Por Luciana Cajado
Nunca sabemos o que nos espera quando se fala de mudança. Naquele tempo, mudamos a vida, mudamos de país. E, diariamente, surgia algo novo, algo do campo das imprevisibilidades com o qual tínhamos de nos reinventar cotidianamente para lidar. Aos poucos, construímos também a rotina. Depois que aquele se tornou nosso novo lar, como em um ritual diário matinal, abríamos as duas únicas janelas da casa (uma das quais era parte da porta de entrada). Delas, eu observava o ritmo da vila. Passava o olho pelos varais e, se já estivessem com roupas, era porque nossos vizinhos nepaleses já sabiam que, naquele dia, não haveria chuva. Com uma atenção preguiçosa de quem acaba de acordar, ouvia o zum-zum-zum da porta colada à nossa e, se já estivesse aberta, era porque os vizinhos indianos já haviam começado a sair para mais um dia de trabalho. E, se fosse sábado, já encontrava dona Alice (a única vizinha que sabíamos portuguesa e que morava na casa abaixo da nossa) a pendurar roupas no varal dela que se conectava ao que tínhamos como um protótipo de varanda. As crianças árabes e nepalesas às vezes já estavam se espalhando a correr pelo pátio, algumas para ir à escola e, se fosse domingo e fizesse sol, três ou quatro já estariam tomando banho em pequenas banheiras azuis, sob a supervisão de seus inúmeros parentes. Nossa vila tinha cerca de um alfabeto de pequenas casas (elas eram “enumeradas” por letras), mas nunca consegui descobrir se chegava na letra X ou Z. Sabia que era multicultural, multilinguística, viva e, por muitas vezes, barulhenta, rica de trajetórias que fizeram todos deixarem seus países (exceto dona Alice, imaginava eu): conflitos políticos, dificuldade financeira, projetos de vida… chegando todos até ali. Mas poucos pareciam conversar entre si, em geral os que compartilhavam suas próprias casas, as crianças e duas janelas — a nossa e a da casa em frente.
Eu percebia que as janelas seguiam os dias, em sua maioria, sempre fechadas. E quando as pessoas adentravam suas casas, um mundo particular se abria ao interior, ao passo que o nosso, coletivo, encerrava-se fora. Como se formasse um abismo oceânico em cada porta, intransponível aos estrangeiros a cada lar. De forma figurativa e paradoxal, um mastro central no pátio conectava todos os varais, que partiam de cada casa, cada entrada, como se dele surgisse uma conexão com todos esses pequenos mundos. Como um sol, no centro desse sistema. Talvez a materialização de nossos vínculos, a despeito das casas portarem suas paredes coladas e sugerirem uma construção de proximidade.
Foram quatro meses, 120 dias, 1288 horas vivendo aquele espaço cotidianamente, dessa maneira. Entre o ir e vir das minhas tarefas, observando a rotina, às vezes rindo de fatos inusitados como no dia do colchão cheio de carrapatos, o qual misteriosamente abandonaram encostado ao mastro. Dona Alice ficou furiosa, surgiram outros vizinhos, uma lata de veneno, ninguém se entendia direito. No final, retiraram o colchão de lá. Poucas vezes ouvi as pessoas falarem português na vila. Aquele foi um desses poucos dias.
Da nossa janela — a conexão mais real que eu conseguia perceber, entre o nosso mundo reservado e os outros mundos diversos —, eu comecei por observar uma senhora na janela contra-lateral. Depois, com o passar das primeiras semanas, a cortina deixava se abrir mais e por mais tempo. Deixava-nos ver também uma menina por volta de seus sete ou oito anos, sempre sentada no canto direito de uma mesa. A cena que se repetia: a senhora a alimentar a menina, dava-lhe a comida na boca cuidadosamente, conversava, enquanto a menina a seguia com o olhar, observando-lhe muito atenta. Certa vez, a senhora desceu com ela no colo, pelas escadinhas da casa — entendi que era uma criança com necessidades especiais.
Nas últimas semanas lá, organizávamo-nos para sair devido ao final do nosso contrato temporário. Embora não quisesse partir, sabia que o sentimento era muito mais pela região muito agradável e funcional para o nosso dia a dia; definitivamente, não sentia que era por vínculo à vizinhança, porque isso de fato não havia. Ou ao menos, eu não percebia que havia.
Um dia antes de devolvermos a chave do imóvel à dona da casa, já estávamos com praticamente todos os nossos pertences retirados (havíamos levado a outros lugares temporários que nos abrigariam até encontrarmos outro lar). Até ali, os vizinhos viam nossa dinâmica de mudança, mas ninguém nos abordara — exceto dona Alice que, dias antes, ao ver meu companheiro com vários instrumentos musicais (que em nada tinham a ver com a mudança em si), perguntou se estávamos saindo da vila. No dia derradeiro, antes da entrega das chaves, estávamos no supermercado entre os corredores, quando encontrei a senhora que cuida da menina. Ela sorriu-me e me senti à vontade para sorrir de volta. Finalizamos as compras, não a vi mais, até entrarmos na vila novamente: lá ela estava a empurrar com dificuldade a cadeira de rodas com a menina. Oferecemos ajuda e percebi que ela se sentiu à vontade para falar. Agradeceu e emendou num discurso um tanto comovente, revelando que havia acompanhado nossa mudança através de sua janela e que estava muito triste. Gostava muito de nós sem nem mesmo nos conhecer. Disse-nos que nunca se sentiu à vontade de vir nos cumprimentar por que não sabia sequer se falávamos português e que sua experiência de comunicação com os diferentes vizinhos imigrantes não tinha sido lá muito boa. Encarnação, como se chamava, falou que adorava acordar de manhã e ver nossa janela aberta, que sentia como se houvesse um laço invisível entre nós. Revelou que adorava janelas abertas, luz. E que vários dos vizinhos anteriores que ali moraram mantinham sempre tudo fechado. Contou-nos de sua rotina muito dedicada aos cuidados da pequenina, que descobrimos então que se chamava Beatriz, sua neta. Comentei que também gostávamos de apreciar o cuidado que ela tinha no momento das refeições de Bia, única parte do dia delas que se exibia através daquela nossa conexão, para além dos passeios que faziam, mas que era mais difícil coincidir de estarmos em casa para ver. O medo também apareceu em sua fala, que por morar sozinha com uma menina, sentia-se vulnerável e sem ter para quem pedir auxílio em caso de perigo ou necessidade.
— Se eu gritasse em desespero, quem iria entender aqui, não é?
— Nós entenderíamos e lhe acudiríamos, dona Encarnação – respondi serenamente.
Ela sorriu dizendo que agora não tinha dúvidas de que algo nos conectava. Acredito que, de algum modo, não era apenas a língua irmã. Nossas janelas permitiram que criássemos um vínculo que sequer supúnhamos os quatro.
Saudades. Ela também sentia. Morava na vila há quarenta anos, criou seus filhos lá, quando todos os moradores e moradoras tinham plantas em suas casas e alternavam- se nas semanas em que cada casa era responsável por regar os vasos e varrer a vila. O portão que agora vive aberto, na época, era fechado e acessível apenas aos moradores, o que tornava as crianças mais livres no pátio. Hoje, desse tempo, restam ela, dona Alice e a memória.
No dia seguinte, próximo à hora do almoço, finalizávamos a limpeza da casa e, enquanto aguardávamos a dona para a entrega do apartamento, fui levar os três chocolates de cupuaçu que ainda nos restavam dos presentes da minha terra para dona Encarnação. Pela primeira vez, em quatro meses, eu atravessaria aquele pátio para olhar do outro lado da vila. Subi as escadinhas da casa dela, bati na porta e ela abriu surpresa. Com ela, havia também um cachorro pequeno, peludo e fofinho, que não parava de abanar o rabo enquanto eu lhe entregava a lembrança. Ela ficou muito feliz. Tão feliz que até os olhos sorriam. Ao se despedir, agradeceu diversas vezes em meio a um abraço.
— Obrigada por tudo! Obrigada por tudo!
E eu desci as escadinhas com aquela frase a ressoar na minha cabeça em busca de um sentido. O que era afinal o tudo a que ela se referira? Olhando para nossa casa do outro lado do pátio, já vazia do pequeno jardim que criamos, da janela enfeitada de artesanatos de miriti, da panela esquentando a água do café no fogão… Entendi que ela também assistia a uma pequena história de lá e isso talvez lhe enchesse os dias de sentidos, de pequenos “tudos” que nunca saberemos de todo o que exatamente significavam. Memória. Dei-me conta de que eu já sentia saudades, como se lá morasse há quarenta anos.
LINDO!
nossas vidas são tão pequenas, que escondemos mistérios nas vidas dos outros. Que invenção gozada, essa coisa chamada beleza.