Por Primo Jonas
A economia argentina vai tão mal, mas tão mal, que Macri conseguiu o impensável: hoje sua figura consegue ter maior reprovação eleitoral do que Cristina Kirchner nas eleições passadas. Esta última teve que surfar o efeito da crise mundial e o esgotamento das políticas anticíclicas, somadas à carga da mídia tradicional, que a pintavam como autoritária, corrupta, etc. Já Macri contava com grande apoio daqueles setores da população que queriam uma mudança: de política econômica (fim da restrição à compra de dólares, da inflação), da “cultura política” (fim do amiguismo peronista), da corrupção e outras estratégias de marketing parecidas. A questão é que tudo isso se voltou contra o ex-presidente do Boca Juniors. Ao fim dos seus 4 anos de mandato, a inflação aumentou, e muito, mesmo em comparação com os anos de Cristina; o peso se desvalorizou brutalmente (ano passado um dólar era 20 e poucos pesos, hoje está em aproximadamente 45); os casos de corrupção e os manejos do sistema judicial por parte dos políticos de todas as facções são cada vez mais escancarados. Mas talvez o que dá sinais da fraqueza de Macri, e traz consigo fantasmas amargos à capital portenha, é a intervenção do FMI.
Pois bem, frente a esta situação muitas das bases sindicais pressionam a CGT [Confederación General del Trabajo], maior e mais importante central sindical do país, para que faça uma paralisação. É um balé que tem sempre o mesmo roteiro: pressionar a cúpula. A cúpula então dá declarações dizendo que é muito necessário fazer uma paralisação. Dizem que ela ocorrerá “neste semestre”. Se as negociações com o governo não avançam, dizem que ela ocorrerá “em tal mês”. Colocam uma data. Se as negociações não avançam, na última semana se decide que tipo de paralisação ocorrerá. Se chegam a algum acordo com o governo, cancelam a paralisação ou tentam realizar uma farsa.
Praticamente todos os anos este balé é exercitado, inclusive pelos partidos “operários” que insistem em pressionar a tal burocracia sindical para que estes encabecem a luta, ao mesmo tempo em que falam mal deles e dizem que é necessário combatê-los. Nesta grande performance social, as vezes o show sai do controle. Em 2017, neste roteiro conhecido de todos, o aparelho da CGT cometeu algum erro de cálculo — tanto no que diz respeito ao ânimo dos trabalhadores quanto ao número de homens no seu “serviço de ordem”— que terminou com a invasão do cenário de um ato público e com a fuga dos dirigentes cegetistas, sob o grito de “¡poné la fecha!” [“marquem a data!”].
Neste ano de 2019, complicado pelas eleições, houve também um ensaio do balé para que se convocasse uma paralisação nacional contra as políticas econômicas do governo. De fato houve inclusive uma marcha da CGT junto a setores empresariais para pedir uma melhor situação para a produção nacional. Foi então que algum gênio teve a grandiosa ideia de propor uma paralisação nacional para o dia 1º de Maio, uma superação no campo da estética conceitual sindicalista, digna da vanguarda argentina. No final das contas, a CGT, um par de semanas antes, tirou o corpo fora e apenas os sindicatos ligados ao transporte mantiveram a convocatória de paralisação neste dia, dado que as empresas do setor operam com perdas nos feriados, fazendo desta paralisação uma verdadeira ajuda aos patrões.
Por outro lado, um setor “combativo” da burocracia sindical, ligado ao capo Hugo Moyano dos caminhoneiros, além dos setores estatais e outras categorias “combativas” nucleadas na central sindical CTA, anunciaram que fariam uma paralisação paralela no dia 30 de Abril. É necessário esclarecer que os dirigentes destas categorias, inclusive o ex-dirigente máximo da CGT, Hugo Moyano, têm uma proximidade importante com Cristina Kirchner. Para este setor, golpear o governo é uma forma de campanha antecipada contra Macri, além de gastar a imagem da atual cúpula da CGT. Circulou recentemente uma intenção de paralelizar a CGT, como tantas vezes já ocorreu na história da Argentina, isto é, uma ameaça de colocar em cheque a “direção nacional unificada” dos sindicatos… por meio de uma outra condução que disputa o mesmo título.
Nada ilustra melhor esse balé do que a farsa montada no sindicato de transporte de passageiros, a UTA. Aderida formalmente à paralisação do dia 1º de Maio, a poucos dias da paralisação paralela do 30 de Abril um setor interno da UTA, mas em oposição à atual direção, declara que haverão adesões de certas linhas de ônibus à paralisação do 30, por meio de “assembleias locais”. Oras, a declaração vinha do anterior secretário de organização do sindicato, Miguel Ángel Bustinduy, que é vinculado a uma das principais empresas do setor, a DOTA. De fato, os motoristas de ônibus o conhecem bem: foi o responsável pela repressão aos motoristas da empresa Autobuses Buenos Aires na ponte La Noria e dos motoristas da linha San Vicente. De fato, existem comentários no Facebook de que muitas linhas de ônibus estão sendo “apertadas” para não operarem no dia 30, e a grande maioria das linhas anunciadas na paralisação paralela pertencem… ao grupo DOTA.
Sendo assim, parece ser razoável considerar, uma vez mais, que estas paralisações nacionais de cúpula não são um termômetro interessante para medir as lutas num nível nacional; elas expressam principalmente as dificuldades do sistema econômico corporativo argentino, isto é, as pressões opostas entre os acordos sindicatos-Estado-empresários e os acordos entre dirigentes sindicais e trabalhadores. O balé e as farsas são um exercício de transformar as pressões “dirigentes-trabalhadores” em ferramenta para renegociação de acordos “sindicatos-Estado-empresários”. Enquanto isso, a luta de classes no território argentino segue silenciosa em lugares de trabalho, quase não chega a interessar à esquerda e à extrema-esquerda empenhadas em conquistar aparelhos sindicais e postos de direção. São lutas como a das empregadas domésticas em Nordelta, que chegaram a realizar piquetes com uma dúzia de trabalhadoras contra um sistema de apartheid nos condomínios fechados, ou a luta das operárias da fábrica textil Textilana, que realizaram uma greve de tempo indeterminado contra os ritmos de trabalho e outras condições de exploração. O sistema sindical argentino funciona como camisa de força, não apenas nos casos de repressão direta à luta de trabalhadores, mas como uma camisa de força ideológica, que condiciona a forma de pensamento das esquerdas, mas principalmente a dos próprios trabalhadores e trabalhadoras.
Primo Jonas, interessante este relato porque se pode ver o mesmo balé aqui. O 15 M foi tirado na assembleias da apeoep ha um mês contra a reforma da previdência, mas curiosamente o governo “corta” as verbas das universidades dias antes do protesto, que jogou a luta contra a previdência para o escanteio e colocou no lugar a luta contra o corte e contra o bolsonaro. Todos somos contra o bolsonaro, mas a pergunta que fica é a quem interessa esse giro? O inacreditável dessa históriaé que os generais voltarão a pedidos da esquerda… Saíram ileso dos atos do 15M: Bruno Covas, João Dória e Hamilton Morão. Todos os partidos de esquerda “esqueceram” deles.
Como você disse: “segue o balé” e o baile.
olá Ob-servo,
pois é, segue o balé aqui também, vejam só os próximos passos:
Dia 25, sábado que vem, feriado nacional, nova paralização da UTA, principalmente transporte público urbano. A “reivindicação” é contra os impostos sobre os salários (Impuesto a la ganancia), que se aplicam a salários médios e altos no país, e é uma polêmica faz anos já. O mais barroco disso tudo é que o capo do sindicato já mandou avisar que haverá paralisação TODOS os feriados “enquanto não cair esse imposto”. É muita luta. https://www.diariopopular.com.ar/general/la-uta-confirmo-que-habra-paro-colectivos-el-25-mayo-n394925
Dia 29, na outra quarta-feira, paralisação da CGT, “contra a situação econômica do país”, embora muitos saibam que a paralisação foi motivada pelo recente ataque jurídico à família Moyano, que embora não faça parte hoje da CGT, representa um bastião do poder corporativo. “Mexeu com um, mexeu com todos!” https://www.pagina12.com.ar/193764-la-cgt-convoco-a-un-paro-general-para-el-29-de-mayo
Ao comparar os dois contextos, me parece que o sindicalismo argentino ainda conta com bases de sustentação extremamente fieis e com um alcance não desprezível nas bases. Especialmente depois de tantos anos de crise: para muitos trabalhadores, durante estes anos o sindicato deixa de ser apenas um aparelho oportunista que bate o bumbo e espalha panfletos por aumentos de algo%, para tornar-se em um dos últimos recursos contra uma demissão. Justamente por contar com essa influência controlada é que os sindicatos aqui ainda fazem de tudo para evitar qualquer tipo de assembleia ou mobilização alheia em seus territórios. Já no Brasil, que tenha havido protestos no 15M em mais de 100 cidades (ou até mais de 200), é algo que aqui só ocorre com o tema feminismo x ideologia de gênero, ou com datas religiosas. É notório a necessidade que os aparelhos no Brasil estão tendo de mobilizar as bases para mostrar algum sentido de vida. Sua existência está mais arriscada, e por isso tomam mais riscos de insuflar movimentos que não têm um destino certo nem seguro. Porque, talvez questionando um pouco o que você diz, se o povo se organiza para defender o orçamento da educação pública contra os ataques do governo Bolsonaro, isso em termos militares significa que os corpos estão treinados e a moral está elevada para qualquer nova mobilização no curto-prazo. Isso não é bom para nenhum governo que esteja aplicando ajustes fiscais.