Por Isadora de Andrade Guerreiro

Na última coluna, numa articulação de diversas forças presentes na Favela do Moinho em São Paulo, falamos da ameaça de remoção iminente desta que é considerada a mais significativa das últimas favelas do centro da capital. De fato, as semanas seguintes foram intensas e o conflito escalou de uma maneira surpreendente chegando nas disputas de alto escalão eleitoral, com a interferência direta de Lula e Tarcísio de Freitas que articularam uma negociação sem precedentes. Por que uma favela, razoavelmente pequena e dentre tantas outras ocupações ameaçadas na área central, alcançou esse destaque?

Fato é que está tendo repercussão nas lutas: uma grande articulação em torno da retomada da Campanha Despejo Zero – lançada durante a pandemia e responsável pela ADPF 828, que barrou despejos naquele momento – se formou, com atos de rua trancando vias importantes da cidade no último dia 26/05 e um ato marcado para o próximo dia 11/06. Não menos importantes são também as reações do lado de lá: a FLM (Frente de Luta por Moradia), que fazia uma ocupação no centro da cidade na madrugada do mesmo dia, sofreu um ataque à bomba de um grupo de comerciantes mascarados, que precisou de intervenção do esquadrão antibomba da PM, que implodiu o artefato. Enfrentamentos diretos na cidade em meio à radical polarização política parecem, portanto, ser um termômetro do que será não apenas a próxima disputa eleitoral, mas o cenário social e político em que nos encontramos.

O Centro de São Paulo em disputa

O contexto de ameaça de remoção da Favela do Moinho foi descrito na última coluna: trata-se de toda uma região de reestruturação urbana promovida pelo governo do Estado de São Paulo em articulação com a Prefeitura, que inclui três Parcerias Público-Privadas em andamento ou propostas. Juntas, estão ameaçando de remoção muitas pessoas em formas de morar diversas – pensões, cortiços, população em situação de rua, ocupações de moradia (inclusive de imigrantes), aluguel popular, sendo ameaçada até mesmo produção habitacional de movimentos financiada por programas públicos.

A “limpeza urbana” feita pela articulação entre Prefeitura e Estado não para por aí: também a Operação Delegada está colocando em andamento um amplo processo de combate a ambulantes no centro da cidade. O que poderia parecer mais um processo normal de fiscalização urbana, não é: tal operação é feita por agentes voluntários da Polícia Militar “em folga”. Segundo o site da prefeitura, “conta também com auxílio no combate à pichação, depredação, descarte irregular de lixo e qualquer atividade de responsabilidade da prefeitura”. Os resultados são trágicos: no dia 11/04, o ambulante senegalês Ngagne Mbaye foi executado durante uma ação de “fiscalização” do destacamento. Segundo um grupo de ativistas contra a Operação, que lançou um manifesto:

“Na prática, a Operação tem servido somente para transformar os tradicionais locais de comércio popular na cidade em verdadeiros campos de batalha. Xingamentos racistas e xenófobos, apreensões ilegais de mercadorias, detenções arbitrárias, intimidações, ameaças, extorsões, repressão inclusive contra trabalhadoras/es regularizadas/os, agressões com o emprego de armas de choque, spray de pimenta, cassetetes, além de enforcamentos, chutes, imobilizações com uso desproporcional da força, uso ostensivo de armas de fogo, e, no limite, execuções. Esse é o cotidiano enfrentado pelos/as ambulantes, principalmente no bairro do Brás.”

O manifesto envolve a denúncia da presença de milícias formadas por estes policiais de folga, que extorquem os comerciantes para liberarem seu trabalho – o Ministério Público formalizou esta denúncia em fevereiro. O grupo fará um ato de lançamento da campanha contra a Operação Delegada no dia 02/06 às 16hs na Sala dos Estudantes da Faculdade de Direito da USP no Largo São Francisco.

Além disso, esta mesma articulação entre prefeitura e Estado fez “desaparecer” a concentração do fluxo de usuários da chamada “Cracolândia” ao dispersá-los exatamente no mesmo período de sufoco à Favela do Moinho e, ao que parece, fazer uma série de internações forçadas depois de tê-los praticamente presos a uma área fechada e controlada (quase um mini campo de concentração, murado). Há relatos de agressões feitas pela Guarda Civil Metropolitana (GCM) que precederam os desaparecimentos:

“Deu um murro na minha cara e falou pra mim que se me pegarem aqui no Centro, eles vão quebrar as minhas pernas”; “A gente não quer fumar aqui, mas mandaram a gente sair de lá. Se voltar, disseram que vão rachar nossa cabeça”.

O ascenso de violência policial vem junto com a disputa pela mudança de nome da GCM, que a Prefeitura queria que se transformasse em “Polícia Municipal”, mas que foi barrada tanto pelo TJ-SP quanto pelo STF (Ministro Flávio Dino).

A radical eliminação de modos de vida populares, é bom que se diga, portanto, tem face racial, étnica, de condutas morais (no caso dos usuários de drogas) e sexuais (no caso da prostituição de rua, altamente presente na região). Além disso, é amparada pela narrativa de “guerra às drogas” tão legitimada socialmente, jogando com a dimensão da criminalização do mundo popular.

Não é à toa: trata-se da fronteira de expansão do capital imobiliário vinda da Zona Oeste, que tem nova face – ironicamente ligada à expansão de unidades habitacionais feitas pelo mercado que se dizem ser, justamente, “populares”, por serem micro apartamentos. No entanto, eles são principalmente direcionados ao mercado de aluguel de investidores (individuais ou corporativos), extremamente amplificado com a ascensão de plataformas de locação de curta e longa temporada. Se aproveitam da regulação urbanística da cidade, que dá incentivos ao mercado para a construção de Habitação de Interesse Social (HIS) e de Mercado popular (HMP), mas, ao vender essas unidades subsidiadas, não estão obedecendo aos critérios de renda familiar impostos pela legislação, nem se preocupando com a venda para investidores e não moradores. O escândalo disso que estamos chamando de “fake HIS” já virou processo jurídico e multas milionárias estão sendo aplicadas a diversas construtoras, o que obrigou a prefeitura a editar novas regras sobre os incentivos urbanísticos para HIS essa semana. Um desses empreendimentos em área nobre da cidade, inclusive, foi ocupado pelo MTST recentemente como forma de denúncia.

O centro da cidade, além de condensar esse contexto, tem enorme simbolismo e visibilidade pública. Já não é de hoje que as diversas gestões municipais e estaduais tentam fazê-lo de palco para suas marcas eleitorais. A novidade atual é a rapidez e a extrema violência com que tem ocorrido esse processo de conquista – com apoio de uma sociedade cada vez mais conservadora e formação de destacamentos milicianos que articulam forças policiais e comerciantes.

Além disso, as remoções em áreas centrais até pouco tempo atrás tinham nas terras desocupadas da periferia seu colchão de amortecimento da tensão social da falta de moradia – uma ocupação removida no Centro se transformava rapidamente em outra(s) na periferia. Atualmente essa equação não é tão fácil, como tenho dito em outros momentos: as terras periféricas, disputadas pelo mercado popular e pelas empresas de capital aberto do MCMV, se esgotam rapidamente – não acolhem, mas expulsam. São acessadas cada vez mais pelo aluguel, e não pela ocupação para a necessidade imediata da moradia, conformando aquilo que Pedro Abramo tem chamado de “nova informalidade”. A população em situação de rua, em São Paulo, explodiu pós-pandemia. Neste contexto, a luta contra remoções e contra a violência policial, por um lado, e a necessidade de dar resposta habitacional real, por outro, parecem ser elementos centrais da balança política urbana atualmente.

A Favela do Moinho e a polarização política

É a partir desses elementos que é preciso olhar para a situação da Favela do Moinho. Não se trata de um caso isolado: são muitas ocupações e formas de morar e viver populares que estão sendo eliminadas. No entanto, ali a ameaça tomou uma escala política que outros casos não têm tomado.

Primeiramente uma mega operação midiática e logística da CDHU para mostrar que estava dando solução habitacional a contento – o que foi demonstrado falso em seguida pela articulação de apoio e pela Defensoria Pública, que inclusive denunciaram fraude no cadastramento das famílias, que estavam sendo coagidas a aceitar os termos do acordo, que incluíam mentir sobre sua renda para se endividarem mais do que podiam. A situação só demonstrava que o governo do Estado não tem alternativas adequadas para a situação de emergência habitacional que vivemos.

Depois houve quebra do acordo, por parte da CDHU, com a Secretaria de Patrimônio da União (SPU), dona da área, que estava em processo de cedê-la desde que fosse dado encaminhamento habitacional digno para as famílias. Sem responder à SPU, o governo do Estado iniciou o processo de “desfazimento” das casas cujas famílias assinavam o acordo – num terreno que não era seu – com o próprio vice-governador vindo a público dizer que o “governo Lula prefere o lado do crime”. Isso acompanhado de operações policiais todos os dias, com os mais diversos argumentos (busca de drogas, até carros estacionados em “área proibida” e gatos de água e energia, a famosa criminalização da vida popular). A ideia era tornar a vida insuportável, as famílias assinarem as não-soluções habitacionais propostas, e depois da terra arrasada, não ter mais o que discutir com a SPU. Tudo isso em nome, teoricamente, de um projeto de parque que nem existe ainda – ou seja, nada convincente.

A pressa de eliminação social e política violenta do Moinho tinha tudo pra dar certo. As casas estavam sendo demolidas com presença da tropa de choque todos os dias e, fossem mais alguns, não sobraria nada – ainda que manifestações estivessem sendo feitas, linha do trem bloqueada, muitos mandatos, partidos, grupos autônomos e movimentos populares mobilizados, audiência pública feita na Câmara, nada parecia adiantar e era de fato assustador acompanhar a gana destrutiva que parecia ignorar – ou, antes, provocar – o governo federal, dono da área. No entanto, foi conquistada uma negociação completamente inusual, com articulação entre prefeitura, Estado e União para a compra com auxílio aluguel de R$1.200 (o triplo do normal) para quem precisasse e subsídio total de unidades até R$ 250 mil no mercado privado (“Compra Assistida”) – solução adotada apenas na tragédia climática de Porto Alegre, entendida como “evento extremo”. Tal solução só veio quando o Ministério das Cidades resolveu entrar no caso, demonstrando o escalonamento do conflito. Foi comemorada como vitória pelos moradores que, além de terem possibilidade de moradia mais condizente com sua situação financeira, principalmente sairiam da situação de sufoco militarizado em que se encontravam.

No entanto, cabe deixar registrado que, do ponto de vista habitacional, a solução não dá resposta à altura da luta de resistência da Favela do Moinho. Será muito difícil encontrar moradia por R$ 250 mil no centro da cidade, o que levará as famílias para áreas mais periféricas, por conta da dinâmica de mercado da qual, portanto, não foram protegidas pela solução pública. Longe de significar uma solução chave-a-chave (saída da moradia atual apenas diretamente para a nova), a Compra Assistida envolve uma busca de moradia no mercado, que não será aguardada pela remoção – que permanecerá acontecendo, agora teoricamente menos violenta, porque acordada. Ou seja, a passagem pelo Auxílio Aluguel será necessária, e sabemos que é uma alternativa que vulnerabiliza ainda mais os deslocados, passando por situações de precariedade do aluguel informal que a política pública incentiva com esse instrumento.

Assim, não apenas a Favela do Moinho desaparece, mas o centro da cidade segue seu curso de eliminação das formas de morar e de viver populares. A luta dessa comunidade, no entanto, deve ser reconhecida e lembrada, pois tanto sua existência, quanto seu fim, são muito significativos do momento histórico que vivemos.

O que levou o Moinho a ser considerado um caso de “evento extremo”?

Por fim, vale deixar a pergunta de porque essa luta, ao lado de tantas outras ocupações e resistências da área central, catalisou esses acontecimentos. Uma hipótese é que se trata de uma comunidade organizada há muitos anos, num local estratégico, sem direção de um movimento ou de um partido específico, sendo, por um lado, grande e significativa a presença de militantes autônomos e, por outro, de uma rede de apoio política e técnica bem articulada com esferas mais altas de decisão política. O foco da luta na permanência das famílias foi fundamental – entendendo isso como um elemento político significativo no contexto do centro da cidade hoje.

No entanto, isso tudo não é suficiente para explicar a resolução final, se o caso não tivesse se transformado numa disputa política de alto escalão dentro da polarização política que antecede as eleições nacionais no ano que vem. Sendo terreno político em aberto, o Moinho acabou sendo campo de disputa de narrativas que se apropriaram seja da resistência da comunidade (que teve que segurar as pontas bravamente durante dias de sufoco militar até aparecerem os políticos), seja das suas contradições e fragilidades internas – com a CDHU, por exemplo, fazendo vídeos de pessoas “agradecidas”, que aceitavam o acordo e saíam das suas casas para serem demolidas; ou a narrativa dominante de criminalização do local que sempre arranjava fatos para comprovar sua tese.

Nesta disputa, que continua agora animada pelo que se viu acontecer no Moinho, vale ressaltar a necessidade de pressão popular contra as remoções e à violência policial, na medida em que nenhum governo tem soluções adequadas ao grau e à qualidade de necessidade de moradia que vivemos hoje em São Paulo: isso indica um campo de disputas pelo avanço de propostas mais ousadas vindas debaixo. Cada vez mais a qualidade de “evento extremo” poderia ser levantada nessas lutas, pois, de fato, vivemos uma situação permanente de deslocamento de populações dispersas – que foram chamadas por Vera Telles de “refugiados urbanos” – fato que impõe grandes desafios para a organização popular, desarticulada violentamente por diversos expedientes.

Os atos da Campanha Despejo Zero desta semana passada, e que continuam nas próximas, são fundamentais para uma possível rearticulação das lutas nesse momento delicado, que está sendo disputado. Deixamos a agenda: reunião de articulação nesta quarta-feira, dia 04/06, às 18h, no Galpão do MST; e ato dia 11/06 com concentração às 14hs na Praça da República.

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