Por Uma estagiária da Defensoria Pública

Na última segunda-feira (17/06), estagiários de mais de quase 40 unidades da Defensoria Pública de São Paulo (DPE-SP) paralisaram suas atividades reivindicando aumento do valor da bolsa estágio e um auxílio transporte compatível com os custos desse serviço. O valor da bolsa dos estagiários da instituição está abaixo do salário mínimo e não tem reajuste desde 2012, período em que sofreu uma desvalorização de 50%.

A DPE-SP faz uso da mão de obra de milhares de estagiários, sendo estes estudantes de direito, estudantes de outros cursos superiores e secundaristas. Os estagiários de direito, maioria na instituição, são os responsáveis por redigir quase todas as peças jurídicas e realizar os atendimentos com os assistidos pela Defensoria – fazendo, na prática, a maior parte do trabalho dos defensores públicos. O volume de trabalho exorbitante da Defensoria Pública, incompatível com o número de defensores, faz a instituição extremamente dependente de seus estagiários. Apesar da importância de seu trabalho, os estagiários, junto com os servidores públicos da DPE-SP, formam massa de trabalhadores precarizados da instituição.

Defensoria Pública – estágio elitista?

No mundo jurídico – como disse acima – são os estagiários que redigem a maior parte das petições, denúncias, acórdãos e sentenças. A mão de obra dos estagiários é a mais rentável para os escritórios de advocacia, que contratam estudantes sem vínculo empregatício e por um valor muito mais baixo para realizarem os trabalhos que deveriam ser feitos por advogados já formados. Os escritórios são também, ironicamente, os que menos respeitam a lei de estágio. Chovem relatos de estagiários que deixam de ir para aula “porque ficaram trabalhando até de madrugada no escritório no dia anterior”.

Os escritórios de advocacia de São Paulo pagam aos estagiários, em geral, mais que o dobro que os órgãos públicos. Diversos estudantes deixam de estagiar na Defensoria Pública, mesmo sabendo que “é o estágio em que mais se aprende”, porque não é possível viver com a bolsa paga pela instituição. Dessa forma, como afirmaram os estagiários em reunião realizada com a coordenação da Defensoria, “a DPE afasta os estudantes de baixa-renda que mais dependem do valor da bolsa”.

Em que pese a afirmação feita na reunião, a maioria dos estagiários na Defensoria Pública precisa da bolsa-estágio para seu sustento. Por meio de concursos publicos realizados bimestralmente, a DPE de São Paulo contrata estudantes das mais diversas faculdades de direito, que, em grande parte, dependem de programas de bolsas e financiamentos, como Prouni e FIES. Mais do que os escritórios, que procuram estudantes das faculdades consideradas “mais tops”, a Defensoria seleciona milhares de estudantes de baixa-renda.

O aperto no fim do mês; a discrepância em relação ao salário trinta vezes maior dos defensores; e a consciência do valor do seu trabalho para a instituição são elementos que explicam a gigante adesão ao movimento em todo o estado de São Paulo.

Organização no local de estágio

O movimento pelo aumento da bolsa-estágio começou quando um pequeno grupo de estagiários do centro de São Paulo decidiu reunir-se para conversar sobre o assunto. No mês de abril, o grupo fez abaixo-assinado online pelo aumento da bolsa, que, com a ajuda de defensores e servidores, foi assinado por mais de 1200 estagiários. “Os servidores e defensores ajudaram a gente a conseguir os contatos dos estagiários de outras defensorias para espalhar o abaixo-assinado”, conta um estagiário da DPE. Já em maio, os estagiários escreveram coletivamente uma petição – uma velha conhecida da categoria – em que fundamentaram seu direito ao aumento e formularam propostas de valores com base no orçamento da DPE-SP. A petição, junto com o abaixo-assinado, circulou na lista de emails.

Em junho o grupo de estagiários do centro disparou no e-mail um “Google formulários” para avaliar a possibilidade de paralisação dos estagiários da Defensoria. O formulário sugeria duas opções de datas para a paralisação – uma quinta-feira (13/06), por ter maior impacto na DPE, ou na sexta feira (14/06), data da greve geral contra a reforma da previdência e os cortes na educação. Como não receberam um número de respostas suficientes a tempo, os estudantes marcaram assembléia para re-agendar a paralisação. Uma estagiária que participou contou que “não tinha muita gente na assembléia, mas todo mundo que foi estava disposto a paralisar”.

Naquele dia, além da assembléia “central”, estagiários de diversas regionais organizaram suas próprias reuniões. E na mesma tarde, várias unidades espalhadas pela cidade de São Paulo, região metropolitana, litoral e interior mandaram e-mail aderindo à paralisação. Via e-mail e Whatsapp, os estudantes contatavam a todo momento um número cada vez maior de estagiários e de regionais que paralisavam seus trabalhos, principalmente por se sentirem seguros com os números de entidades que aderiam. “A gente foi organizando assim, cada um ia falando com uma pessoa”, explicou uma estagiária. Outra estagiária contou que “uma coisa que ajudou foi que o interior achou que uma parte massiva de São Paulo já tinha topado paralisar, aí eles todos confirmaram também”.

Com poucas exceções, os estagiários se organizaram na véspera. Estagiária de uma regional, que soube da paralisação com quatro dias de antecedência, contou: “no mesmo dia conversei com o meu defensor e com as outras estagiárias da minha banca, passei de sala em sala, pedi licença a cada um dos defensores e me dirigi diretamente aos estagiários”, e que no dia seguinte todos os 32 estagiários já tinham aderido. Outra narrou: “sorteamos uma pessoa para ficar no atendimento na minha vara por insistência dos defensores. Mas depois, como descobrimos que o defensor não ia ter audiência, e poderiam fazer os atendimentos, conseguimos exigir que não ficasse ninguém”.

Como bem colocado por estagiário da Defensoria Pública de Mogi das Cruzes: “foi algo que todos não viam a hora de acontecer e quando aconteceu não deixamos passar”.

União servidores–estagiários

No dia da paralisação, aproximadamente 80 estudantes, de mais de 10 regionais que paralisaram, foram para o ato no centro. Como a organização anterior era muito incipiente, a maior parte dos estagiários se conheceram durante a manifestação. Os estudantes não tinham instrumentos ou faixas. Todos os materiais utilizados no ato – tinta, cartazes, buzinas e mega-fone – foram emprestados pela Associação dos Servidores e Servidoras da Defensoria Pública (Asdpesp).

Os servidores da Defensoria Pública de São Paulo somam aproximadamente 500 oficiais de nível médio e 200 agentes de nível superior, que trabalham espalhados pelas unidades da Instituição. Alguns dos materiais da Asdpesp eram os mesmos que os servidores utilizaram em 2016, quando a categoria fez greve por um mês reivindicando reajuste salarial. Além de emprestarem os materiais para o ato, os servidores ajudaram os estagiários a escreverem a petição e auxiliaram na negociação durante as reuniões com a Administração. Quando vazou um e-mail da 1ª Subdefensoria Pública Geral solicitando os nomes dos estagiários que paralisaram para tomarem as “providências pertinentes”, foram os agentes que cobraram a 1ª Subdefensoria por estar perseguindo estagiários. O trabalho conjunto com os servidores, foi, sem dúvidas, fator que ajudou a mobilização a crescer.

Parando um serviço público de assistência social

O alegado papel social da Defensoria Pública, instituição incumbida da missão de defender os necessitados, tem sido um dos obstáculos para a mobilização dos estagiários. Alguns coordenadores contrários ao movimento argumentam que um órgão público que cumpre função social “não deve entrar em greve em respeito aos seus assistidos”. O posicionamento tem sido abraçado por uma parcela dos estagiários, que, reproduzindo até mesmo um discurso de esquerda, posicionam-se contrariamente à paralisação ou propõem que as varas com mais atendimentos continuem em funcionamento. Nesse contexto, a construção de uma reivindicação dos estagiários junto com o público atendido pela DPE-SP aparece como um desafio. Quais estratégias são possíveis para fortalecer esses laços?

Também é complicador para o movimento o alto número de estagiários voluntários, que, em maioria, não se identificam com a reivindicação. Além da busca por aprendizado, eles são atraídos pelo discurso social da instituição, optando por trabalhar sem receber porque “acreditam no trabalho da Defensoria”. Até mesmo a própria concepção de estágio: contratação de força de trabalho precária e barata com a justificativa de oferecer aos aprendizes conhecimento prático profissional, explica porque é considerado normal estagiários receberem mal ou até trabalharem de graça.

Outra consequência da dita aura social da Defensoria, combinada com a própria formação jurídica, é o entendimento da luta dentro de uma lógica de direitos. A Defensoria não tem feito uma repressão aberta aos seus estagiários – o que pegaria muito mal para uma instituição tão democrática – mas pequenos desrespeitos da DPE com os “nossos direitos” já surpreendem os estagiários que tem fé na instituição. Parte de nós acredita que não descontariam da nossa bolsa porque “temos direito a greve”, ou que a Defensoria vai aumentar o valor que recebemos simplesmente porque cabe no orçamento e a reivindicação é legítima.

A rotatividade

Os estagiários da Defensoria não podem passar mais de dois anos na instituição e nem têm chance de serem efetivados. Assim, se por um lado não têm tanto a perder, por outro têm menos a ganhar, já que a rotatividade do conjunto de trabalhadores é alta. Muitos dos estagiários mobilizados sabem que nem estarão mais na DPE-SP caso o possível aumento seja implementado. A rotatividade faz também com que pareça que a mobilização de estagiários está começando sempre do nada, ficando esquecidos outros movimentos anteriores nesse sentido. Por exemplo: em 2007 estagiários paralisaram por conta na alteração no cálculo da bolsa, que até então deveria ser no valor de 10% do salário do defensor, e que deixou de ser com aumento salarial significativo dos defensores.

Como manter memória de lutas no estágio e construir essas continuidades? Alguns dos estagiários atuais apontam um possível caminho. Quando perguntados: “por que que vocês estão tendo tanto trabalho organizando essa luta?”, eles responderam: “porque já estamos com muita raiva dessa situação absurda e saber que os estagiários novos vão ter condições melhores já vale a pena!”.

1 COMENTÁRIO

  1. Quando comecei a faculdade de direito era uma grande bandeira daquela esquerda universitária era a criação e a valorização da Defensoria Pública de São Paulo, se argumentava que lá sim seria possível exercer o verdadeiro papel social e transformador do direito.
    Lendo esse artigo e vendo a repressão que se instalou dentro da defensoria como mostra essa nota:
    “DENÚNCIA – DEFENSORIA PERSEGUE ABERTAMENTE ESTAGIÁRIOS DE MOGI

    O defensor público Horácio Xavier Francisco Neto, Junto com a defensora Roberta Marques Benazzi Villaverde, coordenadores da Defensoria de Mogi das Cruzes, anunciaram que 12 estagiários da regional que paralisaram na segunda-feira 17/06, serão descredenciados. Os estagiários de Mogi e seus respectivos Defensores já tinham assinado a renovação do contrato, documento que foi rasurado a mando dos Coordenadores. Não aceitaremos esse tipo de perseguicão da Defensoria Pública. Exigimos que os coordenadores da regional voltem atrás com a decisão execrável e autoritária!”

    Evidencia-se que pode tudo se transformar, desde que tudo permaneça como está. As mesmas hierarquias, as mesmas perseguições, a mesma desconsideração com os trabalhadores.

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