Por Priscila Dorella
Roma (2018), do diretor Alfonso Cuarón, teve no Brasil entre os assinantes do Netflix uma repercussão ampla e positiva. Eles ressaltaram em suas críticas a beleza da fotografia em preto e branco, a intenção autobiográfica do diretor e a identificação com a história mexicana. As manchetes dos jornais foram de encantamento: “Alfonso Cuarón faz carta de amor à sua babá no melhor filme de 2018 (CinePOP)”; “Diretor mexicano Alfonso Cuarón trata de relações entre patrões ricos e seus empregados com delicadeza e sem panfletarismo (G1-Glob0)”; “Filme Roma é a demonstração de uma sensibilidade e do caráter de Cuarón (Folha de São Paulo)”.
Foi a primeira vez que o Netflix conseguiu levar o Oscar com um filme lançado antes de ser exibido nas salas de cinema. Isso criou polêmicas e aumentou o interesse de parte da classe média brasileira, principal consumidora do Netflix no Brasil. Vale lembrar que faz poucos anos que Netflix, Amazon e Uber entraram em boa parte da América Latina dominando o mercado sem pagar quase nada de impostos ao oferecer uma tímida contrapartida social. Netflix adotou uma estratégia de desenvolver uma audiência global com os seus produtos, mais do que qualquer outra companhia, difundindo documentários e filmes americanos, e levando produtores de diversos países a se tornarem dependentes de seus financiamentos.
Não foi diferente com Alfonso Cuarón, que tem uma carreira internacional em Hollywood maior do que a de diretor no México. Seus primeiros filmes Sólo con tu pareja (1991) e Y tu mamá también (2001) foram filmes juvenis de Hollywood. Mesmo Roma sendo algo distinto e pessoal, foi produzido pela indústria americana. O filme é autobiográfico, uma vez que o diretor, branco e de classe média alta, conta a história inspirado na sua babá (Libéria Gutierrez) que trabalhou a vida toda na casa de sua família como empregada doméstica. O retrato elaborado dela é de uma figura indígena servil, resiliente e dócil que constrói na relação desigual com a sua patroa laços afetivos. Apesar de tratar com distância os aspectos políticos e mesmo o racismo, é possível reconhecer que a ambiguidade apresentada coloca em evidência tanto as desigualdades brutais entre gênero, raça e classe quanto as complexas relações interpessoais. Ou seja, o filme, dirigido pelo crítico diretor dedicado a desvelar parte do racismo mexicano, dá margem tanto para a indignação com relação às relações de servidão quanto para a compreensão de que isso fez e faz parte “naturalmente” da vida doméstica na América Latina.
No discurso de agradecimento ao Oscar de Melhor Diretor, Alfonso Curón afirmou: “Quero agradecer por reconhecerem um filme que fala das 70 milhões de trabalhadoras domésticas do mundo, que não têm direitos, uma personagem relegada ao pano de fundo; como artistas devemos ver de onde os outros nos olham, essa responsabilidade é mais importante nos momentos que nos incentivam a olhar para outros lados (…) Obrigado, México!”
Chama atenção o fato dos personagens não terem história, quase tudo se passa no plano presente sem que a câmara se envolva com eles. É uma visão do passado doméstico recente (1970), que é também atual. No México de hoje, quase metade das empregadas domésticas iniciam suas atividades sendo menores de idade e a maioria descansa apenas uma vez por semana sem seguro social. O trabalho doméstico na América Latina anda sofrendo duros golpes no que diz respeito aos parcos direitos adquiridos. A estabilidade das relações domésticas apresentadas no filme dá indícios de que é ainda preferível ser explorado que ser dispensado. Em 2018 no Brasil, segundo o IBGE, aumentou o número no emprego doméstico sem carteira assinada afetando de forma significativa as pessoas com renda mais baixa. O atual presidente do país, sempre que pode, lembra a população brasileira que é preciso escolher entre trabalho sem direitos (trabalho precário) ou direitos sem trabalho (desemprego).
Considero o filme de Alfonso Cuarón muito bem feito e esteticamente lindo, mas não acredito que ele tenha o poder de fazer com que uma classe média alta e branca perceba suas posturas conservadoras e deseje transformá-las. Estamos divididos politicamente ao ponto de discursos identitários (raça, gênero e classe) não produzirem uma mudança estrutural e nem mesmo garantirem a vida democrática. Como observa o intelectual italiano Enzo Traverso, no livro Melancolia de Esquerda: Marxismo, História & Memória (2017), sexo e raça já não são vistos necessariamente como marcas de uma opressão histórica e sim como categorias adaptadas a um reconhecimento cômodo que pode moldar, resistir, problematizar… mas não emancipar. (p.36)
Assim, o filme é capaz de levar o público a gostar dele pelos motivos errados, pelos motivos que mantêm a desigualdade social na América Latina. Será que não é possível imaginar resistências e frustrações advindas da exploração do trabalho doméstico? A quem serve a celebração dessa história romântica de submissão? Por que a classe média vai querer se livrar de hábitos racistas que a faz se sentir cômoda? Este filme não seria mais uma produção americana que busca retratar a América Latina como o lugar da violência, do perigo e da desesperança? Não são respostas fáceis e sabemos que o diretor não tem obrigação nenhuma de produzir uma obra diferente da que acredita. Mas quando ele é celebrado em Hollywood por denunciar o racismo no México é preciso pensar sobre o que isso significa. Nesse momento neoliberal retrógrado da América Latina, não consigo ver no filme, apesar das qualidades reconhecidas, um sinal que provoque uma centelha de transformação social a partir de uma mudança de consciência.
O identitarismo fundiu a cabeça das pessoas.
Mais ninguém consegue ver uma obra de arte sem procurar nela um manifesto ou alguém sendo culpabilizado por algo. Percebê-la enquanto uma boa síntese das contradições pra quê!? Uma expressão do que não se consegue ainda ser transformado em discurso direto, linear e objetivo?
O filme de Cuarón tem por objetivo sensibilizar a classe média alta branca brasileira? Não tem pé nem cabeça essa formulação… Pra produzir um filme como esse tem que fazer exatamente oposto: visitar o passado sem se sentir culpado, sem se preocupar em produzir um manifesto de autoimolação. Claro que as opressões de gênero e de raça, e a exploração de uma classe sobre a outra, estão por todo o filme, se entrelaçando de uma forma que jamais o identitarismo conseguirá fazer. Porque, afinal, a vida é assim. É a complexidade da vida que essas pessoas se recusam a aceitar, tirando dela apenas um elemento e escanteando todos os demais.
Por que choca tanto uma empregada doméstica indígena, que é explorada, maltratada, mas ao mesmo tempo ama os seus minipatrões? Por que choca tanto a mulher branca, classe média, que oprime e ao mesmo tempo é oprimida? Que abandona e é abandonada? Que subjuga e tem afeição a sua empregada? Que sofre e ao mesmo tempo é indiferente ao sofrimento alheio? E o homem que é pobre, mas também um escroto, e que abandona a companheira grávida e se junta à milícia para defender uma ditadura? Qual é a exceção de todos esses personagens!?
Da crítica de Priscila Dorella destaco uma parte: “o filme, dirigido pelo crítico diretor dedicado a desvelar parte do racismo mexicano, dá margem tanto para a indignação com relação às relações de servidão quanto para a compreensão de que isso fez e faz parte ‘naturalmente’ da vida doméstica na América Latina”. Ora, o racismo mexicano — e também o brasileiro — não precisa ser desvelado. Quem não o viu até hoje não o verá nunca mais. Não há nada mais escancarado do que o nosso racismo latinoamericano. Mas é essa interpretação ambígua — o filme é uma justificativa da exploração ou um grito de revolta? — que faz do filme merecer os elogios. Não que o filme seja isso, mas porque nos mostra que somos isso.
Pois, no meio de tanta porcaria o filme de Cuarón é uma esperança. Me espanta muito que tenha conseguido alcançar um público tão grande nesse exato momento onde quase todas as salas de cinema estão ocupadas por super-heróis ou filmes panfletários (a exemplo do filme de Spike Lee, desculpa) que precisam falar o óbvio e de forma direta, de preferência nos fazendo rir para que não saiamos incomodados, não precisemos pensar (muito). É claro que o filme de Spike Lee tem suas sutilizas, afinal, é um filme de Spike Lee. Mas quem liga para elas quando podemos sair da sala de cinema tranquilos ao ver nazistas trogloditas sendo comediados por um herói negro, bonito e inteligente?
Não há heróis no filme de Cuarón, pois não há heróis na vida real. Somos todos cretinos (e cretinas). E é desse material que a vida é feita.
Mesmo com os mil pés atrás que tenho pra falar sobre arte e cinema, por ser um assunto que tenho pouco contato, concordo com o Daniel no sentido de que a arte pode trazer uma mensagem política sem necessariamente se submeter à forma metodológica de agitação e propadanda que nós, da esquerda, realizamos em nossas lutas. Creio que o que o Daniel fala, das contradições dos (e entre os) personagens é um retrato da realidade cujo serviço é maior para manter nosso imaginário com o “pé no chão” do que esses filmes maniqueístas do Spike Lee, Panteras Negras, etc.
Acho que a analise critica deveria ter dado maior atenção às interpretações que intelectuais progressistas/esquerda estão fazendo de tal filme e (aí sim), analisar a resposta política que oferecem frente ao fenomeno que o filme se volta. Das almas caridosas, progressistas e preguiçosas está vindo essa culpa imediata que aponta ou para 2022 como redenção política ou pra aceitação imediata de qualquer tese vindo de alguém que reproduz uma ideia que a fundação ford adoraria patrocinar.
“Ora, o racismo mexicano — e também o brasileiro — não precisa ser desvelado. Quem não o viu até hoje não o verá nunca mais. ”
para além de qualquer crítica sobre o material audiovisual em questão, essa linha argumentativa me parece pobre e elitista. Não foi função primordial da arte moderna a desnaturalização da representação? Oras, esse expediente visava justamente romper com tudo aquilo que era absorvido como estrutura naturalmente dada do mundo para o campo das representações, fossem elas as cores, os contornos, mas também os temas, os ritmos, as formas.
Existem milhões de lationamericanos que ainda tomam o racismo como um fato dado, uma estrutural social na que somos apenas passivamente encaixados, e essa aceitação é parte da reprodução das condutas, o famoso “a culpa não é minha”. Se o campo das artes não existe para desnaturalizar isso e transtornar visões de mundo, só pode servir para apaziguar. E então teremos arte apaziguadora para os que enxergam a realidade e a arte apaziguadora para os que não enxergam a realidade.