Por Marcelo Lopes de Souza

Tem ido ao ar pela emissora de TV a cabo GloboNews, desde 2007, um programa cujo nome é “Cidades e Soluções”, criado e pilotado pelo jornalista André Trigueiro. O sucesso televisivo levou à publicação, dez anos depois, de um livro homônimo. Tanto o programa quanto o livro, comprometidos com o chamado “desenvolvimento urbano sustentável”, padecem, em larga medida, de um mal que tem assolado os debates em torno dos “problemas urbanos” no mundo inteiro, especialmente quando bancados pela mídia corporativa: uma crença desmesurada em soluções técnicas para desafios sociais profundos. Mesmo quando se toca em algo que não seja uma solução estritamente tecnológica, o tratamento, no âmbito do discurso-padrão da “sustentabilidade”, tende à superficialidade e ao apagamento das contradições de classe (se assim não fosse, atritaria com a lógica da grande imprensa e os interesses que a dominam).

Da mesma maneira como os arquitetos-urbanistas tantas vezes cultivaram uma inclinação para fetichizar o espaço (isto é, imaginar que a reconfiguração das formas espaciais da cidade teria o condão de mudar as relações sociais para melhor), o “desenvolvimento urbano sustentável” incorpora um vício típico dos engenheiros: imaginar que qualquer problema pode ser sanado com uma boa solução técnica. Nesse contexto ideológico, as pessoas costumam ser reduzidas a “usuários” (de meios de transporte, de espaços públicos etc.) e “moradores”.

Há, porém, uma notável exceção. Se raramente o indivíduo é visto e valorizado como trabalhador, o vistoso qualificativo de “empreendedor”, por outro lado, é destacado e exaltado. “Empreendedores”, diga-se de passagem, seriam todos aqueles que, em qualquer escala, até na mais modesta, criam e implementam inovações técnicas rumo à “sustentabilidade”, de painéis solares de baixo custo a novos artifícios para a reciclagem de materiais. Em uma época em que os empregos estáveis minguam e o trabalho é tornado mais e mais precário, fragmentando-se crescentemente o mercado de trabalho e o conjunto dos trabalhadores, propagam-se ideias como a de que o futuro está prometido aos “empreendedores” independentes e a de que precisamos ser frugais e ter apenas um ou nenhum filho, especialmente no países “subdesenvolvidos” (sim, o neomalthusianismo não morreu, apenas ficou, em geral, um pouco mais envergonhado).

“Resiliência”, ou seja, a capacidade de se adaptar à realidade existente, suportando sofrimentos e aproveitando a margem de manobra oferecida pelo status quo, é, ao lado de “empreendedorismo”, outro termo da moda. Tudo deveria ser ou tornar-se “resiliente”, dos indivíduos às próprias cidades. Nesses marcos discursivos, o difícil é encontrar pesquisadores e jornalistas dispostos a realçar o papel de atores sociais e sujeitos coletivos que sejam protagonistas de ações de autêntica resistência, principalmente quando dotadas de elevada densidade antissistêmica. Também, pudera: o horizonte da lenga-lenga corriqueira em torno da “sustentabilidade” é esta sociedade, com sua divisão de classes, seu modo de produção capitalista, seu aparelho de Estado… Em última análise, o compromisso dos que martelam a tecla da “sustentabilidade” é, o mais das vezes, sustentar a essência e a permanência do mundo heterônomo e desigual em que vivemos.

O espírito do “desenvolvimento sustentável” foi bem sintetizado pelo sociólogo britânico John Elkington, em entrevista concedida para um programa de 2009 e reproduzida no livro de Trigueiro, por meio desta lapidar passagem:

Acho que a lucratividade é fundamental. Não quero que as pessoas parem de perseguir o lucro. Eu quero que elas façam isso respeitando valores sociais e ambientais, que são amplamente éticos.

Conhecido por ser um entusiasta do tripé dourado dos “três pês” – “people, planet and profit” (pessoas, planeta e lucro) –, Elkington nada mais faz do que dar um verniz acadêmico barato ao que já é amplamente sabido pelos capitalistas e gestores mais bem adaptados aos nossos tempos: ostentar um “selo verde” torna-se, cada vez mais, economicamente interessante. Os limites da propalada “responsabilidade ambiental das empresas” são, para bom entendedor, bastante claros. O mundo do “capitalismo verde” e da “modernização ecológica” é, obviamente, infenso à luta de classes; na realidade, sua mensagem é a de uma harmonia interclassista que, no fundo, não somente permita prolongar o capitalismo, mas, ainda por cima, atualizar seus esforços de autolegitimação.

Enquanto isso, em meio a reportagens sobre desastres como enchentes, deslizamentos de terra e congêneres, somos constantemente bombardeados, ano após ano, mês após mês, com “explicações” no estilo “falta de planejamento” e “falta de vontade política”. O discurso da “sustentabilidade” gosta de acrescentar, a essas chaves (pseudo)interpretativas, também a “falta de consciência” – daí a importância atribuída tanto à “conscientização dos empresários” quanto à famigerada “educação ambiental”, que comumente se reduz à arte de ensinar os pequenos consumidores individuais a rejeitarem plástico, separar o lixo e economizar água, enquanto o grande capital destrói paisagens, devora e desperdiça recursos, elimina ecossistemas inteiros e submete sobretudo os mais pobres a situações de insalubridade e riscos diversos.

Em tempo, esclareça-se: não se trata de ter algo contra soluções técnicas para problemas específicos, as quais, em algum momento, sempre são e serão necessárias. E é óbvio que se “falta de planejamento” é um insulto à inteligência (só mesmo um tremendo embrutecimento intelectual para não perceber que, em meio à aparente “desordem” das cidades da periferia capitalista, há camadas e mais camadas de “ordem”, em geral injusta, bem como geoestratégias em curso), tampouco basta apelar para fórmulas como “contradições do capitalismo”. Recordando a ironia da letra da música de Itamar Assumpção e Ricardo Guará, “chavão abre porta grande” – e só isso, pois com “chavões” não elucidamos nada. Evidentemente, cada local e cada escala possui suas peculiaridades, que terão de ser levadas em conta. Na ausência de uma dialética com o particular, o geral não passa de abstração politicamente estéril.

A questão é que sem mobilização e luta por um outro modelo de organização espacial, outra matriz tecnológica e outras relações sociais, soluções técnicas parciais ou pontuais só servirão, no longo prazo, para aumentar a eficiência do sistema e dar-lhe uma sobrevida. O que significa, sem meias palavras: perpetuar a exploração do trabalho e, mais amplamente, a heteronomia.

O nó górdio reside em que esta sociedade e, com isso, a cidade que ela engendra, é, em maior ou menor grau, social e ecologicamente insustentável. (A esta altura, um ingênuo sugeriria que isso se aplica ao Rio de Janeiro, à Cidade do México ou a Lagos, mas não a Londres, Paris ou Nova Iorque. Recomendo, a esse respeito, que não sejam perdidos de vista não apenas os problemas que nestas últimas subsistem ou que elas encarnam, mas, acima de tudo, os circuitos globais de exploração que permitiram, historicamente, que os países capitalistas centrais pudessem transferir custos sociais e ecológicos para a periferia do sistema.) E já que falei em nó górdio, aprendamos com Alexandre, dito “O Grande”: é bobagem tentar desatá-lo; o que cabe, isso sim, é cortá-lo.

2 COMENTÁRIOS

  1. Existe um campo dentro da economia que é muito próximo do planejamento urbano, chamado desenvolvimento regional. Ele está imbuído da idéia de que é possível um melhor aproveitamento dos recursos públicos e privados para ter aumentos na produtividade e melhoras nas condições sociais da população, principalmente com mecanismos participativos. É uma forma dos acadêmicos se misturarem aos estratos que vão se tornar gestores através de uma miríade de conselhos e outros instrumentos participativos. Um exemplo é o CEDEPLAR na UFMG, que busca dar um verniz radical a essas propostas no interior da academia.

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