Leia aqui a primeira parte deste artigo e a terceira parte aqui.
Por Granamir
4. O PT no governo
O restante da história já é amplamente conhecido. O PT chegou à presidência em 2002 tendo de um lado o controle direto sobre o movimento sindical organizado na CUT (e o controle indireto sobre outros movimentos e partidos como MST, PCdoB, PCB, etc.) e de outro lado a experiência acumulada de diversos mandatos em prefeituras, governos estaduais, legislativos, etc., para se credenciar como gestor mais habilitado dos interesses do conjunto do capital que opera no Brasil. A Carta ao Povo Brasileiro, na verdade uma carta aos banqueiros, assegurava que nada seria mudado na estrutura fundamental do capitalismo brasileiro, e assim foi feito. A despeito da imensa expectativa de mudança e do apoio social manifestado em um entusiamo quase apoteótico na posse de Lula, o partido manteve praticamente tudo como dantes. Todo o respaldo que havia para enfrentar as estruturas do capitalismo brasileiro e atender às reivindicações há tanto tempo adiadas foi transformado em legitimidade para gerir este capitalismo sem perturbações e frustrar as expectativas de mudança, oferecendo como consolo algumas vias para acesso ao consumo, que desmoronaram em pouco tempo e deixaram no lugar apenas dívidas e sufoco.
O PT como governo seguiu pagando religiosamente a dívida pública[19], aplicou a mesma política de austeridade e corte de gastos públicos dos tucanos no primeiro mandato de Lula (com Joaquim Levy na Secretaria do Tesouro, o mesmo que foi autor da catastrófica política de austeridade que foi chamada de “estelionato eleitoral” no 2º mandato de Dilma; e Henrique Meirelles na presidência do Banco Central nos dois mandatos, o mesmo que foi Ministro da Fazenda de Temer e candidato presidencial do PMDB), lançou diversos programas de incentivos às grandes empresas, como o PAC I e II[20], e associou-se a políticos notoriamente corruptos e oportunistas em troca de favores pontuais (fizeram parte da “base de apoio” dos governos petistas, em diferentes momentos, figuras como Sarney, Maluf, Collor, Temer, Renan, Cunha, Jucá, Feliciano e o próprio Bolsonaro, que nos dois mandatos de Lula fazia parte do PP e votou a favor das principais propostas do governo[21]).
Além disso, o partido não reverteu as privatizações (a chamada privataria tucana, com seu imenso rastro de negociatas espúrias), mas ao contrário, deu seguimento a elas[22]. Também não acertou as contas com o entulho autoritário dos governos militares, deixando de punir os golpistas e torturadores, e também não pôs qualquer freio à violência policial. Ao contrário, a letalidade policial prosseguiu[23], e também o encarceramento em massa de pobres e negros[24]. A repressão aos movimentos sociais não só continuou correndo solta ao longo dos mandatos de Lula e Dilma como foi aperfeiçoada, com a criação de UPPs[25], Força Nacional de Segurança[26], Lei Antiterrorismo[27]. E ainda, a hedionda ocupação militar do Haiti[28] a mando dos Estados Unidos (e também o comando da missão da ONU no Congo[29], menos conhecida aqui), que serviu para formar um grupo de quadros militares experimentados no controle pela força sobre populações miseráveis, os quais hoje compõem o núcleo militar do governo Bolsonaro e estão prontos para empregar esses mesmos meios para a repressão em larga escala.
A destruição ambiental[30] também continuou a todo vapor, bem como as mortes de indígenas, quilombolas, sem-terra e outras populações marginalizadas[31], que ficaram pelo caminho do agronegócio (os “heróis nacionais”, segundo Lula[32]) ou da mineração e suas barragens assassinas. Em nome do crescimento, o Brasil foi se convertendo em uma imensa fazenda de soja cercada de favelas, movida a trabalho semiescravo e açoite de jagunços e milícias rurais e urbanas. O PT acreditou no mito do capitalismo “bom para todos” (“slogan” de banco durante os governos petistas), que supostamente traria melhorias para a população, ao mesmo tempo que garantiria o lucro dos empresários.
Mas o que havia por trás disso era uma sórdida manobra que apresentava mecanismos de desvio de dinheiro público para a iniciativa privada como se fossem programas sociais. O Minha Casa Minha Vida encheu os cofres das empreiteiras[33], mas foi apresentado como se fosse programa de moradia; o PROUNI/FIES encheu o cofre das faculdades privadas[34], mas foi apresentado como se fosse um programa de acesso ao ensino superior. E assim por diante. O Estado se esquiva da responsabilidade para com as políticas públicas, ao mesmo tempo em que coloca a iniciativa privada como portadora das soluções para todo e qualquer problema, e deixa aos indivíduos os carnês de dívidas (não à toa o endividamento explodiu[35] e os bancos tiveram os maiores lucros da sua história[36]). E deixa também, em compensação, o estímulo dos autores de autoajuda, palestrantes motivacionais, coaches, youtubers, stand ups, gurus, (pseudo)terapeutas, pastores evangélicos e outros tipos de charlatães (todos estética e discursivamente muito parecidos, se se prestar atenção) para ajudar cada um a correr atrás do seu mérito.
Meritocracia, empreendedorismo, individualismo, cidadania do crédito, foram os legados ideológicos dos governos do PT, sublinhados pela própria trajetória pessoal de Lula, o migrante nordestino pobre que “chegou lá” e virou presidente, como epítome dessa narrativa. O roteiro funcionou enquanto havia ar no balão, que no caso era um aumento conjuntural dos preços das matérias-primas que o país se especializou em exportar, como soja, carne, minério de ferro, etc. Muita coisa se falou sobre os BRICS(sic), mas a realidade é que o país manteve um papel limitadíssimo na divisão internacional do trabalho, como fornecedor de commodities[37], mal disfarçado por operações predatórias de empreiteiras brasileiras na América Latina e na África que requentaram o sonho cafona do “Brasil potência” acalentado pela última vez nos tempos da ditadura.
Quando mudou conjuntura dos preços altos das commodities e a farra dos “campeões nacionais”[38] passou, veio a ressaca da austeridade do 2º mandato de Dilma, em que ela jogou pela janela em pouquíssimos meses o que restava de credibilidade de uma reeleição conquistada a duras penas, depois de um desgaste colossal vindo das Jornadas de Junho de 2013 até os 7×1 da Copa. O capitalismo “bom para todos” de Lula era um cobertor curto demais, e quando os bancos e grandes empresas o puxaram para o seu lado, não sobrou nada para cobrir aquele arremedo que passava por políticas públicas e “neodesenvolvimentismo”. Sem ter mais a sua parte do cobertor e vendo a situação material degenerar, emergiu a insatisfação das camadas médias da população, os chamados “coxinhas”. Dali por diante tudo foi ladeira abaixo, com o impeachment de Dilma, a prisão de Lula e a eleição de Bolsonaro.
Este último capítulo da história serviu para mostrar que, uma vez pelego, sempre pelego. Em nenhum dos passos dessa derrocada o PT deixou de ostentar uma postura servil e mendicante, implorando para ser aceito de volta como gestor do Estado, com a promessa de ser ainda mais obediente ao capital e avesso a qualquer coisa que tenha cheiro de luta. No mesmo mês do primeiro afastamento pela Câmara, em abril de 2016, Dilma fez um discurso na ONU[39], e ocupando a mesma tribuna que já foi usada por Che Guevara e Yasser Arafat com alguma dignidade e altivez, não disse nem sequer uma palavra para denunciar o suposto “golpe” que estava em andamento no país e chamar a comunidade internacional a não reconhecer o novo governo. Esse foi só o primeiro exemplo entre muitos outros de que palavras de ordem como “não vai ter golpe”, “fora Temer” e “Lula livre” lançadas pelo partido para mobilizar os incautos nunca passaram de palavras ao vento.
Nunca houve a intenção de mobilizar de fato. Cabe lembrar que a CUT possui mais de 3,8 mil entidades filiadas, que representam cerca de 23 milhões de trabalhadores[40], mas foi incapaz de convocar essas bases para qualquer tipo de enfrentamento de fato. Décadas de sindicalismo pelego e burocrático resultaram em apatia, indiferença ou mesmo hostilidade por parte dos trabalhadores, quando chegou a hora em que supostamente seria preciso lutar. Não havia possibilidade de mobilizar os trabalhadores, e mais do que isso, não havia a intenção de fazê-lo. Nada pode ser mais perigoso para os burocratas do que trabalhadores em luta, porque estes podem cair em si e colocar em discussão as suas próprias pautas, ao invés daquelas dos partidos que aparelham as entidades. O PT tem mais medo dos trabalhadores mobilizados do que dos ataques que sofreu do judiciário, dos demais partidos e da imprensa.
Acima de tudo é preciso permanecer bem comportado e aceitar as regras do jogo, na espera de poder voltar a controlar porções maiores do Estado. Se o partido levasse a sério o próprio discurso sobre “golpe”, para ser coerente, teria que ter se recusado a reconhecer Temer, convocado a sociedade como um todo à desobediência civil e boicotado as eleições (mas ao contrário, fez coligações com os partidos “golpistas” em 2016 e repetiu a dose em 2018[41]), o que prova que na verdade a preocupação era tentar manter o máximo número que pudesse de mandatos locais, estaduais e parlamentares. Se levasse a sério o “Lula livre”, este teria que desafiar o Judiciário, se recusar a ser preso, mobilizar massas de apoiadores em sua defesa e obrigar o Estado a optar entre usar a força ou recuar. Se estivesse preocupado com a ascensão do “coiso” e a ameaça de retrocessos (ou até de “fascismo”, conforme a nota[2]), teria tido outra política para as eleições, priorizando outras alianças que possibilitassem derrotá-lo no 2º turno[42].
Um dos efeitos dessa política do PT para as eleições foi lançar imensas camadas de simpatizantes da “esquerda”, ativistas e até organizações militantes preocupadas com o avanço do reacionarismo em um estado de prostração. Todas as energias foram deslocadas para as eleições, em que a hipótese da vitória de Bolsonaro era apresentada como um verdadeiro apocalipse. Quando essa vitória se confirmou, tal resultado ressoou como se o mundo tivesse acabado para todos os que orbitavam em torno da política do PT. As pessoas foram às lágrimas, cogitaram até o exílio, e quem tinha condições teve que ir ao divã do psicanalista para processar a derrota. Por falar em psicanálise, depois que o novo governo começou a expor em doses diárias os dejetos que circulam na psiquê reacionária, o medo foi parcialmente substituído pelo desprezo, e aquele sentimento de derrota se transformou em ressentimento e acusações de dedo em riste contra os eleitores de última hora (os que decidiram o voto depois da encenação da facada) que possibilitaram a vitória do “Bozo”, nos memes do tipo “eu avisei” e “é melhor Jair se arrependendo”.
Essa descarga catártica de desprezo, por meio de deboche nas redes sociais, no entanto, não deixa de ter o sabor amargo do ato de rir da própria desgraça. Afinal, a desgraça está instalada, e supostamente não há nada que se possa fazer pelos próximos quatro anos. A sensação de desamparo diante da derrota eleitoral serviu para reforçar a adesão ao PT e seu mártir encarcerado como tábua de salvação, contra esse mundo cruel em que o mal ainda prevalece. Esse estado psíquico de desamparo que acometeu amplas parcelas do eleitorado petista tem como efeito colateral uma espécie de paralisia, que inclusive impede o desenvolvimento das lutas necessárias contra os ataques do governo[43].
Tudo isso prova que na verdade a prioridade do PT não era enfrentar o “golpe” e o reacionarismo, mas manter Lula a todo o custo como principal referência para as organizações dos trabalhadores, acima de qualquer outra consideração sobre a situação material da classe e sua organização. Essa prioridade foi alcançada, já que praticamente não há uma organização ou tendência política hoje que não tenha aderido ao coro do “Lula livre”, com raras exceções (as quais, porém, também são problemáticas de um outro modo[44]). A chamada “oposição de esquerda” quase inteira foi centralizada e aceitou morrer abraçada junto com o petismo. Chegou a hora então de apresentar uma hipótese para esse melancólico naufrágio.
5. A chamada “oposição de esquerda”
O PT detém o controle sobre as principais organizações da classe há várias décadas, mas nunca deixou de ter coadjuvantes, como o PCdoB, que permaneceu sempre fiel, e outros como o PDT, PV, Rede, PSB, etc., que se alinharam eleitoralmente ou não conforme a ocasião. Além disso, o MST, o MTST, a UNE, Consulta Popular, Levante Popular da Juventude, Marcha Mundial de Mulheres, diversos movimentos e organizações, além de publicações e iniciativas editoriais (Caros Amigos, Brasil de Fato, Mídia Ninja, Jornalistas Livres, blogs, etc.) seguiram dando respaldo eleitoral e político aos governos petistas, por mais que às vezes esboçassem críticas pontuais e dissidências secundárias. Por fora desse campo mais diretamente controlado pelo PT, existem organizações menores, como o PCB (que reivindica a continuidade do antigo “partidão”, e que até 2005 apoiou o PT) e o PSOL, PSTU e PCO, nascidos de dissidências do próprio PT. No campo sindical, essas correntes se organizam hoje nas duas Intersindicais e na Conlutas (com exceção do PCO, que permanece na CUT).
Apesar de fazerem críticas e denúncias por vezes pesadas ao PT, essas últimas 4 organizações, PCB, PSOL, PSTU e PCO (este último desde 2013 somente se diferencia do PT por expressar um lulismo ainda mais raivoso do que o dos próprios petistas normais), que constituem a chamada “oposição de esquerda” (acompanhadas por uma miríade de organizações menores que não se legalizaram como partidos eleitorais), nas horas decisivas, não deixaram de defender o voto crítico[45] no PT, como fazem reiteradamente em praticamente todas as eleições presidenciais e algumas outras. Isso já deveria servir de indício do quanto a sua oposição tinha muito de inconsistente ou até meramente performática.
Mas o elemento principal em que nos deteremos é a atuação dessas organizações no terreno sindical. Desde o aparecimento da CUT em 1983 até pelo menos 2003 todas essas correntes atuavam no seu interior, uma vez que a central supostamente representava o sindicalismo combativo (mas na verdade, nos últimos anos, apenas a sua memória), em contraposição à Força Sindical, que era o exemplo mais acabado do sindicalismo pelego e “de resultado”. Nesse momento inicial, a estratégia dos grupos da “oposição de esquerda” teoricamente era a de ganhar o maior número de sindicatos possível para formar uma nova maioria e assim desafiar o controle da corrente petista sobre a CUT (A Articulação sempre deteve a maioria nas instâncias de direção, em conjunto com outros grupos aliados e outras correntes internas do PT, como DS, Trabalho, Articulação de Esquerda) e se tornar maioria na direção da central. Entretanto, isso nunca foi obtido, pois não havia lutas suficientes nas categorias organizadas para formar novas levas de ativistas sindicais, compor chapas e tirar os sindicatos do controle da Articulação. Os grupos opositores tiveram então que partir dos poucos sindicatos em que tinham a direção para lançar outra estratégia.
Em 2003, por conta da luta contra a reforma da previdência dos servidores públicos implantada pelo governo Lula, começam as rupturas de vários sindicatos, que se desfiliam da CUT, e que vão dar origem à Conlutas e à Intersindical (em 2010 aconteceu uma tentativa de fusão entre elas, que fracassou e resultou na divisão da Intersindical em duas[46]). Conforme a estratégia que descrevemos antes, quando vencem uma eleição sindical, os militantes partidários que controlam a chapa vencedora imediatamente propõem a desfiliação do sindicato da central à qual estava ligado para que se filie à central em que o partido tenha maioria. Esse é o procedimento normal adotado quando há disputa entre diferentes partidos e grupos políticos pelo controle da estrutura sindical. Neste momento aberto pela reforma de 2003, Conlutas e Intersindicais entravam nessa disputa com o discurso de trazer também algum tipo de renovação política no sindicalismo brasileiro, retomando a sua independência em relação ao governismo da CUT e resgatando a sua combatividade.
Em relação às duas principais centrais do país, a CUT e Força Sindical, estas há muito já tinham chegado a uma espécie de acordo informal e praticamente já não lançavam chapas para disputar os sindicatos uma da outra (ao menos os principais sindicatos). Havia um “pacto de não agressão”, uma espécie de repartição dos “feudos” sindicais entre as principais centrais, de modo que os partidos que as controlavam, PT e PDT (antes do racha do Paulinho da Força[47]) podiam acomodar os seus militantes em cargos nas centrais sem temer riscos e disputas. Mais tarde, em 2008, o governo Lula reconheceu as centrais sindicais como parte da estrutura paraestatal do sindicalismo brasileiro, de modo que elas passaram a ter direito a uma parte do bolo da arrecadação do imposto sindical (vide notas [7] e [8]). Isso deu origem a uma série de rachas das duas centrais principais, que formaram novas centrais menores, como CTB (controlada pelo PCdoB, aliado do PT), UGT (racha da Força), NCST, CSB, cada uma querendo a sua fatia do bolo, além das pequenas centrais controladas pela “oposição de esquerda”. Esse último movimento de fragmentação das centrais maiores não correspondia a uma disputa de projeto, como inicialmente fizeram Conlutas e Intersindicais, mas a uma mera reacomodação de interesses burocráticos dos grupos dirigentes, visando abocanhar as suas respectivas fatias do imposto sindical.
Entretanto, as centrais da “oposição de esquerda” estacionaram num nível inferior a essas outras burocracias em número de sindicatos, de modo que não alcançaram a cláusula de barreira que as habilitaria a receber a sua porção do imposto sindical[48] (até que ele fosse extinto pela reforma trabalhista em 2017). Mas enquanto o imposto existiu, a sua recusa não era obrigatória para os sindicatos de base dessas centrais, de modo que, indiretamente, mesmo as minicentrais dirigidas pela “oposição de esquerda” também eram ao menos parcialmente ou residualmente financiadas via imposto sindical. Mesmo que não houvesse esse detalhe crucial, o ponto é que, a partir de um determinado momento, mesmo Conlutas e Intersindicais também deixaram de ameaçar a sério as burocracias principais. Deixaram de ser alternativas reais em busca de ganhar os sindicatos de base e retirá-los do controle das burocracias majoritárias. Acomodaram-se também à sua própria maneira ao pacto de não agressão vigente, conformando-se com o seu respectivo quinhão minoritário de feudos sindicais (com a possível exceção de uma das Intersindicais, que segue entrando em disputas com um pouco mais de insistência, e que tinha uma posição mais explícita contra o imposto sindical).
Mas o ponto principal é que, mesmo que haja disputa pelas direções sindicais, essa disputa se coloca apenas no nível administrativo. Depois que se ganha a direção do sindicato, há pouca diferença entre o tipo de gestão que havia antes e o novo. Os militantes da “oposição de esquerda” se tornam burocratas como os outros, com um certo viés combativo, mas igualmente aprisionados nos cargos de direção, mantendo-se também por anos ou décadas na diretoria, no final das contas permanecendo incapazes de mudar o grau real de combatividade das categorias que representam. Conforme antecipamos em outro ponto, chegam à direção de alguns sindicatos via eleições, sem que tenham chegado à condição de direção ideológica da categoria que aquele sindicato representa. Convenceram os trabalhadores a votar em determinada chapa, por conta da insatisfação com a direção anterior, mas não convenceram esses trabalhadores da necessidade da mobilização, do seu programa político mais geral, de suas concepções partidárias ditas socialistas e revolucionárias, etc.
O mais importante é que não convenceram os trabalhadores da necessidade da luta, pois na rígida estrutura sindical paraestatal brasileira é possível chegar a uma direção sindical sem estar baseado em processos de enfrentamento de classe contra a patronal e o Estado. Os sindicatos são estruturas fixas, que existem e se sustentam independentemente de qual seja a qualidade da sua atuação. Na ausência de grandes lutas a disputa entre as correntes políticas no seu interior acaba se limitando ao aspecto eleitoral, administrativo, de controle sobre a estrutura do sindicato, de modo que não há um salto qualitativo de combatividade e radicalidade das táticas. E principalmente, não há um salto na organização dos trabalhadores.
Evidentemente, existem algumas exceções e casos exemplares de sindicalismo combativo e democrático. Mas infelizmente, o que prevalece na média dos sindicatos dirigidos pela “oposição de esquerda” é um nível de atuação que está pouco acima daquele das burocracias majoritárias, ou quase nada acima. Veja-se por exemplo o acordo da General Motors em São Jose dos Campos, base do Sindicato dos Metalúrgicos filiado à Conlutas. Diante da ameaça da patronal de fechamento da fábrica, o sindicato local aceitou um acordo de retirada de direitos, idêntico aos que os notórios pelegos da CUT e Força Sindical fazem em outras categorias[49]. O que há de problemático nisso não é que o sindicato teria que ser vitorioso e manter os direitos de qualquer maneira, afinal, na luta pode haver vitória e derrota. O problema é que nem sequer a luta foi proposta.
E propor a luta não é apenas colocar uma proposta em votação numa assembleia, o que qualquer orador pode fazer. Propor a luta significa trabalhar para construir as condições para que os trabalhadores tenham a confiança de ir para o enfrentamento, por meio da sua organização cotidiana em local por local, empresa por empresa. No caso do sindicato em questão, não se trata também de que a direção sindical não teve tempo suficiente para desenvolver um trabalho de organização na sua base, pois pelo contrário, esse grupo político controla a diretoria da entidade há quase 30 anos, desde quando se chamava Convergência Socialista, antes de se tornar PSTU/Conlutas. Trata-se então de que mesmo nos principais sindicatos dirigidos pela “oposição de esquerda” o tipo de atividade desempenhado não difere muito da burocracia tradicional. A direção do sindicato controla tudo e os trabalhadores não têm poder sobre nada, o que faz com que se mantenham alienados da entidade (que se comporta igualmente como um prestador de serviços), e quando a diretoria precisa convocá-los para a luta, não tem respaldo para isso.
O fato de que esses grupos não se diferenciam muito das burocracias quando estão na diretoria de algum sindicato se explica pela razão de que também não desenvolvem nenhum tipo de trabalho muito diferente quando são oposição. A sua postura enquanto diretoria é uma continuação do seu comportamento como oposição, que não está voltado para a construção da luta e sim para a propaganda eleitoral contra o grupo dirigente. A oposição sindical não age como se a vitória na luta dependesse dos esforços dos trabalhadores que com ela se organizam, ou seja, não age para que os trabalhadores protagonizem a luta, sem depender da direção do sindicato. Age apenas para tentar aparecer como mais capaz para exercer ela própria a direção.
A conivência das oposições sindicais com o funcionamento burocrático praticado pelas correntes maiores apenas demonstra que não há a intenção de romper com esse tipo de funcionamento quando se chegar à direção. A separação entre a categoria e a entidade deve ser mantida, porque assim o novo grupo dirigente pode aparelhar à vontade e fazer as coisas sem que haja a necessidade do trabalhador se envolver. A única participação aceitável do trabalhador é como “base”, ou seja, massa de manobra, para comparecer nas assembleias e votar no que o grupo dirigente decidiu. Dessa forma, a tomada dos sindicatos por um grupo opositor é apenas administrativa, como dissemos, e não representa nenhum salto de qualidade organizativo.
O pacto de não agressão entre as burocracias sindicais pelegas e as de “esquerda”(sic) pode admitir a disputa de chapas entre elas, mas desde que as chapas em disputa respeitem as “regras do jogo”. Essas regras implícitas estabelecem que deve ser mantido precisamente o mesmo tipo de distanciamento e apatia dos trabalhadores, de modo que não possam interferir na linha da entidade, qualquer que seja o grupo dirigente. A lealdade dos grupos militantes da “oposição de esquerda” é maior para com a estrutura e para com as demais burocracias, indiretamente, do que para com os trabalhadores. Na disputa histórica entre os trabalhadores e a estrutura sindical paraestatal brasileira que impede as suas lutas, eles se colocam do lado da estrutura, porque aspiram a dirigir uma parte dela.
Não se cogita desenvolver nenhum tipo de experiência de organização que não esteja voltada para a construção de chapas para disputar a direção, o que faz com que os grupos da oposição sindical tenham que defender a estrutura sindical existente e criticar apenas a diretoria de plantão. Agem como se uma mudança na direção fosse resolver todos os problemas, e ao fazer isso, inevitavelmente defendem e preservam a estrutura. Sendo essa a estratégia, o único tipo de oposição sindical aceitável é a que respeita essas regras tácitas e se comporta “corretamente”, conduzindo toda a insatisfação que houver entre os trabalhadores para os canais da instituição sindical, suas reuniões, suas sedes, seus procedimentos, seu calendário, etc. Assim, a burocracia dirigente pode cumprir o seu papel de polícia e manter a mobilização sob controle[50].
A oposição sindical não pode jamais lançar campanhas de mobilização ou esforços de organização diretamente sobre a base dos sindicatos, de modo que os trabalhadores possam desenvolver processos de luta independentes, que não passem pela alçada da direção sindical oficial. Panfletagens, agitações, atos públicos, intervenções em assembleias, reuniões, ações diretas, piquetes, tudo tem que ser previamente discutido com a burocracia dirigente e nada pode passar por fora das instâncias que ela controla. Descumprir esse protocolo é muitas vezes a única forma de alguma luta ser desenvolvida, e ao mesmo tempo, é exatamente o único passo que as oposições sindicais não dão. A sua prioridade é manter as pontes de diálogo com a burocracia dominante, em detrimento da luta, porque elas próprias esperam algum dia alcançar algum controle sobre partes da máquina burocrática.
O que as burocracias majoritárias enfrentam nos sindicatos é uma oposição consentida, que pede permissão à direção para cada um dos seus passos (ver nota [43]). Uma oposição conveniente, que funciona como uma forma de legitimação da direção existente, pois a sua participação nos fóruns, reuniões, assembleias, eleições, etc. acaba apenas dando um verniz democrático a uma estrutura que é em sua essência burocrática e impermeável à qualquer iniciativa dos próprios trabalhadores. E também uma oposição conivente, uma linha auxiliar externa de aconselhamento, que discorda pontualmente das palavras de ordem, mas não rompe radicalmente com a estrutura, as práticas, métodos e pressupostos da corrente dirigente. Na Inglaterra existe a “oposição de sua majestade”, como são chamados os partidos que discordam pontualmente da rainha, mas jamais cogitam de abolir a monarquia. No Brasil o PT também tem as suas oposições de estimação.
É por isso que pouca coisa muda quando um sindicato muda de mãos. O exemplo do movimento estudantil é bastante fértil para ilustrar o que estamos querendo dizer. A cada ano, nos centros acadêmicos e diretórios, quando acontecem eleições e muda o grupo político que comanda a entidade, o grupo vencedor comemora a votação, e ilustra orgulhosamente nas suas publicações que de agora em diante “a entidade será de luta”. Até que no ano seguinte aconteça outra eleição, e outro grupo vença, e também comemore da mesma forma, dizendo que “resgatou a entidade para a luta”. Mas na verdade nada muda ao longo desses anos, porque os estudantes que aquela entidade representa não se tornaram mais combativos. Os grupos políticos do movimento estudantil vivem dessa verborragia desenfreada voltada para eles mesmos (demonstrando uma criatividade inesgotável ao criar os nomes das chapas, mas apenas nisso), porque não há processos de luta reais capazes de proporcionar uma mudança qualitativa nas entidades. E geralmente, quando acontece alguma luta, os grupos todos e sua verborragia são atropelados pelos estudantes em luta.
6. Mudar, para que tudo continue como está
Essas características caricaturais do movimento estudantil são uma versão exagerada e mais “pura” da degeneração dos grupos que atuam no movimento sindical. A alternância que há entre eles, quando acontece alguma, ou quando tomam o controle de algum sindicato da burocracia majoritária, não representa uma mudança qualitativa na combatividade e organização dos trabalhadores, por mais que os seus militantes se esforcem para crer nisso. Sendo assim, do ponto de vista do conjunto do sindicalismo paraestatal brasileiro, as correntes representadas pela “oposição de esquerda” não são uma alternativa real contra a burocracia majoritária, considerando-se dois critérios, um superficial e outro mais profundo.
Pelo primeiro critério, puramente eleitoral/superestrutural, não são uma alternativa porque não têm condições reais de disputar a direção dos principais sindicatos e transformarem as suas correntes em centrais majoritárias; e se não são, toda a atividade com esse objetivo não faz o menor sentido. A CUT jamais será desalojada do posto de maior central sindical do país pela Conlutas ou Intersindicais (nem mesmo se estivessem todas juntas). Essas centrais menores jamais terão forças para ganhar sindicatos em número suficiente (ou para ganhar sindicatos grandes o suficiente, como APEOESP ou SEEB-SP) para se tornarem majoritárias. Na verdade, a função das centrais da “oposição de esquerda” perante as burocracias majoritárias, e das oposições sindicais nesses sindicatos maiores, não é de fato disputar a direção do movimento sindical, mas apenas marcar posição.
As correntes políticas que atuam nas oposições sindicais não têm o objetivo real de fazer a organização de determinada categoria avançar a ponto de ameaçar o controle exercido pelas burocracias principais e entrar em confronto direto com a patronal. O seu objetivo é apenas aparecer como “alternativa de direção”, conforme costumam dizer explicitamente, ou seja, uma diretoria alternativa, que supostamente seria capaz de fazer a luta avançar, caso de alguma forma estivessem ocupando os cargos. Ao se esforçar para passar essa impressão, os grupos esperam assim captar militantes para se construir. Esses partidos separam a sua própria construção, a captação de militantes, da construção do movimento e da organização da classe como um todo. Esperam captar militantes pela crítica de outras organizações, quer sejam ou não majoritárias, e não pelo avanço do movimento e organização da classe.
As oposições sindicais dirigidas por esses partidos não estão realmente preocupadas com a vitória ou derrota das lutas, e com as correspondentes medidas organizativas necessárias, mas apenas em fazer com que a burocracia dirigente apareça como culpada pela derrota, e os seus próprios militantes apareçam como figuras públicas que teriam sido capazes de levar a luta à vitória. Com isso, supostamente estariam acumulando forças para algum dia disputar a direção do sindicato, aparecendo como dirigentes mais competentes da entidade sindical.
Na prática, o que conseguem fazer é captar para o partido um ou dois militantes a cada campanha salarial ou eleição sindical, isso quando conseguem captar alguém. O esforço real de fazer com que a luta seja vitoriosa contra a patronal, que exigiria um trabalho de organização pesado e de muito longo prazo, independente de quem esteja na direção sindical, não entra nessas cogitações. Trata-se de oposições sindicais performáticas, protocolares, que batem cartão na época de campanhas salariais e eleições sindicais, mas não estão realmente construindo os processos de organização necessários para as lutas no dia a dia. A sua atuação é uma grande pantomima, uma encenação teatral, em que a prioridade é desacreditar a diretoria do sindicato e assim seduzir alguns trabalhadores mais interessados na luta para que apostem no seu partido ou façam parte dele.
Conforme essa rotina prossegue, os integrantes dos grupos de oposição sindical vão ficando também caracterizados como pessoas amargas, ressentidas, invejosas, que só tumultuam as reuniões, assembleias e atividades, com um discurso raivoso, mas que no fundo só querem chegar algum dia aos cargos da diretoria. A direção sindical burocrática e pelega, ao mesmo tempo, segue aparecendo como experiente, responsável, ponderada, porque segue mantendo as coisas como elas estão, sem os riscos e ameaças intrínsecos aos processos de luta. No fundo, os burocratas sabem, os trabalhadores têm medo de entrar em luta, porque temem mais perder o pouco que têm do que correr o risco inerente à luta para tentar obter algo melhor.
Os burocratas jogam com esse medo e personificam candidamente a promessa de que tudo vai continuar como está. Por isso, no limite, os trabalhadores optam por ficar com eles ao invés dos combativos, porém “apocalípticos”, militantes da oposição sindical, por mais que em alguns casos sejam realmente honestos, com seu chamado para a luta, que é vista como um apavorante salto no vazio. Para as direções sindicais tradicionais, é muito fácil desqualificar essas oposições sindicais e apresentá-las como grupos despreparados e aventureiros, e se perpetuar no controle dos aparatos.
Disso não decorre que não estejam acontecendo lutas sindicais e greves; aliás, pelo contrário, o número de greves inclusive aumentou ao longo da atual década. Mas uma análise da pauta de reivindicações dessas greves mostra que há uma prevalência de demandas defensivas, ou seja, de defesa dos patamares atuais de salários, de exigência de cumprimento de acordos e legislações, pagamento de salários e benefícios atrasados, etc.[51] Ou seja, o que este período indica é que os trabalhadores somente entram em luta quando não há outro recurso, quando o rebaixamento dos patamares de salários, benefícios, direitos e condições de trabalho ameaça sua sobrevivência e de suas famílias. Para a discussão que estamos fazendo, entretanto, essa flutuação na disposição de luta é um elemento relevante, mas ela apenas comprova acessoriamente a tese que viemos desenvolvendo, pois mostra que os trabalhadores têm entrado em luta mais por conta de uma deterioração da condições materiais do que pela atuação das direções sindicais, sejam elas ocupadas pelas burocracias majoritárias ou pelas oposições.
Seja como for, esse cenário de lutas defensivas e por mera sobrevivência é também uma comprovação da derrota do sindicalismo “cidadão” e de resultados das burocracias majoritárias, que ao longo das últimas décadas enfraqueceu a classe a ponto de colocá-la numa posição frágil e recuada. Mas serve também como comprovação de que as oposições sindicais que estiveram se contrapondo a essas burocracias ao longo dessas mesmas décadas também não conseguiram construir outro tipo de referência de organização.
Para que os trabalhadores sentissem confiança para se colocar em ofensiva, outros requisitos teriam que ser cumpridos, além de uma direção (eleita ou auto-proclamada) que convoque a luta. Seria preciso avançar para uma organização real, solidamente construída desde os locais de trabalho, de modo que a luta não seja esse salto no vazio, mas um passo muito firme e bem pensado. De nada adianta aparecer com um discurso mais combativo e “revolucionário”, sem o respaldo de processos reais de organização. Assim, dizer que os grupos da “oposição de esquerda” não são capazes de ganhar a direção dos sindicatos e centrais não significa concordar que, com um pouco mais de esforço e competência, eles seriam capazes, o que até serviria de estímulo para que prosseguissem com essa linha (como se tais grupos precisassem de algum estímulo…). Significa, ao contrário, que os esforços deveriam estar sendo despendidos em uma direção completamente diferente.
Seria preciso abandonar aquela secular estratégia de primeiro se eleger para uma diretoria para assim supostamente ter condições de depois organizar a luta, mas ao contrário, primeiro organizar os trabalhadores para resistir e lutar, no dia a dia, local por local, pacientemente, sem promessas mirabolantes nem atalhos miraculosos, e depois, algum dia, se for o caso, disputar uma eleição sindical, mas isso nunca pode ser a meta principal. Essa meta aparelhista de dirigir entidades aprisiona o movimento dos trabalhadores na armadilha da institucionalidade paraestatal. No caso brasileiro em especial, com as suas características próprias de vinculação dos sindicatos ao Estado, essa alternativa tem que ser veementemente descartada, se se quer resgatar alguma credibilidade, o que as organizações se recusam a fazer.
A estratégia prevalecente nas oposições sindicais supõe um roteiro em que os militantes do partido vão construir chapas e ganhar a eleição do sindicato, depois de outros sindicatos da mesma categoria e ganhar a federação estadual ou confederação nacional, depois vão se tornar maioria em outras categorias e ganhar a central sindical, ou desfiliar os sindicatos que estão conquistando para construir a sua própria central sindical. E assim, um dia, quando tiverem uma central sindical grande o bastante, serão capazes de desencadear uma greve geral, ou várias, até derrubar o governo, tomar o poder e assim fazer a revolução. Essa estratégia não está declarada explicitamente em lugar nenhum, mas é a única que se pode deduzir a partir do modo como essas organizações agem efetivamente na prática. Trata-se uma obsessão superestrutural desenfreada, em que se considera que a conquista de uma superestrutura, no caso sindical, é o ponto de partida para organizar a classe, e não o contrário. O que pensamos é que a organização da classe é o ponto de partida para qualquer coisa, e isso não significa obrigatoriamente que seja o ponto de partida para conquistar alguma superestrutura, ou significa explicitamente que não passe por isso.
Não é à toa que os trabalhadores, os verdadeiros sujeitos do processo, desconhecem as diferenças entre as diversas correntes do movimento sindical. Para o trabalhador esses militantes todos, sejam da CUT, Força ou da “esquerda”, são “o pessoal do sindicato”, um grupo de aspirantes a políticos profissionais que sempre têm segundas intenções e por isso merecem pouca confiança. O fato de que os sindicalistas da CUT, da Força e outros tenham usado seus cargos como trampolins para a carreira política eleitoral naturalizou essa trajetória. Para os trabalhadores, qualquer um que “se mete com sindicato” é visto automaticamente como alguém que está visando no futuro se candidatar para algum cargo.
Tamanho é o distanciamento do “sindicalista” em relação ao trabalhador que aquele que fica no chão de fábrica imediatamente percebe o abismo que se cria entre ele e os antigos companheiros que foram tragados para cima, para a estrutura sindical. O dirigente não está mais no dia a dia, não sofre as mesmas pressões, não vive a mesma realidade. Ao contrário, ele frequenta os ambientes dos patrões, dos governantes, da imprensa, etc., e deixa de ser “um de nós”. Isso independe do discurso desse dirigente, se é mais pelego ou mais “revolucionário”. Na prática ele está distante, construindo outros processos, participando de outras relações, que não modificam a situação do trabalhador e perpetuam a sua condição como massa passiva ou objeto de manobra.
Pelo critério mais profundo, portanto, que é aquele que realmente importa, as “oposições de esquerda” não podem ser consideradas uma alternativa real porque não estão lutando para pôr abaixo a estrutura sindical paraestatal brasileira, nem muito menos para lidar com aquela ambiguidade fundamental da forma sindicato assinalada por Marx, mas para se apropriar de uma parte dessa estrutura e aparelhá-la a serviço dos seus partidos. Não são assim uma alternativa qualitativamente melhor do que o PT, mas apenas quantitativamente menores. São miniaturas do PT tentando demonstrar de alguma maneira que são diferentes dele. Aqui não importa que o PCO seja uma espécie de capanga do PT nos sindicatos e o PSTU seja acusado de traidor porque defendeu o “Fora Todos” por ocasião do impeachment de Dilma. Mesmo estando discursivamente em campos opostos, do ponto de vista da prática, estão ambos gravitando em torno do PT.
Toda a encenação que fazem com seus discursos, panfletos, figuras públicas, não os torna diferentes aos olhos dos trabalhadores. Não enganam ninguém. O trabalhador sabe que estão todos de olho nos cargos, e fica com o pé atrás em relação a eles. Pelo critério da prática social não importa o que dizem, mas o que fazem. Por mais que se esforcem para parecer diferentes, no cômputo geral das coisas, no que se refere a apresentar uma alternativa radicalmente diferente, que mude as coisas de baixo para cima e recuse as armadilhas da burocratização, não há diferença. São satélites, penduricalhos, adereços, figurantes, que fornecem uma fachada de democracia para os sindicatos e centrais e legitimam a sua forma burocrática paraestatal de existência.
Se o trabalho é a protoforma da vida social, como insistem religiosamente os lukacsianos, quem não é alternativa de organização no chão de fábrica não será alternativa no restante da vida social. Se no movimento sindical não adianta aparecer apenas na época das campanhas salariais com panfletos e discursos combativos, no terreno mais amplo da disputa de projetos de sociedade, também não adianta “cair de paraquedas” nas épocas de maior agitação e com isso acreditar que vai tomar a direção dos processos. De nada adiantou para os partidos da “oposição de esquerda” brigar para aparecer na frente dos atos de 2013 com suas bandeiras, como se com isso os estivessem “dirigindo”. As motivações profundas que levavam as pessoas aos atos não tinham nenhuma influência sua, portanto a sua presença era completamente artificial.
Ou mais do que isso, a postura dirigista mais atrapalhou do que ajudou. Afinal, naquele momento decisivo, quando se tratava de romper com toda a armadura de gestão do conflito social montada pelo PT, os seus opositores de “esquerda”(sic) apareceram como peças da mesma armadura. A convivência pacífica com o petismo se transforma em conivência, e a conivência em semelhança. Os grupos da “oposição de esquerda” organizados não conseguiram aparecer como alternativa de organização da insatisfação manifestada em Junho de 2013, porque estavam muito presos à própria estrutura sindical e política contra a qual aquela insatisfação se voltou.
Se para consumo interno a estratégia que os partidos projetam para os seus militantes é aquela de se tornar a direção da “classe” por meio da direção das suas entidades e centrais, para consumo externo a imagem que aparentam é a de grupos que, partindo da mesma origem do PT (os sindicatos), vão querer fazer a mesma coisa que o PT (se candidatar para controlar o Estado). Para que a imagem fosse outra, o discurso e a prática teriam que ser radicalmente outros, diferentes e opostos aos do PT. A imagem que projetavam era de quem estava esperando a sua chance para repetir a mesma trajetória do PT, ou seja, usar os sindicatos para se eleger, com a promessa de dessa vez “fazer diferente”.
Partiam dos sindicatos porque eles são a forma de organização mais abrangente, estruturada e permanente (é certo que o trabalho assalariado é a fonte de toda a alienação, portanto é óbvio que é preciso lutar para superar essa forma de trabalho), mas na lógica das organizações que aí atuam, isso significa tão somente lutar por melhores salários. Daí a sua obsessão com o controle dos sindicatos, como se essa luta economicista rebaixada pudesse abrir a brecha para a revolução. Não perceberam que ninguém mais acreditava nessa promessa de que iriam “fazer diferente”, e mais especificamente, que não se acreditava mais neles, na “esquerda”, nos vermelhos e “comunistas”, porque eram vistos como braço auxiliar do PT, o que, em certo sentido, eram de fato.
Notas
[19] O tópico relativo às proporções da dívida pública e seu impacto no orçamento federal é objeto de intensa disputa política. Economistas liberais argumentam que a existência da dívida é parte normal do funcionamento do Estado, e o governo brasileiro apenas emite novos títulos para refinanciar dívidas antigas. Logo, segundo esse raciocínio, os impostos que “você e eu pagamos” não seriam comprometidos com o pagamento da dívida. Entretanto, conforme diz a Auditoria Cidadã da Dívida (entidade formada por servidores federais da fazenda e outros órgãos públicos e apoiada por diversos sindicatos e movimentos sociais), a emissão de novos títulos para pagar títulos antigos gera um aumento crescente do endividamento devido aos juros que têm que ser pagos (juros sobre juros) e outros artifícios contábeis que mascaram os volumes reais de títulos refinanciados e títulos novos emitidos. Além disso, a pressão permanente para o refinanciamento da dívida gera uma espécie de asfixia das finanças públicas, que são obrigadas a manter o chamado “superávit primário” para não ser obrigada a contrair novas dívidas, mantendo as despesas com os serviços públicos que realmente importam para a população, como a previdência, educação, saúde, etc., sob a constante ameaça de cortes e “contingenciamentos”.
Para a discussão que estamos fazendo, o que importa é que a origem dessa dívida é praticamente toda espúria, vinda de contratos da época da ditadura e renegociações no governo FHC lesivas ao país. A Constituição de 1988 previa uma auditoria dessa dívida, mas essa disposição nunca foi cumprida por nenhum governo (do que decorre a formação de um movimento paralelo pela Auditoria Cidadã), e poderia servir para mostrar a origem fraudulenta e abusiva da maior parte dessa dívida. Para completar, a Lei de Responsabilidade Fiscal, aprovada em 2000, criou uma trava que compromete a gestão do poder Executivo federal, estadual e municipal com a servidão financeira aos banqueiros e grandes investidores nacionais e internacionais que se beneficiam da dívida. Romper com esse sistema seria uma pré-condição para qualquer política pública favorável à população.
Ao invés disso, a condição para que o PT assumisse o governo foi que se comprometesse a continuar os pagamentos da dívida, o que ele fez sem questionar, empenhando uma faixa de 45% a 50% do orçamento anual com os pagamentos de juros e amortizações, ao longo de todos os mandatos (conforme os relatórios da Auditoria Cidadã). Os defensores do PT inclusive se orgulham da gestão feita ao longo dos mandatos de Lula e Dilma, nos quais a Dívida Bruta Geral do Governo chegou a diminuir de 62% do PIB em 2002 para 51% em 2013 (conforme Relatório Anual da Dívida Pública do Tesouro Nacional, pág. 9). Isso só pode significar duas coisas: um certo aumento do PIB, ou um volume enorme de pagamentos da dívida. O tal crescimento do PIB esfarelou conforme o país mergulhou na crise desde pelo menos 2014, e a relação dívida/PIB voltou a subir para 77% em 2018 (conforme o mesmo relatório).
[20] O primeiro Programa de Aceleração do Crescimento – PAC foi lançado no início de 2007, quando Lula estava no começo do 2 º mandato, e o segundo PAC é do início de 2010, antes do início oficial da campanha eleitoral vencida por Dilma. Esses programas foram anunciados com grande estardalhaço e previam recursos da ordem de centenas de bilhões de reais em ambiciosas obras de infra-estrutura, energia, transportes, moradia, etc. Foi apontado na época que na verdade muitas dessas obras já estavam previstas em gastos obrigatórios do governo e foram oportunisticamente embaladas em um nome chamativo para fins eleitorais. Boa parte das obras também não foram concluídas, e outras tiveram seus gastos questionados pelo Tribunal de Contas.
[21] Ao longo de 7 mandatos parlamentares, Bolsonaro votou contra o PT de 1991 a 1998 (governos Collor, Itamar e 1º mandato de FHC), votou com o PT nas pautas econômicas de 1998 a 2010 (2º mandato FHC e dois governos de Lula) e só volta a ficar contra o PT no governo Dilma, conforme levantamento de um jornalista da Folha de São Paulo.
Sobre a incoerência e oportunismo do próprio Bolsonaro, cabe registrar que como parlamentar ele votou contra as propostas que são o carro chefe do seu atual governo, em especial as mudanças na previdência.
[22] O PT deu continuidade à política privatista dos tucanos, mas apenas manteve um cuidado maior com as chamadas “jóias da coroa”, as estatais mais conhecidas do público em geral, como Petrobrás, Banco do Brasil e Caixa Econômica, as quais foram objeto de formas de privatização “branca” (venda de ações, de subsidiárias, de participações, mudanças na gestão, etc.). Além disso, em alguns casos, disfarçou a venda direta de ativos públicos como “concessões”, “parcerias público-privadas” e outros tipos de acordos. E também forneceu créditos baratos do BNDES, incentivos fiscais, juros subsidiados, e outras facilidades para a compra de empresas públicas. No geral, o que importa é que o capital privado se apropriou a preços reduzidos de importantes patrimônios públicos e passou a obter grandes lucros com eles. Listamos a seguir os principais casos da privataria petista, agrupados por áreas:
- Bancos
O PT privatizou os bancos estaduais do Ceará e Maranhão (leilões adiados do governo FHC, mas aos quais o PT não se opôs), e incorporou os bancos estaduais do Piauí, Santa Catarina e São Paulo (Banco Nossa Caixa), ao Banco do Brasil – BB (empresa de economia mista, com ações negociadas em bolsa em mãos de capitais privados, inclusive estrangeiros, e gestão comercial idêntica à dos bancos privados), o qual teve por sua vez mais ações vendidas. A gestão do Banco do Brasil é idêntica à de um banco privado, com as mesmas formas de pressão por metas sobre os funcionários e as mesmas formas de tratar os clientes (juros escorchantes, tarifas abusivas, venda casada, etc.). Não bastasse o fato de ser tratado como um banco privado, o BB é também cada vez mais internacionalizado. O limite de participação acionária de estrangeiros no BB passou de 9% no governo Lula para 30% no governo Dilma.
- Refinarias, oleodutos, instalações em outros países (aqui).
- Aeroportos (aqui).
- Hidrelétricas (aqui).
- Distribuidoras de energia (aqui).
[23] No Brasil as polícias são estaduais, portanto subordinadas aos governadores. A existência de polícias militares a serviço das oligarquias estaduais, inclusive, é um caso único no mundo. Por isso existe uma bandeira histórica de luta pela desmilitarização das PMs. Entretanto, o PT não fez nenhum movimento sequer no sentido da desmilitarização, nem de qualquer outra forma de controle, dentre as que são da alçada da União, para coibir a letalidade policial, o uso de torturas em interrogatórios, a violência da repressão aos movimentos sociais, etc. As polícias militares praticavam mais torturas em pleno século XXI do que na época da ditadura militar. Apenas no tópico da letalidade, diversos artigos e estudos atestam essa continuidade da letalidade policial ao longo dos mandatos petistas, inclusive com um agravamento a partir de 2013 (aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui).
[24] Matéria do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais mostra que o encarceramento subiu de 135 presos para cada 100 mil habitantes em 2001 para 306 por 100 mil em 2014, último ano para o qual existem estatísticas (os números exatos estão em disputa, conforme aqui). O total de presos no país chegou a aproximadamente 700 mil, no período que abrange exatamente os mandatos petistas.
Para além da questão puramente quantitativa do encarceramento, existe também a das condições de vida da população carcerária, as quais são as piores possíveis, como pode ser acessado num estudo impressionante da Pastoral Carcerária sobre o problema da tortura.
[25] As UPPs são mais um caso de uma política de responsabilidade de um governo estadual, mas que era aliado do PT na época, e que serviu inclusive à campanha eleitoral de Dilma em 2010.
A presidente chegou a falar em estender o programa, mas depois desistiu.
A princípio o projeto parecia dar resultado, mas logo emergiram as suas fragilidades, conforme reportagem do El País.
[26] A Força Nacional de Segurança foi criada no primeiro mandato de Lula, em 2004, pelo decreto 5.289, de 2004. Seguem os links para a sua página oficial e algumas reportagens sobre as suas utilizações recentes (aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui).
[27] Lei Antiterrorismo é o nome dado à lei 13.260 de 2016, de iniciativa do Poder Executivo, portanto da presidente Dilma Roussef, sob o pretexto da realização da Olimpíada no Rio. Depois de criada a lei e removida a própria Dilma, era só uma questão de tempo até que se propusessem alterações mirando especificamente os movimentos sociais (aqui e aqui).
[28] Em 2004 um golpe patrocinado pelos Estados Unidos derrubou o presidente Jean-Bertrand Aristide e instalou um regime fantoche tutelado por tropas internacionais da ONU. O Brasil assumiu o comando dessa missão de paz da ONU, desde sua instalação em 2004 até 2017 e forneceu o maior contingente dessas tropas. No início essa atuação era parte de uma pretensão do governo Lula de pleitear um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, o que nunca foi conseguido. Os generais brasileiros foram assim tirados dos seus pijamas para se exercitarem na repressão à população miserável do Haiti (país que foi adicionalmente flagelado por um terremoto em 2010, ao qual se seguiu uma epidemia de cólera, e também por um furacão em 2016). Depois de adquirirem essa expertise, esses generais hoje compõem o núcleo militar do governo Bolsonaro, não sem antes terem deixado um legado de mortes, torturas e estupros contra a população haitiana (aqui, aqui e aqui).
[29] O caso da MONUSCO (Missão de paz da ONU no Congo) é bem menos conhecido no Brasil que o do Haiti, possivelmente por ter tido um menor comprometimento de tropas brasileiras. Mesmo assim, um dos generais que esteve no Haiti e que hoje também compõe o governo Bolsonaro comandou essa missão. E o que há de peculiar neste caso é o fato de que pela primeira vez na história a ONU autorizou as suas tropas de paz a realizar operações ofensivas, perseguindo e atacando grupos armados nos territórios por eles controlados.
[30] Como em relação a todos os demais problemas de que viemos tratando, o desmatamento e outras formas de degradação ambiental não começaram nos governos do PT. O ponto que estamos levantando é que esses governos fizeram muito pouco para enfrentar os interesses econômicos que seguem faturando com diversas modalidades de destruição ambiental. O ritmo de desmatamento nos diversos biomas do país manteve uma oscilação ao longo dos governos petistas, o que indica que não houve nenhum esforço concentrado para enfrentar o agronegócio, principal agente da devastação. Matérias da imprensa, ONGs ambientalistas e órgãos governamentais atestam essa continuidade (aqui, aqui, aqui, aqui e aqui).
[31] Outro ponto bastante sensível é a morte de trabalhadores rurais em conflitos de terra. Em um governo que tivesse algum compromisso com os trabalhadores seria de se esperar uma redução drástica do número de mortes ou ao menos alguma punição para os autores desses crimes. O governo federal comandado pelo PT, aparentemente, foi inútil no que se refere a enfrentar os poderes locais que seguem compactuando/acobertando mortes e outras violências. A Comissão Pastoral da Terra mantém relatórios anuais com os números de mortes em conflitos de terra, que seguiram acontecendo. E a Anistia Internacional destaca a continuidade da impunidade, mesmo nos casos de maior repercussão.
[32] Num evento em 2007 Lula chamou os usineiros de cana de açúcar de heróis nacionais.
[33] Reportagem sobre o aumento do faturamento da empreiteiras nos governos petistas.
[34] Reportagens sobre o crescimento das faculdades privadas: aqui, aqui, aqui e aqui.
[35] Conforme dados do Banco Central, o endividamento das famílias saltou de 17,5% em 2005 para 45% em 2016, em relação à renda acumulada dos últimos 12 meses. O comprometimento da renda familiar com o serviço de dívidas (pagamento de amortizações + juros) subiu de 16% para 22% no mesmo período.
[36] Reportagem sobre o lucro dos bancos no governo Lula.
[37] A economia brasileira passa por um processo de reprimarização, que significa a redução do peso da indústria de transformação e o aumento da importância da produção de bens primários, como minérios e produtos agrícolas. Essa tendência se verificava já nos governos do PT e aponta agora para uma situação idêntica à da década de 1940, antes do desenvolvimentismo e do “milagre” brasileiro. A reprimarização representa não somente um problema quantitativo, de redução da participação da indústria em volume, mas também qualitativo, já que a indústria que opera no país deixa de estar ligada aos ramos de maior inovação tecnológica e se reduz àqueles de menor valor, ficando cada vez mais para trás dos demais países (aqui e aqui).
[38] O nome de “campeãs nacionais” foi dado a um conjunto de grandes empresas nas quais os governos do PT fizeram grandes investimentos, via BNDES e outros meios, para que se tornassem competidoras de porte mundial. Foi o caso de Oi, EBX (grupo de Eike Batista), BRF (fusão entre Sadia e Perdigão), JBS, Odebrecht, etc.
[39] Discurso de Dilma num evento da ONU logo após impeachment.
[40] Segundo a sua própria página, a CUT possui mais de 3.800 entidades filiadas, com 7,84 milhões de trabalhadores associados e um total de 23,98 milhões representados (conforme vimos, os acordos assinados pelos sindicatos no Brasil valem também para os não associados).
[41] Nas eleições municipais de 2016, poucos meses depois do impeachment, o PT saiu coligado com candidatos dos partidos que a sua militância chama de “golpistas” (PSDB, PMDB e DEM) em mais de 1.600 municípios.
O mesmo aconteceu nas eleições gerais de 2018 em 15 estados (MDB, PSD, PTB, PR e Rede – além do PSB, um aliado histórico que em 2016 votou pelo impeachment e em 2018 fez acordo para permanecer neutro).
[42] Conforme as pesquisas da época, Ciro Gomes venceria no 2o turno (ver por exemplo, aqui e aqui), mas quando confrontados com esses números, os apoiadores do PT costumam dizer que, se o candidato do PDT tivesse todos esses votos, ele teria passado por si mesmo para o 2º turno. Esse argumento tenta escamotear a real dinâmica das escolhas de voto no 1º e no 2º turnos, especialmente na eleição de 2018. Os eleitores que votaram no PT no 1º turno são basicamente os mesmos que votaram no 2º. Os eleitores que votaram em outros candidatos no 1º turno poderiam votar em Ciro Gomes no 2º turno, mas não votariam no PT. Ou dito de outro modo, tratava-se de uma eleição decidida mais com base na rejeição do que na adesão aos candidatos. A rejeição ao PT era maior do que a rejeição a Bolsonaro, e isso era sabido de todos, o que leva à conclusão de que, se houvesse uma preocupação real de derrotar Bolsonaro, seria preciso construir algum tipo de frente que não tivesse uma candidatura do PT como cabeça de chapa.
Os estrategistas do PT sabiam disso, mas fingiam não saber. Na verdade, desde antes da campanha eleitoral começar oficialmente, as mídias petistas trataram de impulsionar o nome de Bolsonaro como principal avatar do anti-petismo, o que ao invés de atrapalhar, impulsionou a campanha do candidato do PSL. O plano de fazer com que todas as forças se alinhassem ao PT contra Bolsonaro serviu para aglutinar o eleitorado anti-petista em torno de Bolsonaro. Quando isso foi percebido, já era tarde demais, e tudo o que restou fazer foi manter a candidatura laranja de Haddad, porque a preocupação do partido não era de fato derrotar Bolsonaro ou mesmo ganhar a eleição, mas tão somente permanecer com o monopólio da representação da “esquerda” e forçar todos a se alinhar à sua candidatura
[43] Este texto estava sendo finalizado nas vésperas da greve geral de 14/06 contra a reforma da previdência. Como tem acontecido mundialmente no contexto das lutas contra a “austeridade” pós-crise mundial de 2008, também no Brasil a burocracia sindical convocou uma paralisação de 24 horas contra a reforma, para mostrar que está fazendo alguma coisa, mas sem a intenção real de derrotar a medida em questão. Essas lutas controladas pelas burocracias podem ser muito massivas (como a greve geral de 28/04/2017 contra a reforma de Temer) ou pouco, variando conforme situações específicas.
No caso do dia 14/06, não há nenhum sinal da movimentação que seria de se esperar para a construção de uma greve geral, e o clima no país estaria completamente “frio”, não fossem as mobilizações de estudantes, professores, trabalhadores da educação e simpatizantes contra os cortes na educação pública nos dias 15, 23 e 30 de maio e 06 de junho. Era de se esperar que a burocracia sindical majoritária não estivesse de fato mobilizando, tanto por não ter respaldo, como por não ter também nem sequer a intenção de travar qualquer luta, conforme viemos sustentando ao longo do texto, ou ainda, por ter a intenção de negociar e aceitar partes da reforma. Especialmente num contexto em que precisam digerir a perda de praticamente 80% da sua arrecadação com o fim do imposto sindical (ver nota [56]).
O que há de extraordinário é que a “oposição de esquerda” também não está mobilizando! Num contexto em que estamos enfrentando o ataque mais pesado contra os trabalhadores em muitas décadas, contra um governo relativamente fragilizado pela própria incompetência, seria de se esperar uma mobilização muito intensa das correntes que vêm fazendo oposição às burocracias majoritárias. Seria de se esperar que nos sindicatos em que têm participação estivessem fazendo atividades como assembleias, plenárias, reuniões nos locais de trabalho, etc.; e além disso, que houvesse uma atividade intensa, frenética, ensandecida, 24 horas por dia, 7 dias por semana, de todo o restante da sua militância, com agitações, panfletagens, marchas, paralisações parciais, trancamentos de avenidas e vias públicas, comitês em bairros, escolas, faculdades, a fim de criar o clima para o dia 14/06 e o enfrentamento contra a reforma. Isso não está acontecendo!
É impressionante que uma miríade de organizações de inspiração trotskista, que reproduzem ad nauseam o clichê da “crise de direção revolucionária”, diante da oportunidade tão esperada por elas de dirigir algum processo, dada a omissão das burocracias majoritárias, demonstrem uma tão assombrosa ausência de audácia e iniciativa. Parece que são absolutamente incapazes de agir sem que a burocracia majoritária prepare o palanque para suas falas, ou que estão também revelando uma dependência muito maior do que se pensava em relação ao imposto sindical, uma hipótese que sempre mencionamos com muita parcimônia. O mais provável mesmo é que a adaptação de longa data a um certo tipo de oposição consentida as tenha atolado nesse lamentável torpor. Esse é um caso em que torcemos muito para que a realidade prove que erramos!
[44] Existem organizações do ramo morenista da tradição trotskista, como PSTU, MES e CST (correntes internas do PSOL), MRS, (bem como Transição Socialista, antigo MNN, que vem de outro ramo do trotskismo), etc., que se mantiveram fora do campo do “não vai ter golpe”(impeachment) e do “Lula livre” ou apresentaram diferenciações, procurando uma posição de independência em relação ao PT. Mas essas organizações fizeram isso ao custo de um erro também muito grave, que é o de desconhecer o avanço reacionário no país do qual o PT foi corresponsável. Assim, essas correntes atuam com uma leitura delirante em que a classe trabalhadora está em uma espécie de “ascenso permanente”, superestimando de maneira ufanista os mínimos movimentos de luta e desconhecendo de maneira cega a ofensiva reacionária.
A sua narrativa da situação histórica aberta pelas Jornadas de Junho é tão linear (e equivocada) quanto à do PT e das forças reacionárias, pois também tratam esse momento como um mesmo bloco homogêneo de mobilização de “trabalhadores”, ao qual faltou apenas a “direção revolucionária” (ou seja, o seu partido), sem diferenciação entre uma primeira e segunda fases, que tinham composições de classe e ideologia bastante diferentes. A revolta popular difusa que desponta nesse período é vista como uma matéria prima bruta pronta para ser manipulada por qualquer organização que tenha algum tipo de habilidade política especial (que obviamente julgam ter), e não como uma tendência latente e esquiva que só vem à tona sob condições muito precisas e determinadas, que envolvem certas relações materiais, conteúdos ideológicos, psicossociais, etc.
O preço pago por essa visão tão desconectada da realidade foi um certo isolamento dessas organizações, ou mesmo perdas de militantes, como no caso do PSTU, que perdeu cerca de 1/3 dos seus integrantes (esse setor rompeu com o partido para formar uma organização chamada MAIS, depois Resistência, que veio a se tornar uma das correntes mais lulopetistas dentro do PSOL).
[45] Não existe voto crítico. Quando um voto é digitado na urna, ele se torna mais um entre outros milhões. Quando o resultado é apurado, ninguém sabe quantos daqueles votos dados a determinado candidato eram votos entusiasmados, votos alegres, votos convencidos, votos desconfiados, votos resignados, votos críticos, votos revoltados, votos de nariz tapado, etc. Votos são votos. A natureza do processo eleitoral consiste justamente em diluir a complexidade e variedade de tendências da sociedade de classes numa uniformidade quantitativa. Se se quer expressar uma divergência em relação a determinado candidato, não adianta absolutamente nada dizer que vota nele, mas é “crítico”. Essa criticidade não aparece na unidimensionalidade quantitativa do voto e não se converte em saldo de consciência e organização. A única coisa que permanece é o próprio voto.
O raciocínio que justifica essas táticas de voto crítico é sempre uma postura vanguardista, arrogante e condescendente do sujeito que adota essa tática para com os trabalhadores, como se fossem imbecis: “eu que sou revolucionário sei o que é melhor, mas como os trabalhadores não sabem, eu preciso fingir que estou junto com eles, por isso voto no mesmo candidato, assim vou abrir/manter o diálogo com esses trabalhadores. Mas como eu quero trazer esses trabalhadores para o meu partido e não o do candidato, eu digo que sou ‘crítico’ do candidato. Assim, quando se decepcionarem com o candidato, vão lembrar que eu era ‘crítico’ e vão se aproximar do meu partido”. Essa estratégia nunca se confirma, e depois das eleições, nunca acontece de uma massa de eleitores decepcionados procurar o partido “crítico” para se organizar.
Trata-se portanto de uma grande encenação, que subestima e insulta a inteligência do trabalhador. Quando se tem uma posição política, por mais complexa e minoritária que seja, é preciso encontrar uma maneira de expressá-la de maneira simples, direta e honesta. Ninguém vai concordar com essa posição de imediato, nem durante a maior parte do tempo, mas as pessoas vão saber diferenciar entre quem diz o que pensa e quem recorre a subterfúgios, encenações, contorcionismos e sofismas (como o tal “voto crítico”). No final das contas, é a honestidade e a autenticidade que podem fazer a diferença.
[46] A Conlutas foi fundada inicialmente como uma “coordenação de lutas” e se torna central sindical depois de um primeiro congresso, em 2006, sendo composta por sindicatos dirigidos por militantes do PSTU e de pequenos grupos afins. Enquanto isso, os sindicatos dirigidos por militantes de correntes internas do PSOL e pelo PCB, Alternativa Sindical Socialista – ASS, Resistência Popular e outros grupos formam a Intersindical. Em 2010 a Intersindical se dividiu em duas, quando os grupos do PSOL decidiram ir para um congresso de unificação com a Conlutas, e os demais grupos não foram. O Congresso, também chamado Conclat, aconteceu em Santos-SP, em 2010, mas fracassou e as duas correntes permaneceram separadas. A Conlutas acrescentou um CSP ao seu nome (de Central Sindical e Popular) e os grupos do PSOL permaneceram com o nome de Intersindical, acompanhado do “sobrenome” de Central Sindical. Os demais grupos que não foram a esse congresso permaneceram como uma outra Intersindical, esta com o “sobrenome” de Instrumento de Luta, que em pouco tempo, porém, se reduziu aos militantes da ASS e independentes, devido à saída dos demais grupos.
[47] Desde 2013 a Força Sindical deixou de apoiar o PT e em 2013 Paulinho da Força saiu do PDT para criar o Solidariedade, partido que foi um dos que apoiaram o impeachment em 2016 e hoje integra o bloco parlamentar chamado de “centrão”.
[48] Para ter direito à sua fatia na repartição do imposto sindical, que era de 10%, uma central deveria cumprir os seguintes requisitos, estabelecidos na Lei 11.648, de 2008:
I – filiação de, no mínimo, 100 (cem) sindicatos distribuídos nas 5 (cinco) regiões do País;
II – filiação em pelo menos 3 (três) regiões do País de, no mínimo, 20 (vinte) sindicatos em cada uma;
III – filiação de sindicatos em, no mínimo, 5 (cinco) setores de atividade econômica; e
IV – filiação de sindicatos que representem, no mínimo, 7% (sete por cento) do total de empregados sindicalizados no território nacional.
No momento da revogação do imposto sindical, em 2017, faziam jus ao recebimento do imposto e outras prerrogativas legais a CUT, UGT, CTB, Força Sindical e CSB.
[49] O acordo entre o sindicato dos metalúrgicos de São José dos Campos-SP e a GM foi caracteristicamente considerado vitorioso tanto pela mídia empresarial quanto pela imprensa sindical, já que ambos raciocinam dentro do horizonte de que a viabilidade empresarial da fábrica é a condição para qualquer negociação e prevalece inclusive sobre direitos históricos dos trabalhadores (aqui, aqui, aqui e aqui).
[50] É importante registrar aqui a ressalva de que, quando falamos que uma burocracia sindical ou de algum outro tipo cumpre o papel de polícia, de neutralização ou de amortecimento de greves e outras lutas, isso não significa que estejamos afirmando automaticamente que, ao longo de todo o período que é mais relevante para a nossa hipótese central (os governos do PT nos quais existiu uma “oposição de esquerda”), tenha havido ininterruptamente uma imensa onda latente de greves ou de lutas prontas para acontecer, mas que só não eclodiram por ação das burocracias ou foram por elas bloqueadas. Não é esse o sentido da afirmação, pois isso seria uma reprodução do discurso fácil e auto-complacente de algumas oposições sindicais, que repetem a mesma ladainha de que as greves foram “traídas” pela direção sindical a cada campanha salarial. Esse discurso é enganoso, pois muitas vezes as greves são realmente muito fracas, e não se trata realmente de traição, mas apenas de um grau muito baixo de mobilização.
Reconhecemos portanto que há momentos de pouca mobilização e baixa disposição de luta, mas isso não invalida a afirmação de que a burocracia atua para impedir que as lutas se desenvolvam. As burocracias vão sim procurar de todas as formas impedir as lutas, traí-las, sabotá-las, etc., mas isso somente nos casos em que elas realmente ocorrem com um potencial de transbordamento e de ultrapassagem dos limites que elas consideram toleráveis. E infelizmente, nem sempre esse potencial está presente com a frequência com que gostaríamos.
[51] Segundo “Balanço das Greves de 2018”, do DIEESE, 82% das 1.453 greves acontecidas em 2018 tiveram caráter defensivo, e 53% referia-se a lutas contra o descumprimento de direitos. As considerações finais do estudo (texto completo disponível aqui) apontam para um crescimento do número de greves desde 2012 e ao mesmo tempo para um aumento da prevalência esmagadora de pautas defensivas:
“Adicionadas aos gráficos das estatísticas de greve dos últimos anos, as recentes informações sobre as mobilizações de 2018 atestam a permanência de características que pouco ou nada têm de erráticas ou voláteis. A composição das categorias de trabalhadores envolvidos e o caráter das pautas das reivindicações apresentadas por esses movimentos sinalizam a continuidade do ciclo de greves que emergiu mais claramente a partir de 2012 e permitem observar algumas características que podem demarcar diferentes fases desse ciclo. A partir de 2012 – ano em que preponderaram greves realizadas por trabalhadores de forte tradição sindical, em especial da indústria sudestina – começam a se destacar paralisações promovidas por categorias mais vulneráveis, tanto da perspectiva da remuneração, quanto das condições de trabalho.”
“A partir de 2013 – e progressivamente – os grandes protagonistas das mobilizações passaram a ser os terceirizados que atuam em empresas contratadas pelo setor privado – como vigilantes, recepcionistas e encarregados de limpeza – e os terceirizados de empresas contratadas pelo poder público, como trabalhadores em coleta de lixo e limpeza pública, rodoviários do transporte coletivo urbano, enfermeiros e outros profissionais das Organizações Sociais de Saúde –OSS. Simultaneamente, em uma dinâmica que se torna característica dos trabalhadores do serviço público, professores municipais iniciam a luta pelo cumprimento da legislação que estabelece o Piso Nacional do Magistério. (…)”
“No ressurgimento dessa intensa atividade paredista é destaque o fato de que itens relativos à defesa de direitos passaram a compor grande parte das pautas reivindicatórias dos trabalhadores. (…) O mais evidente é o aumento do número de greves deflagradas por categorias profissionais que atuam em condições de trabalho precárias e que têm os direitos constante-mente desrespeitados. (…) Pode-se citar como exemplo o não recolhimento do FGTS, o não pagamento de verbas rescisórias aos demitidos e o desrespeito ao piso salarial -itens que passaram a compor a pauta de parcela considerável das greves de trabalhadores da indústria e dos serviços nos grandes centros urbanos.”
“A partir de 2015, no entanto, os efeitos da piora nos indicadores de emprego e nos ganhos salariais -e, especialmente, a brusca reversão das expectativas -inauguram um novo momento. A ênfase defensiva da pauta das greves continua, mas observam-se importantes descontinuidades. As pautas reivindicatórias – que até então apresentavam crescente complexidade, com a adição, a cada ano, de itens reivindicatórios relativos a diversos aspectos da relação empregatícia – esvaziam-se e, muitas vezes, são reduzidas a uma só exigência, imediata, urgente, como no caso das frequentes mobilizações contra o atraso no pagamento de salários. Assim, as informações reveladas pelas greves dos trabalhadores permitem resumir a mudança dos cenários econômicos de 2012 a 2018 no contraste entre uma pauta reivindicatória complexa, crescente e inclusive defensiva, e a pauta atual – simples, reduzida e quase somente defensiva. (…) Por fim, deve-se observar que, apesar da diminuição da quantidade de greves re-alizadas desde 2017, o número registrado em 2018 (1453) ainda é expressivamente superior aos patamares verificados antes de 2013, quando ocorriam cerca de 500 paralisações ao ano.”
Realmente não sei que é pior: os que aceitavam o Imposto sindical deliberadamente ou os hipócritas da Intersindical, instrumento de luta e org., que garganteavam que eram contra mas viviam disso.
texto realmente muito instrutivo.
O resumo poderia ser, ainda que muitos não se sintam identificados: “O trostkismo sindical brasileiro”. Isso sim que é la pesada herencia.
A impressão que tenho é que esse conjunto de textos se coloca como uma grande compilação que visa atualizar as históricas e recorrentes posições “autonomistas” – crítica a forma que historicamente se consolidou na estrutura sindical, critica parcial ao projeto petista e em especial as suas políticas de governo, crítica a “oposição de esquerda”, e em contraposição a isso tudo, apresentar um ou outro elemento propositivo que poderia vir a solucionar isso tudo que está aí na esquerda (como a organização pela base, a reforma da estrutura sindical e coisa e tal).
Sem dúvidas parte das críticas são corretas, talvez a maior parte inclusive. Há limitações e contradições inegáveis no projeto que hegemonizou o petismo. Os grupos da tal “oposição de esquerda” possuem diversos pontos em comum com este projeto petista (ainda que o neguem). A noção troska de “crise de direção” é boçal – mais ou menos como todas as formulações trotskistas. Entre alguns outros pontos.
Contudo, ainda assim o conteúdo destes dois primeiros artigos é no geral equivocado. Isto pois, antes de mais nada, ignora-se por completo a ação política das organizações das elites burguesas e imperialistas, por um lado, e por outro, há uma visão pueril do comportamento das massas populares não militantes. Criando-se assim uma narrativa que visa explicar toda a realidade social, econômica e política nacional exclusivamente por erros e limitações (pretensos ou não) da própria esquerda e das organizações de trabalhadores. Pincela-se uma leitura da realidade onde se abstrai por completo tanto os conflitos de classe quanto os conflitos imperialistas – um quadro por onde a esquerda, majoritariamente “petista” e minoritariamente “oposicionista de esquerda”, navega livremente e a seu bel prazer, e por isto mesmo, seriam os culpados por todas as hodiernas mazelas. Não é necessário ser um gênio da análise política pra perceber que este quadro é um retrato limitado, infiel, fraco, tendencioso e mesmo profundamente distante da realidade.
Além disso, há também diversas afirmações e insinuações um tanto levianas, genéricas e generalizantes, baseadas em clichês e lugares comuns – do tipo “O trabalhador sabe que estão todos de olho nos cargos”. Que em muitos dos casos são reproduzidas indistintamente tanto por direitistas convictos, despolitizados, militantes da “oposição de esquerda”, ou críticos que se colocam a esquerda da “oposição de esquerda”. Essas prefiro nem destrinchar.
Deixo alguns questionamentos:
1. Se o período em que o PT esteve no governo federal (e com minoria nos espaços legislativos) foi tão somente uma continuidade dos governos que o antecederam e que agora o sucedem – ao menos nos termos que vocês pontuam, como de ataques aos direitos trabalhistas, as condições gerais de vida, aos serviços e empresas públicas, e de submissão ao imperialismo ianque – o que justifica a imensa, incessante, incansável ainda que onerosa, campanha reacionária e imperialista contra o PT e outras organizações da esquerda que vocês citam no balaio (PCdoB, MST, CUT etc)? Teriam as elites reacionárias e imperialistas se engajado – politica, moral e financeiramente – na campanha para derrubar Dilma, prender Lula, e destruir o PT (e outras organizações de esquerda próximas) tão somente por “ingratidão” – como por vezes afirma Lula?
2. Analogamente a questão anterior; se a estrutura sindical historicamente consolidada e seus dirigentes (pejorativamente taxados de “burocratas” pelo artigo) atuam para impedir e abafar as lutas, isto é, atuam ao menos indiretamente para garantir e manter o controle das elites e do imperialismo sobre os trabalhadores brasileiros, o que explica a imensa ofensiva dos setores reacionários contra o conjunto das entidades sindicais, e especial contra a CUT? Da mesma maneira, se o imposto sindical é também puramente nocivo a luta de nossa classe, por que sua extinção foi uma das bandeiras prioritárias das elites reacionárias?
3. Não seria a relação entre massas, dirigentes e organizações mais complexa – e profundamente permeada pelas conjunturas políticas nas quais estas se encontram imersas? Concretamente: a formulação do PT se deu durante a luta democrática contra a ditadura (que fora, ao menos parcialmente, vitoriosa) e logo após a fragorosa e brutal derrota da luta armada contra a ditadura; já a consolidação do PT como maior partido popular e progressista nacional aconteceu simultaneamente as vitórias das contra-revoluções nos países soviéticos e a simbólica afirmação do “fim da história”. Estes dois pontos – a derrota de uma estratégia revolucionária e a derrota de regimes socialistas oriundos de processos revolucionários – não contribuíram para que uma proposta reformista, democrática e de humanização do capitalismo se tornasse majoritária dentro do PT, mas também, para que o PT (munido deste projeto) se tornasse majoritário na esquerda brasileira? Em outras palavras, o que consolidou o reformismo do PT, e o PT reformista na sociedade, não foi um anseio popular – presente dentro e fora das fileiras do PT – a favor deste projeto? Vale dizer que haviam outras propostas programáticas dentro e fora do PT – das mais variadas matizes do marxismo, do anarquismo, do autonomismo, do trabalhismo etc – e todas estas foram derrotadas e mantidas ou na insignificância (como as variantes do anarquismo, do autonomismo, do trotskismo) ou a um segundo plano (como Brizola).
4. O artigo dá a entender que defender o voto (útil) no PT é uma posição equivocada. Com isso me parece que vocês podem querer dizer: a) não há absolutamente nenhuma diferença entre PT no poder ou os partidos das elites reacionárias (o que nos levaria novamente a questão 1.); b) apesar do PT ser menos pior, é melhor que um partido mais pior ganhe (se for isso, gostaria de entender qual a lógica, e exemplos de onde o mais pior trouxe vantagens); c) a tática correta seria a de defender o voto nulo ou o boicote eleitoral. Neste último caso, como se explica o fato de que não houve nenhum avanço real (em qualquer sentido e com qualquer critério) para os projetos e as organizações – assim como para a luta dos trabalhadores brasileiros em geral – oriundo de campanhas de boicote eleitoral em todas os últimos pleitos?
5. Dado que uma eventual libertação de Lula seria uma forte derrota à lava-jato e o lavajatismo – que é um dos principais instrumentos de intervenção política no Brasil das forças imperialistas e das elites entreguistas – não seria absolutamente correto e imprescindível levantar esta bandeira? Ou derrotar esse instrumento da reação e do imperialismo é irrelevante?
Bom enfim, só pra trazer um pouco de “vivência”, queria trazer um role de minha categoria – cujo sindicato é tido como uma referência na questão democrática e pá: não há relação entre participação da base e democratização, no sentido de quanto mais democrático o espaço, mais participação esse tenderia a ter. Na verdade, observo o oposto: quanto mais democrática é uma assembleia na categoria, menos pessoas tendem a participar. Isto pois, ao aplicar os preceitos tidos como democráticos – abrir tempo de fala para diversos inscritos, espaço para muitas novas propostas, e etc – a assembleia se torna extremamente massante e desinteressante para todo trabalhador que não é militante de um dos pequenos grupos ultraesquerdistas. No nosso caso ao menos, ter uma perspectiva de aumentar a participação da categoria na assembleia significa, curiosamente, ter a perspectiva de que as assembleias precisam ser eficientes, objetivas, curtas, sem muita abertura (democrática?) para os discursos de ultraesquerda. Já as assembleias mais democráticas da categoria – onde há maior abertura para debates e intervenções – são via de regra as mais esvaziadas. De certa maneira, temos dois tipos de assembleias: a de massas – que precisa ser mais rápida e eficiente – e a de vanguarda.
Curiosa a ausência de resposta ao comentário do Hugo.