras (as linhas de metrô partem sempre em direção aos centros, ficando mais complicado quando queremos ir para os lados, de uma periferia a outra). E a vida não pode se reduzir ao “métro, boulot, dodo” como repetem os franceses (em tradução livre: pegar o metrô, trabalhar e dormir).
Assim, para quem mora na periferia das cidades ou no meio rural dispor de um automóvel é uma condição essencial para a reprodução da vida, assim como para o acesso ao trabalho. A taxação do governo macroniano sobre os combustíveis foi, deste modo, apenas mais uma dentre várias medidas que visa tirar dos pobres e da classe média para pagar os presentes fiscais que o presidente faz aos ricos. Esta impressão que temos que esta seria uma “medida ecológica” não passa de uma falácia, literalmente “coisa pra inglês ver”, mas aparentemente o povo francês não caiu nessa. Então vamos evitar dizer que as manifestações são um mero “protesto pelo aumento do preço dos combustíveis”, porque, assim como os 20 centavos no Brasil, esta “migalha” na vida das pessoas tem um peso enorme e é um assunto bem mais complexo do que possa parecer.
Outro ponto que é bom esclarecer é a adesão massiva da população francesa aos gilets jaunes. Como disse anteriormente esta foi apenas a gota d’água da política antipovo macroniana. Desde o início do seu mandato Macron vem atacando e enfiando a mão no bolso de aposentados, estudantes, famílias carentes e funcionários públicos. Além de estar conduzindo uma política geral que leva todos estes setores à precarização, Macron está cortando recursos dos serviços públicos, como dos hospitais, por exemplo, e reduzindo o repasse aos territórios (estados) e prefeituras. Esta política tem levado a uma sobrecarga muito grande dos serviços públicos, a demissões e a sua deteriorização. Muitas escolas e hospitais foram fechados exatamente ali nos rincões onde as pessoas são obrigadas a fazer grandes deslocamentos para ter acesso a estes serviços.
Neste último ano vimos manifestações sucessivas de prefeitos que não conseguem pagar as contas e manter as escolas municipais (alguns chegaram a renunciar de seus mandatos por falta de recursos para governar); condutores de trem que estão ameaçados pela privatização, aposentados, estudantes, caminhoneiros, enfermeiras e médicos (que não são coxinhas como no Brasil) também foram às ruas. A precarização da área da saúde aqui na França e a gestão dos hospitais públicos e asilos como empresas neoliberais é tão grave que tem levado enfermeiras e médicos ao suicídio! Assim, não é de se surpreender que finalmente um movimento tenha conseguido agregar todos os outros que já tinham passado pelas ruas, mas de forma sucessiva e fragmentada.
E sim! A violência faz parte da vida política francesa. Apesar de vermos sempre aqui e ali aqueles que dizem deplorar o vandalismo, não vejo o bebê sendo jogado fora com a água da bacia. A destruição pode ser deplorável, mas as reivindicações são ouvidas e debatidas exaustivamente. Os franceses estão acostumados com a violência como um recurso de expressão de um povo descontente com seus governantes e não é nenhuma novidade esta violência nas ruas. A novidade talvez esteja na intensidade e o número crescente de carros e estabelecimentos incendiados. A novidade é que entre os black blocs não estão apenas os jovens revoltados da periferia, mas pais de família, pequenos produtores rurais, serralheiros, carpinteiros, padeiros, pessoas ordinárias que aprenderam rapidamente a enfrentar a polícia por identificarem ali os cães de guarda de um governo ultraliberal, este sim, covarde que usa a força do poder para roubar e violentar seu povo. Outra novidade pode vir ainda de uma possível guinada mais à direita de Emmanuel Macron, que já ameaça em levar a França a um estado de exceção.
Sobre os impostos e especialmente sobre o ISF: ao contrário do que deu a entender Gregório, o ISF foi sim completamente suprimido. Não existe mais o “Imposto de Solidariedade sobre a Fortuna” dos ultra-ricos que teria sido teoricamente “substituído” por um aumento do imposto sobre os bens imobiliários. Daí vem uma outra questão um pouco complicada para entender. Quando Macron suprime impostos sobre as grandes fortunas, e também os impostos sobre dividendos, ele libera automaticamente os super ricos deste peso fiscal. Mas não podemos pensar que estas isenções serão compensadas por um aumento do imposto sobre os bens imobiliários porque este não atinge a mesma faixa da população. Explico: na França, os bens imobiliários correspondem a apenas 5% dos ativos dos super ricos e chega a 80% dos ativos da classe média. Então, mais uma vez, a política tributária de Macron mostra claramente que sua intenção é isentar os super ricos – que hoje estão com seus capitais aplicados no mercado financeiro – de pagar impostos. Dito isto, é um erro completo dizer, como ouvi num vídeo do OperaMundi, que a pauta das manifestações seria “neoliberal” por pedir a diminuição dos impostos. Os gilet jaunes não têm a mesma pauta generalista de “menos impostos” que a elite brasileira, mas eles querem sim a diminuição dos impostos para a classe média – cada dia mais precarizada e endividada – e a volta do ISF e outros impostos sobre a renda dos ricos e super ricos, que ganham aos tubos na França e hoje têm mais facilidade para enviar este dinheiro para paraísos fiscais.
Passemos para um outro ponto: a direita na França. Pode-se dizer que as últimas eleições ilustraram a decepção do francês com os governos de esquerda, mas também foi um duro golpe em Marine Le Pen. Aqui no Brasil nos chega uma imagem um pouco limitada da direita francesa. Existem outros atores, mas de modo geral a direita anda muito mal neste momento. Então é preciso olhar mais longe, olhar para o futuro, que, na minha opinião, passa pela sobrinha de Marine Le Pen: Marion Maréchal Le Pen. É ela que pretende criar o “MBL” francês. Marion é super jovem, não tem ainda 30 anos, foi eleita deputada federal com 22 aninhos e ano passado decidiu se afastar da vida política para abrir uma universidade de… economia e política! O ISSEP (Institut des Sciences Sociales Économiques et Politiques de Lyon). Marion está hoje dirigindo pessoalmente este instituto para “produzir” uma elite de extrema direita jovem, intelectualizada e comunicativa. Ela sabe que precisa de uma base mais sólida, de pessoas competentes ao seu lado e ela vai pessoalmente formar esta base de aliados de extrema direita. Marion me faz muito mais medo que Marine Le Pen, que está neste momento um pouco desacreditada na cena política francesa.
Pois bem, precisamos então ter medo de uma escalada da extrema direita também na França? Sim e não. Sim, porque já é claro que a precarização da população (principalmente de um ex-operariado abandonado em cidadezinhas decadentes e no meio rural) se converte em votos para a extrema direita que culpa os imigrantes e a globalização por sua situação se juntando, deste modo, aos votos de parte de uma elite mais conservadora. Esta parte da população me parece particularmente susceptível às fakenews e isto dá medo, pois o Steve Bannon já está trabalhando para as próximas eleições do parlamento europeu. Mas, ao mesmo tempo, a resposta é “não” porque quem disputa estes mesmos votos é a extrema esquerda que tem estado hoje “melhor na fita” que a direita e a extrema direita. Então, acredito que o movimento dos gilets jaunes pode ser mais positivo para a esquerda que para a direita. Teremos que aguardar as cenas dos próximos capítulos…
Por fim, vou falar um pouco de Macron. Jovem, bonito, inteligente, saído do Partido Socialista (o PT francês) foi o primeiro a entender a falência dos partidos políticos e a criar um “movimento”, o En Marche!. Ou simplesmente EM!, mesmas iniciais de Emmanuel Macron (nada narcisista este garoto). É verdade, ele nunca foi candidato a nada, o que o permitiu surfar no descontentamento da população depois de sucessivos governos de direita e esquerda (que só deram continuidade às políticas neoliberais). Infelizmente a esquerda não conseguiu emplacar nem Benoît Hamon, que saiu candidato pelo desgastado Partido Socialista, nem Mélenchon do France Insoumise, que apesar de populista, não tem uma imagem muito palatável para o “refinado gosto francês”.
Aqui faço uma pequena ressalva ao que disse Gregório sobre as célebres frases de Macron – “eu atravesso a rua e encontro um emprego” dita a um desempregado crônico; ou “a melhor forma de se pagar um terno é trabalhando”, disse a outro desempregado; ou “eles deveriam aceitar este emprego (a 200km de distância!) ao invés de fazer arruaça”, se referindo a grevistas de (mais) uma fábrica fechada na França; ou que os franceses são “preguiçosos”, “iletrados”, “cínicos” – estas frases não são meras gafes, mas a expressão mais genuína do que pensa Macron. Se fossem gafes ele iria imediatamente se retratar ou se policiar. Porém, ao contrário, a arrogância de Macron era tanta (pois agora ele está com o rabinho entre as pernas), que quando questionado ele reafirmava suas convicções e as repetia sempre diante das câmeras. Macron acreditou que era intocável. Entretanto, o seu desprezo ao povo agora encontra resposta nas ruas e no grito que se torna uníssono de “Macron, démission!”.
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Em França o governo só faz alguma coisa se houver violência, é lamentável a destruição mas só assim poderá haver mudanças a favor do povo francês. Ha 20 anos eu ganhava 1500E a 1700, e não tinha filhos, agora com um filho ganho 1000E a 1100E
Há 20 anos nas tinha dificuldade de encontrar trabalho, hoje é bem diferente,.
Gilets Jaunes tem toda a razão de protestar o povo trabalhador passa fome , ainda que eles tentem esconder, mas estão cansados de tanto fingir.
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