Por Um ex-funcionário

Fui funcionário da Livraria Cultura do Centro do Rio de Janeiro. Passamos por, mais ou menos, um mês de treinamento em uma sala alugada pela empresa. Nesse treinamento, era tratado sobre o salário. E, lembro-me como se fosse hoje, a Sra. do RH falando que não sabia ao certo quanto íamos receber, pois estavam analisando uma nova forma de pagamento. O que chamavam de “variável”. Só alegavam o teto salarial e que a variável poderia chegar até R$ 5.000,00. Doce ilusão.

Pouco depois disso, com a loja ainda, grosseiramente, em obra, precisamos, todos começar a “montar a loja”. Separávamos os livros, CDs e DVDs por gênero sem poder consultar nenhum sistema, uma vez que a loja estava no esqueleto. Carregávamos caixas e mais caixas daquelas dezenas de “50 tons de cinza”. Subindo e descendo escada sem parar. Trabalhamos no meio daquela poeira de obra, sem janelas, ar condicionado ou ventilador. Ficávamos sufocados com tanta poeira e cheio de cimento e tinta. Muitos funcionários ficaram doentes, com problemas respiratórios.

Não havia banheiro para utilizarmos. Precisávamos sair da loja, atravessar a rua e ir até o Bob’s se quiséssemos fazer nossas necessidades.

Trabalhamos 14 horas por dia, e houve quem trabalhou na madrugada tendo menos de 8 horas de descanso para voltar a trabalhar. Trabalhamos muito além do que deveríamos. Muitas horas a mais do nosso expediente. Serviço brutalmente braçal, durante horas, sem respirar direito, sem banheiro, tossindo, sofrendo pressão, pois tínhamos que correr, porque a loja tinha data para ser inaugurada.

Não havia nenhum controle de entrada e saída. Eles só viam a hora que chegávamos para distribuir as tarefas e só podíamos sair quando fosse liberado. Porém, como disse que não tinha controle, deixamos horas e horas extras de graça para a Cultura. Pois ela nunca nos pagou pelas horas a fio que ficávamos a mais naquele ambiente extremamente insalubre. Nas semanas da inauguração, chegamos a trabalhar da abertura da loja até o fechamento. E também não recebemos hora extra ou, sequer, foi descontado em banco de horas.

Passamos mais de 10 dias sem ar condicionado na loja. Passei muito mal devido ao calor do ambiente fechado. Recebemos um comunicado de São Paulo de que era estritamente proibido se abanar dentro da loja, o que era o que nos restava naquele calor absurdo. Tanto, que clientes abriam os botões de suas camisas. Não estou exagerando. Lembro que eles, os clientes, falavam que sentiam pena da gente. Porque eles estavam ali por pouco tempo, que já iam embora. Mas nós não. Nós passaríamos, pelo menos, 8 horas naquele local.

Antes da inauguração da loja, nos foi prometido uma “sala de convivência”, com sofás, computadores, jogos e demais coisas para nos distrair e descansar. Não que isso seja obrigação deles, montar esse espaço, mas nos foi prometido na época dos trâmites admissionais. Nos ludibriaram. Depois de quase um ano, fizeram uma sala claustrofóbica, com uns quatro puffes, sendo que a escada para chegar até a sala era tão estreita, que alguém um pouco mais acima do peso não conseguia subir. Humilhante!

Não podíamos sentar em nenhum momento. Não podíamos nos curvar, nem bocejar e nem nos falar. As metas nunca foram alcançadas. Por isso, nosso salário era sempre muito baixo.

Depois que o gerente da inauguração foi demitido, entrou um que tinha vindo da FNAC. Esse nos fez passar as piores situações dentro da loja. Nos perseguia a todo momento e fazia de tudo para nos dar uma advertência. Estávamos nos sentindo oprimidos. Algumas pessoas desabafavam, com certos comentários, não agressivos, mas desabafo de estafa em redes sociais. E chegou ao ponto da Sra. do RH de São Paulo, ligar para uma funcionária dizendo que tinha lido o que havia postado. Sendo que elas nem eram “amigas” no Facebook (e nem em lugar nenhum). Essa funcionária, por sua vez, colou um adesivo no seu armário com uma frase sobre vigiar e punir, de Foucault. Ela foi advertida, perdendo toda a sua comissão. (Porque, caso fosse advertido, você ficava inelegível para eles e não tinha o direito à comissão). Alegaram que era porque não era permitido colar adesivos nos armários, sendo que quase 40% dos armários eram adesivados. Alguns até com fotos de filhos e esposa.

Eu sofri muita perseguição do gerente da época, que era extremamente hostil e mal educado. Sem contar que não tinha a menor cultura. Não tinha o “Jeito Cultura de ser”. Ele só tinha sangue nos olhos e só queria vender. Não entendia de nenhum livro, nada. Contratou pessoas que não tinham o menor conhecimento. Lembro de um funcionário que me disse que só tinha lido um livro na vida, um do Fluminense.

Tive uns problemas físicos de saúde e precisei faltar alguns dias com atestado médico. Mesmo assim ele me deixou inelegível e tirou minha comissão. Disse que eu estava proibido de pegar mais alguma licença. No meu setor, que no início eram nove pessoas, por fim tinham três. Três para vender por telefone, vender por e-mail e sem contar a fila de clientes que se formava à minha frente. Tudo isso me deixava trêmulo, muito nervoso. E o gerente passava e ainda me olhava de cara feia, sem me ajudar em nada. Para não pagar hora extra, precisávamos bater o ponto no horário exato de entrar e de sair. Quem não fizesse isso, era advertido. Sendo que só havia duas máquinas de ponto, e uma fila de, no mínimo, 20 funcionários para registrar a sua entrada. Isso atrasava, e nos gerava grandes transtornos. O gerente marcava a hora que eu entrava e saia do refeitório. E entrava lá e ficava me encarando.

As reuniões com a Sra. do RH mais o dono da empresa eram como uma tortura. Éramos diminuídos, humilhados. E quando não eram eles, era o gerente da loja com sua tortura psicológica diária a cada início de expediente. Adoeci. Chegou uma hora que não aguentei mais e tentei suicídio. Desde aquele dia, não voltei mais à empresa. Fiquei anos de licença me tratando, passando por CTIs e diversas clínicas psiquiátricas. Tomo remédios controlados até hoje e tenho que fazer terapia duas vezes na semana. A Cultura feriu minha vida e a de diversos funcionários. As únicas coisas que trouxe de lá foram as amizades e muita mágoa.

Este artigo é ilustrado por obras de Dieter Roth

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