Por Servidora Sueli

As “teses” a seguir foram elaboradas a partir de uma percepção pessoal na dinâmica de uma luta num órgão estatal. Trata-se de uma percepção basicamente individual, e a validade das “teses” aqui apresentadas para outras situações, lutas e contextos obviamente está em aberto.

A luta se deu sobre questão relativa ao controle do tempo e do processo de trabalho e, também, para garantir respeito à natureza da atividade, ou seja, do ofício, contra a gestão e a imposição de uma organização do trabalho.

Os trabalhadores desse órgão são servidores públicos com estabilidade, ou seja, a princípio não podem ser demitidos facilmente. Mesmo assim a luta demonstrou num nível sociológico uma ausência de prática ou cultura de luta na atual composição de servidores, o que resultava em falta de iniciativa prática, insegurança e medo, apesar da estabilidade garantida. O perfil de renda e social desses servidores é nitidamente o de classe média.

1. O medo é fonte de sofrimento. Uma das principais. Mas um servidor público com estabilidade teria medo de que? Quais as consequências de enfrentar a gestão de algum modo? Perseguição? Sim, pode haver em algum nível. Medo também de não receber olhar de reconhecimento pela hierarquia? Que tipo de reconhecimento? Estaria em operação a transferência do reconhecimento dos pais à autoridade da vez? Os pais, com sua autoridade repressora, são as primeiras fontes de reconhecimento, ao mesmo tempo que objetos de apego e amor. A manutenção da hierarquia e autoridade como fonte de reconhecimento e objeto de apego joga contra os trabalhadores na luta de classes. A luta de classes passa, assim, pela constituição coletiva de outra fonte de reconhecimento e de “paixão”.

2. A significação burguesa ou pequeno-burguesa de ‘boa educação’ é usada pelos gestores para dividir os que se manifestam e para levar à submissão os trabalhadores. Nesse caso, uma educação e comportamento internalizados principalmente na classe média são usados como instrumento de submissão. Voltamos à tese 1 e o medo de ser considerado ‘mal educado’, de não se ‘comportar direito’, perdendo assim o olhar de reconhecimento da autoridade paternal, agora na figura do gestor.

3. Quando o coletivo de trabalho está enfraquecido a fonte de reconhecimento para construção da identidade individual tende a ir para hierarquia, o que amplia o poder da gestão sobre os trabalhadores. Essas formas de reconhecimento verticais recalcam a atividade real de trabalho, e deixam os trabalhadores vulneráveis à manipulação pela gestão.[1]

4. Resumindo as três primeiras teses. No nível da dinâmica psicológica, a luta de classes é uma luta pela fonte de reconhecimento e, por consequência, pela fonte de estruturação e fortalecimento das identidades dos trabalhadores. A força de um coletivo de trabalho e do coletivo de trabalhadores pode ter como medida a sua importância como fonte de reconhecimento e de identidade aos trabalhadores, esvaziando a hierarquia como objeto de apego e/ou de necessidade por reconhecimento.

5. Se o coletivo de trabalho é fraco ou inexiste por conflitos diversos, e se um coletivo de trabalhadores forte não se forma, aqueles que tomaram alguma iniciativa na luta, ou que por algum motivo se tornaram mais visíveis, podem acabar desenvolvendo defesas psíquicas contra o sofrimento gerado pelo medo. Tendem a entrar em operação formas de racionalizar mudanças de posição, muitas vezes associadas a uma tentativa de manter uma autoimagem — nos casos em que a identidade também está relativamente ligada ao campo da esquerda ou ao olhar do grupo de trabalhadores. Formas de fatalismo aparecem também como defesa (o “não adianta mais”) contra o medo de enfrentar a gestão. A negação da questão que levou à luta aparece também como defesa psíquica, que pode vir junto ao apontamento de outras questões que seriam mais importantes do que aquela. Uma forma de fuga, tentando manter uma autoimagem, pois não se estaria saindo da luta, mas apenas mudando de foco.

6. O medo na luta, mediado ou não por defesas psíquicas que buscam aplacar esse sofrimento, pode levar trabalhadores da base que buscaram se mobilizar em algum momento a agirem como tipicamente agem as burocracias sindicais: passam a focar em questões não urgentes ou não tão importantes, que não gerem atritos nem enfrentamento com a gestão. Ou seja, passam a fazer alguma coisa mas não aquilo que é de fato a luta importante, fugindo do enfrentamento com a gestão, tentando ao mesmo tempo carregar os trabalhadores consigo, esvaziando a luta importante. As defesas psíquicas tendem por sua vez a bloquearem a capacidade de ação e de pensamento.

7. No limite do conflito interno da sua psiquê, esses trabalhadores podem passar a agir em defesa de sua defesa psíquica contra o medo, e para assegurar sua autoimagem. Podem passar, assim, a não somente tentar esvaziar a luta significativa, mas também a atacar aqueles que continuam firmes tentando organizar essa luta significativa e manter a pauta. Podem também passar a se afastar do que consideram a ideologia que move aqueles que tentam levar o enfrentamento inevitável dessa luta significativa. Isso porque aqueles que enfrentam o poder, a gestão, desestabilizam pela sua ação e discurso a defesa psíquica daquele que se submeteu à gestão fugindo do medo de um enfrentamento. Desestabilizam a racionalização, o fatalismo e a negação.

8. O processo limite descrito na tese 7 serve como hipótese para entender ao menos parcialmente a onda “coxinha” que se explicitou de 2015 aos dias de hoje no Brasil. O antiesquerdismo, anticomunismo e antipetismo (esse último a forma genérica e de senso comum para os anteriores) pode ser entendido, em parte, como uma ideologia defensiva, o estágio último de uma defesa psíquica surgida da realidade do trabalho, de ter que se subordinar e se submeter, e portanto recalcar questionamentos e enfrentamentos. A ideologia defensiva é uma defesa da defesa.[2] Aqueles que questionam de alguma forma o poder do capital incomodariam uma vez que desestabilizariam em algum nível essas defesas que levam à submissão inconteste ao capital (personalizado em gestores, patrões ou mais abstratamente no mercado). Analogamente, no caso da clássica defesa psíquica coletiva dos operários da construção civil, que para conseguirem trabalhar reduzem a percepção de risco e assim o medo, aquele operário que demonstra medo acaba afastado do grupo, pois desestabiliza a defesa dos demais. Estamos no estágio em que o capital impôs uma tal submissão e medo na realidade do trabalho, que aqueles que questionam seu poder em alguma forma, potencialmente desestabilizam a defesa psíquica de inúmeros trabalhadores. A ideologia de direita, coxinha ou antiesquerdista, funciona, assim, como uma defesa dessa defesa por parte desses trabalhadores. O poder de mando do capital se tornou tão grande sobre o trabalhador com a reestruturação produtiva de décadas, a ponto de isolar movimentos de esquerda, tornando-os potenciais desestabilizadores de defesas que os trabalhadores desenvolveram para sobreviver ao trabalho, no trabalho, ao mercado e no mercado. A desestabilização em si não é ruim, a questão é que esse potencial de desestabilização tem levado a uma defesa da defesa e, assim, ao ataque a esses movimentos de esquerda.

9. Não adianta fazer porra-louquice, tem que suportar o retrocesso.[3]

Notas

[1] Ver o livro O Poder de Agir, de Yves Clot, editora Fabrefactum, Belo Horizonte, 2010, p. 285.
[2] Sobre isso ver o livro A Banalização da Injustiça Social, de Christophe Dejours, ou Psicodinâmica do Trabalho, de Christophe Dejours, Elisabeth Abdoucheli e Christian Jayet.
[3] “E não adiantava fazer porra-louquices! Você tinha que suportar o retrocesso”. Depoimento de Luizinho, metalúrgico do ABC, sobre certo período dos anos 80 em que os operários perderam poder no chão de fábrica. Contido no livro Comissões de Fábrica: um claro enigma, de Valdemar Pedreira Filho, editora Entrelinhas, São Paulo, 1997.

Ilustram este artigo obras de Gustave Courbet e de Francisco Goya.

3 COMENTÁRIOS

  1. Olá, queria saber da autora e de quem tenha lido: e aí?

    Se os movimentos de esquerda (ou os trabalhadores de esquerda) vão se isolando nessa conjuntura de retrocesso, o que se faz para “suportá-lo”, ou para trazer de volta às principais lutas os colegas do local de trabalho? Penso que esse refluxo é muito comum nesse contexto – também passo por isso -, me parece que a consciência geral dos trabalhadores fica mais rebaixada, acuada mesmo em situações onde não há um risco aos empregos, por exemplo. Agora, o que fazer? Me parece que apenas “suportar” ou lutar por questões menores não apontam uma saída nesses momentos.

  2. O que seriam questões menores? O que seria apontar uma saída? O que seria saída? Saída do que? Tem que reconstituir do zero… trabalho a partir as lutas pequena mesmo.. é daí que se forma a consciência de classe e se acumula experiência e sabedoria de luta. O problema é que, para pegar o exemplo do serviço público, muitos órgaos estao em processo de extinção por estrangulamento orçamentário, falta de reposição de servidores, falta de valorização das suas funções. Então parece que antes de sairmos do zero morreremos despencando do abismo orçamentário. De toda forma o aprendizado de luta se carrega para outros lugares em que esas pessoas estiverem inseridas.

  3. O problema é de negação. Negamos, além da morte, o desenvolvimento da história. Se Deus está morto, no desenvolvimento das forças produtivas, até quando haverá a necessidade da vida (ou, noitros termos, da produção e reprodução) de seu mais importante elemento? Tudo chega ao fim, até mesmo os modos de produção. Mas a história não garante o Paraíso, nem para o dominador, nem muito menos para o dominado… Ela garante sua constante e viva mobilidade… Por isso “a vida é (e sempre será) um moinho…”

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