Pablo Polese

Nascido de sete meses, em família de poucas posses e tendo uma mãe não muito afeita ao ofício materno — em especial um de seus ritos, a amamentação — cresci sem os atributos da força física. Não bastassem as desvantagens decorrentes da falta de músculos e de fibra, desde muito jovem tive de enfrentar mais esta sina: onde quer que eu fosse não me chamavam pelo nome, Heitor Hassenchaft, e sim pelo irritante apelido de Mirrado, destinado a me recordar um defeito genético, que com o tempo se contraiu para Rado e, para meu ódio mortal, passou a Rato. Assim, como que por castigo dos deuses, uma gravidez mal levada e uma infância mal assistida resultaram em um esboço de homem que, não bastasse marcado visualmente pela falta, falta de substância, segundo o alfaiate, falta de onde pegar, segundo as raparigas, passou também a ser associado, sem consentimento algum, já no nome (e que tem o homem para além de seu nome?) a um dos seres mais nojentos que a mãe natureza teve o descuido de deixar surgir.

Quanto à força, não mais a força física, que se adquire com certa facilidade frequentando as usinas do ego a que chamamos academia, mas aquela que impele o espírito de um homem para além de limites preconcebidos, apenas um sentimento é comparável ao amor: o do ressentimento. Aqueles que veem no ódio o sentimento mais potente em contraface ao amor não atinaram ainda para o fato, para mim inconteste, de que é do ressentimento que se alimenta o ódio, e não da falta de amor, fraternidade e fé. A falta de amor leva à indiferença, apenas. Vasculhe o coração de um mau homem e lá encontrará não a indiferença, presente até mesmo nos gélidos coraçōes das virgens, mas o ressentimento e, nos casos em que a semente se fez árvore, o rancor. Este sim, um sentimento genuíno que desvela o homem por detrás do homem.

Uma radiografia cuidadosa encontraria, em meu coração, matéria desta natureza: rancor e ressentimento, ressentimento e rancor, límpidos, cristalinos e exuberantes, gozando da plena liberdade que um mole coração jamais sonhará ter. Talvez por isto, diria minha execrável ex-mulher, quase nada me abala ou entristece. Dotado desta força que não se mede, este poderoso rato de ferro não pode fazer menos que troçar dos gentios em frenéticas gargalhadas. É dever do forte zombar do patético, e que há no mundo senão gente fraca? Do mundo dos homens só conheci aquilo que merece fenecer e do agregado de árvores que formam essa insípida floresta social só toquei frutos podres e cascas vazias — por mais belas que à primeira vista parecessem. E foi assim que pelos cantos da vida desfilei, aprendendo que a qualidade do rato reside neste fazer-se imperceptível enquanto abala os alicerces ocultos dos lares. Nesta trajetória tive as mãos sempre sujas por este incômodo chamado “o outro”, mas aí residiu minha perspicácia mais que minha debilidade. Não me arrependo, portanto, do que ocorreu sábado passado, e cujas repercussões trouxeram-me a esta cama de hospital. Se na origem desta perda de tempo a que chamamos vida algo foi justamente distribuído entre as proles do criador, esta coisa foi a violência, entretanto com a diferença de que o animal menos desenvolvido a usa apenas movido pela necessidade, pelas encruzilhadas da sobrevivência, enquanto o animal mais desenvolvido usa-a a fim de colorir sua existência. Encontre um homem que nutriu amor pela violência e lá estará um grande homem, pois nada se compara à satisfação do agredir e maltratar alguém, tornando-o, por isso, algo inferior. Animais, eis aqui a definição de homem, de todos os homens, todos, sem distinção, animais violentos que destilam sua violência como podem, de modo que aqueles que não a infringem assim o procedem não por não serem violentos, mas por serem fracos. Embora mirrado como um rato, sou ainda um homem e enquanto tal também a violência não me é estranha. A graça está, entretanto, nas formas de exercê-la com requinte. Devo dizer que a isto me afeiçoei, chegando muitas vezes à porta da perfeição que divisa homens e deuses. No começo eu era, naturalmente, um principiante, um tolo que torturava gatos e outros pequenos animais acreditando que o mal físico constituía a maior oferta e, portanto, o maior prazer recebido. Perdi alguns anos com essas tolices e brincadeiras de criança. Apenas em tempos recentes aprimorei as técnicas do prazer e passei a reconhecer o doce refinamento presente na maldade metafísica. Em resumo, conforme lapidados com o primor do método, meus estudos práticos comprovaram-me que em sua sutileza a língua é arma mais danosa que qualquer braço boxeador ou porrete impiedosamente aplicado às costas dos moribundos. Foi com esta certeza que, estando no velório e previamente bem informado do ocorrido, interrompi as cascatas de lágrimas da mãe do garotinho contemplado com a morte e assim chamei a atenção dos presentes:

— A criança estava a tentar alcançar o aviãozinho, posto em cima do guarda-roupa, não foi isso?

Ao que a mãe, pateticamente lamuriosa, respondeu:

— Sim, a escada não devia estar lá, não era pra estar lá! Não devia meu Deus, não devia!

E antes que voltasse ao seu repetitivo e entediante ofício de operária do ramo de produção industrial de água salgada, intervi:

— Pois assim é a vida, dona, de repente o jovenzinho queria alcançar o avião porque algo tinha a tratar nas nuvens, vai saber! Deve até ter batido as asinhas. Não é engraçado? Ele caiu da escada e foi para o andar de cima! Para o andar de cima, entende? Não é sempre que se cai pra cima!

As gargalhadas desenfreadas que dei a seguir (sozinho, pois funeral é ambiente propício para o franzir de sobrancelhas hipócritas) tiveram mais a ver com meu deleite subjetivo decorrente da tática bem-sucedida de azucrinar aquela mãe do que, propriamente, pela graça inerente à piada. O leitor perspicaz há de notar, contudo, que o objetivo da piada fora exitoso: talhar naquela alma medíocre palavras a serem recordadas eternamente. Manejando, com método, ferramentas esculpidas artesanalmente, adentrei a zona oculta das lembranças de uma mãe e lá inseri meu vírus. Sua força se medirá a cada vez que aquela mulher perceber que se mesclaram, em suas recordações, o choro e o riso, a tragédia e a comédia, a raiz da intimidade poluída por gargalhadas que ecoam como um martelo a forjar a espada da crueldade eternamente renovada. Minha espada. Preciso confessar que o prazer que senti e que sinto ao imaginar isso fez valer cada curativo que agora carrego no rosto. Forçosamente devo reconhecer também, ou melhor, vangloriar-me, de ter dito o que eu disse premeditadamente, com aplicação metódica da entonação da voz e expressões faciais, em cada detalhe, serviço de profissional com sensibilidade e não de um recalcado qualquer que por descuido deixara escapar algo até então oculto para fins de melhor aceitação social. Isso iria contra meus princípios, e sou um homem de princípios.

As ilustrações utilizadas no texto são de autoria de Susano Correia. Passa Palavra

2 COMENTÁRIOS

  1. ABRAÇADO AO MEU RANCOR
    Mix literário de João Antônio e Céline, a curta narrativa de Pablo Polese eviscera -em ritmo de tango?- o ramerrão cotidiano da sobrevivência miserável.
    EVOÉ!

  2. A melhor passada de palavras do Passa Palavra de todos os tempos. Matou as cobras e mostrou o pau, mesmo que pequeno. Torpedeou “La Barca” do Topo Gigio Otero, que tanto circunavegava a Ilha do Rato, terra de tantos Pinks, mas também do Brian. Somos todos Ratos! E também somos todos jumentos. Jumentos, da “Frente Nacional de Defesa dos Jumentos” (e/ou dos ratos) ou da Internacional dos Jumentos (e/ou ratos)?

    PS: Intervenção identitária/ecologista/culturalista, etc: “No Oriente, o Rato é reverenciado por seu raciocínio rápido e sua capacidade de acumular e manter objetos de valor. Ratos são considerados um símbolo de boa sorte e riqueza na China e Japão”= “Rat is beautiful”

    PS 2: No ocidente amamos Mickey Mouse, o maior símbolo do Walt Disney (antissemita e admirador do Fuher).

    PS: Embora digam que Mickey Mouse seja um camundongo, no mundo dos roedores (roedor= patrão), isso faria alguma diferença?

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