Por Julius Unsichtbar

De manhã cedinho, no subterrâneo…

Havia duas empresas que ousaram abrir no primeiro de maio naquela região da cidade. Um supermercado e um restaurante. Alguns trabalhadores que estavam de folga detectaram a insatisfação que havia dos funcionários com a situação. Para esses que estavam trabalhando, primeiro de maio não era nem dia de luta nem de festa. Apenas mais um dia de opressão e exploração. Os trabalhadores de folga organizaram uma pequena panfletagem e manifestação para lembrar a esses colegas trabalhando que 1º de maio era um dia de luta contra a reforma da previdência, que devia ser de folga e que eles não estavam sozinhos. O pessoal na ativa sorriu mesmo foi com a menção ao direito à folga. A ação pegou os patrões ‘ousados’ totalmente de surpresa, conseguiram entregar panfletos dentro da cozinha e no armazém do supermercado. O gerente, que não imaginava que existisse isso, demorou para perceber e quando a polícia foi chamada, foi com muito atraso e os manifestantes conseguiram escapulir. O vigilante, por simpatia ou por não ter instruções, fez corpo mole. Quais as consequências da ação? Difícil saber. Mas antes não havia disputa aberta acontecendo naqueles lugares – era apenas a ditadura pessoal dos patrões e gerentes. “Ame-nos ou rua”. Com a ação, outro assunto e alternativas entraram em cena para ser, ao menos, o comentário da semana. “Por que diabos esse povo veio aqui arrumar confusão… será que estavam certos ou errados? São doidos ou lúcidos? Será que pode panfletar aqui dentro”?

Ficaram as questões para esses trabalhadores: os que organizaram e os que receberam.

Na tardezinha, se manifestam ao céu aberto…

1 – A Esquerda Mais ou Menos Sem Medo

Todas as Centrais Sindicais e Frentes Populares, Sem Medo e tudo mais anunciaram que haveria uma grande manifestação unificando a todos contra a reforma da previdência. Vários trabalhadores da base da educação básica e superior, urbanitários, comerciários relatam pouquíssima mobilização nos locais de trabalho salvo pelo carro de som avisando do ato dois dias antes. Começou na Catedral da rua dez umas 14h30, terminou na Praça Universitária umas 20h com festas e shows da ‘cultura popular’. O resultado se vê aqui na foto:

Lula Livre, vermelho, pouca diversidade estética, estilo ‘trabalhador tradicional’, pouco mais de cem trabalhadores

2 – “O pessoal que não fecha com ninguém mas tem coragem”

Por outro lado, duas organizações de trabalhadores independentes na cidade, a Federação Autônoma de Trabalhadores, o Invisíveis e independentes chamaram um Bloco Autônomo pelas críticas dessas organizações à histórica pelegagem das centrais, sua traição costumeira das bases e sua desmobilização. A ideia era juntar trabalhadores e estudantes que não fechassem politicamente com as entidades. Conseguiram mobilizar pelas redes sociais e, com bastante dificuldade e esforço, em alguns locais de trabalho na semana antes do ato. Começou na Catedral da rua dez, terminou na Praça Universitária. Começou às 13h, terminou às 16h. Foi mais agitado, teve uma batucada das boas. O resultado, também, se vê em uma imagem:

Muito preto e vermelho, cores vibrantes e agitação, pessoas jovens e ‘diferentes’, mas também na casa de cem

3 – “Deus não está morto não”!

Desde 2018, a Marcha Para Jesus é realizada em Goiânia no primeiro de maio “para aproveitar o feriado”. Nesse ano, com apoio da estrutura do estado e prefeitura, conseguiram reunir pelo menos cem mil pessoas de acordo com o jornal O Popular. A convocatória é feita pela Igreja Fonte da Vida, mas é assumida por diversas igrejas. O evento recebe caravanas de todo o interior de Goiás. Vejamos como foi a de 2018, que pela contagem dos jornais deu cem mil pessoas.

A faixa com destaque ’político’ era essa da ”ideologia de gênero” e outra com ”diga não a pedofilia”

Em 2019, não foi muito diferente. “Aproveitaram” o feriado do primeiro de maio para reunir os fiéis e esperam pelo menos 200 mil pessoas. A programação começou às 14h com uma marcha enorme de milhares e milhares a perder de conta da Praça do Avião até a Praça Cívica e vai até as 22h com shows e orações. Vamos a mais uma foto ilustrativa, dessa vez de 2019, para finalizar o relato e começar uma reflexão:

À noite, bateu a bad e os shows evangélicos não deixavam ninguém dormir…

4 – E agora?

Convidei uma colega de algumas lutas para o ato dos ‘intransigentes’. Essa colega é trabalhadora precária e não tem religião. Ela me respondeu: “Anem, pra quê? Vou pra Marcha de Jesus. Vai ter muita gente e pelo menos não vou ficar sozinha”. Confesso que não consegui falar para ela qual seria a vantagem maior de participar do ato “de luta” ao invés de procurar alguma companhia e conforto. Quando ela precisou de moradia porque ficou desempregada sem pagar aluguel, quem a ajudou não foi o pastor, mas foi uma irmã evangélica que ofereceu a casa. Em troca essa irmã ofereceu também um forte controle sobre seus hábitos e suas relações, querendo restringi-los à igreja. Esse controle não acontece pacificamente, gera muito conflito. Mas ela sabe que fora dali dificilmente ela vai conseguir o apoio que conseguiu. Por outro lado, ela sabe que é com nós “esquisitos” que ela consegue apoio contra o patrão que rouba seu salário, com divulgar os problemas, somos os únicos que topariam uma briga pelo direito dela e dos colegas. Existe uma brecha aí em que conquistamos sua confiança. Porém, realmente não oferecemos uma situação em que ela não fique sozinha mesmo. Essa disputa, me parece, nós já perdemos. Com ela, perdemos as ruas.

Resta fazermos as contas. Não apenas estamos perdendo. Estamos fora do jogo! 200 mil contra 100 unidades não tem nem disputa. Onde ainda podemos ser fortes? Onde o nosso conflito ainda faz sentido e onde é possível expandir as relações de confiança que nos interessam? E o que falta para começarmos a nos arriscar e construir isso? Penso que a resposta pode estar na ação descrita no começo do texto, em que foi possível, com uma ação organizada, romper uma situação favorável aos patrões e vislumbrar um horizonte diferente. Ali, naquele pequeno universo que se repete por toda a banda, quem roubou a cena foi a subversão dos trabalhadores em luta e solidariedade. Mas ainda é muito pouco ou quase nada.

8 COMENTÁRIOS

  1. Quem tá na igreja é assim: você compra o Marmitex do irmão evangélico, contrata o eletricista evangélico, recebe ajuda do advogado evangélico, vai na padaria do irmão, no açougue do outro irmão, se tá desempregado, os irmãos ajudam e assim segue. É uma rede de proteção e apoio. E tem música, tem passeio, tem namorada.

    Só que tem que entrar na linha. A comunidade vigia.

    Diante do mundo cão da periferia, é uma opção muito considerável.

  2. 1o de maio é um dia folclórico. O ciclo de lutas que o criou e reivindicou já se exauriu. Para que cantar a internacional se ninguém conhece essa música?

    Se o tempo é realmente a substância do capitalismo, devemos nos esforçar para treinar nossa taumaturgia e criar tempos diferentes. A principal forma de fazer isso, sim, é a luta direta e concreta contra a exploração. Mas se entre luta e luta não inventarmos novas formas de criar um tempo novo, um tempo que faça sentido aos e às trabalhadoras, o capitalismo e o arcaismo seguirão nos vencendo.
    E que tempo mais gostoso existe, do que tocar uma viola em boa companhia? Talvez com um pouco de vinho, amigos e amigas cantando juntos numa noite de calor. Acho que isso é mais gostoso do que marchar com bandeiras.

  3. Vejam a síntese que Só Jesus Salva fez.

    É o mutualismo da sociedade de serviços, do capitalismo pós-industrial. A forma de solidariedade entre trabalhadores,precarizados, autônomos, seviristas…, que é a composição preponderante da classe trabalhadora das periferias brasileiras (e mundiais). Só que essa solidariedade está sendo organizada pelas Igrejas evangélicas. No lugar da luta sindical e da solidariedade do chão de fábrica, quem religa os trabalhadores dispersos no território da fábrica difusa é a religião, ou melhor, a religião institucionalizada em Igreja. Religar que é uma das etimologias supostas da palavra religião.

  4. IMPORTANTE REFLEXÃO contida no texto. Daqui por frente e rapazeada tem que produzir mais na tematica, conectar-se com a realidade sem esbarrar no problema dos evangelicos eh delirio.
    UM PALPITE. A luta tem que ser de forma global(por varias frentes) e ofertar de forma combativa solucoes para a vida pelo sindicalismo, moradia, educacao popular, cultura de resistencia, promovendo o apoio mutuo em larga escala contra estado e patronais. Caso contrario eh 100 mil, 200 mil, 300 mil contra os/as/xs 200 pra sempre. Reconstruir o tecido social e construir um POVO FORTE ja alertam uns velhos a anos. Nao da mais tempo pra comer mosca. Ha luta companheiros.

  5. Raul Seixas,

    os dois comentários não são contraditórios.

    Lá discuti que apesar das Igrejas criarem um ambiente de contato e assim aumentarem a probabilidade de criação de redes de solidariedade por si só, no entanto isso não explicaria o crescimento inicial delas e nem o que nelas atraem as pessoas.

    Aqui afirmei novamente, de outro modo, que é o ambiente dessas Igrejas que religa os trabalhadores. De algum forma a solidariedade, ou redes de apoio mútuo, está sendo organizada por essas Igrejas, com a precarização sendo capitalizada por elas.

    Tenho uma amiga evangélica que numa situação econômica difícil teve um emprego indicado por um pastor, ou alguém da Igreja, já não me recordo. No entanto ela não se tornou crente por causa da sua situação econômica na época (que nem era ruim) ou em busca de solidariedade.

    Agora, para quem precisa ler discussões de textos diferentes exatamente com as mesmas palavras, como se fosse copia e cola, obviamente vai achar que as pessoas mudaram totalmente suas posições. Precisa aprofundar um pouco mais a reflexão na hora de interpretar textos.

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