Por Leo Vinicius

Quando um militante ou uma liderança faz uma escolha de direcionamento político a partir de um ganho financeiro pessoal de algum tipo, ou quando simplesmente aceita receber renda de uma organização externa enquanto militante ou liderança, normalmente isso é tratado em termos morais em organizações e entre militantes anticapitalistas. É a ideia de que o sujeito “se vendeu”, isto é, por um ganho financeiro deixa de dizer o que pensa politicamente ou redireciona a prática política enquanto militante ou liderança.

Assim, o que se espera em organizações anticapitalistas, é que os militantes possuam uma moral elevada, de modo a não caírem na tentação de capitalizarem sua militância. Pelo menos não de modo que comprometa as ideias e direcionamentos políticos de sua militância. Que uma moral elevada seja uma qualidade muito desejável e até importante na militância, não há dúvidas. Porém, que organizações políticas anticapitalistas dependam que seus membros ou que seu entorno de militantes e lideranças sociais sejam franciscanos, é uma demonstração de fragilidade e de falta de política (policy) dessas organizações. Uma ausência de política que faça frente a um fenômeno que mina seus quadros e as práticas militantes antagonistas ao capital.

Num contexto de aprofundamento generalizado da precarização econômica e do trabalho, e sem um horizonte de expectativa revolucionária nos curto e médio prazos – de modo que pelo menos ver um ascenso das lutas pudesse ser uma compensação por um ascetismo militante – depender da condenação moral e do franciscanismo militante parece ser não apenas uma má estratégia para lidar com o problema, mas uma completa ausência de estratégia, isto é, de política.

Entre entregadores de aplicativo, a frequente sobreposição num mesmo indivíduo da figura da liderança, influencer/youtuber e comunicador pago pelo iFood, certamente tem como um dos fatores a busca de uma melhoria financeira. Nesse sentido, fundamentalmente não se difere do conhecido fenômeno, entre operários industriais militantes e de outras categorias, da busca de mobilidade social ou de se afastar do ambiente e ritmos nocivos de trabalho através da eleição para cargos sindicais.

Em outro lugar fiz uma descrição de como um dos principais articuladores da Campanha pelo Passe Livre em Florianópolis na década de 2000, rachou com o movimento buscando capitalizar financeiramente através dele [1]. Na minha avaliação, como escrevi na época, sua ânsia em ganhar dinheiro com a “militância” a qualquer custo (político) teve como fator importante o fato de ele ter uma situação econômica precária naqueles anos de juventude, em função, em grande parte, da sua militância. A negligência desse aspecto da vida, relacionada à construção da vida econômica e financeira individual, pode cobrar seu preço mais tarde, com implicações políticas deletérias.

A sangria e desvio de militantes e lideranças pelo e para o capital não se resumem, evidentemente, a fatores econômicos e de precariedade financeira na vida. Porém, acrescentar fatores individuais de cunho psicológico ou moral, em vez de ajudar que as organizações anticapitalistas pensem sobre o assunto e tentem constituir políticas para lidar com o problema, obstruem o pensamento e a possível constituição dessas políticas.

E o problema se torna mais claro, e talvez maior, uma vez que a capacidade política que faz alguns militantes e lideranças se destacarem, constituindo quadros cuja perda é ainda mais sentida, abrem possibilidades mais fáceis e evidentes, e até mesmo convites, para adentrar no carreirismo sindical e parlamentar, ou para se enquadrarem nos limites de ONGs e outras organizações que ofereçam a possibilidade de uma melhoria ou estabilidade financeira. Ou seja, a tendência é que os quadros com maiores capacidades políticas, com habilidades e competências políticas mais desenvolvidas, precisem de uma moral franciscana (ou militante, como se queira), mais forte e fundamentalista num contexto de precarização generalizada e de ausência de um horizonte de expectativa de transformação social.

A primeira resposta a esse problema que pode vir à cabeça é a chamada “liberação” de militantes. Porém, a organização pagar uma renda a militantes ou lideranças para “liberá-los”, na forma como muitas vezes é feito em organizações de esquerda, resulta em problemas até mais graves. Implica o estabelecimento de um princípio de hierarquia na organização e implica numa profissionalização da militância. A profissionalização da militância, além de ser um fator para geração das burocracias, tende a gerar dependência econômica do indivíduo em relação à organização, o que traz um constrangimento individual para manter ideias e posições políticas que não o incompatibilizem com a organização que lhe paga.

Não trago soluções, mas apenas o problema. É preciso pensar. Se é que é possível encontrar uma forma de mitigá-lo. Talvez um caminho de pensamento seja o de como estabelecer um princípio de solidariedade econômica na organização que não comporte ou que minimize os riscos da tradicional “liberação” de militantes. Outro caminho seria pensar soluções caso a caso.

Nota

[1] Ver Guerra da Tarifa 2005, pp. 25-26, em: https://editorafaisca.wordpress.com/wp-content/uploads/2015/02/leo-vinicius-guerra-da-tarifa-20051.pdf

As obras que ilustram este artigo são de Cildo Meireles (1948 —)

6 COMENTÁRIOS

  1. Etienne, diante de uma necessidade coletiva vital, se desfez de tudo, menos de suas botas. Não acho que é uma questão moral. Acho que é uma questão ética. E ética (a formulação um tal código de ética e assim como o subsequente respeito estrito a estas premissas éticas) não se adquire com condenações e culpas, e sim com um processo continuo de formação política da militância.

    Camarada Leo, poderia detalhar melhor o que seria “uma moral franciscana (ou militante, como se queira)”?

  2. Faz bastante tempo que os chamados “movimentos sociais” são um trampolin para cargos de gestão em empresas, Estado ou ONGs. As próprias empresas reconhecem isso. E de tal forma que muitas delas, em suas seleções de currículos, contam como ponto positivo a participação do candidato nestes espaços. Também não é por acaso que hoje em dia os movimentos sociais estejam atraindo tantos carreiristas. Então me parece que a questão é mais profunda do que conflitos entre interesses pessoais e interesses “do movimento”. Mas a questão é muito pertinente.

  3. Me fez lembrar de uma série de camaradas que trocaram de lado na luta de classes indo pra burocracia e hoje alguns estão aí se dedicando a desqualificar luta e organização de trabalhadores… Olha como a coisa capotou…

  4. Leo,

    Seu texto levanta a bola de um problema importante, mas bem que podia ter mais uns parágrafos. Ainda que você não queira trazer respostas, o problema ainda poderia ser melhor desenvolvido e precisado. Sobre a “liberação”, além dos problemas já colocados, seria fundamental pensar também os meios pelos quais uma organização pode assalariar um militante. Como se obtém esses recursos? É do autofinanciamento ou de um apoio externo? No caso de um apoio externo: quem, por que, de que forma, quais as implicações?

    O velho ditado ensinava que “quem paga a banda escolhe a música”, mas o capitalismo contemporâneo nos exige atualizar essa máxima, já que encontramos inúmeros casos de financiadores que nem parecem se importar tanto assim com a música que está sendo tocada, e podem até fazer vista grossa para relatórios pro forma… — desde que estejam financiando. Mais importante que escolher a música, é que a banda esteja sendo remunerada, e que tudo aquilo ocorra sob a mediação do dinheiro, que seja quantificável, integrando-se à lógica geral deste mundo (capitalista).

    Num tempo em que o capital subsumiu todas as esferas da vida e, portanto, consumiu boa parte do espaço que os trabalhadores encontravam para organização autônoma no tempo fora da empresa, a tentativa de existir fora dessa lógica não seria o esforço político primordial de uma organização que se pretenda anticapitalista? A organização militante, desse ponto de vista, teria necessariamente uma existência tensa, já que tensionada com a realidade. Isso talvez signifique que sempre haverá algum grau de improviso nessas organizações. Não quer dizer que não haja repertório sobre isso, a tradição proletária já experimentou muita coisa (será que a policy que você sugere é o apoio mútuo?). Mas em última instância vai ser sempre só nos momentos de ascenso — quando formas comunistas ganham mais tração social, quando nosso lado acirra a tensão — que tudo vai funcionar melhor. A grande questão da sustentação é sobre o momento seguinte, quando vem o refluxo, o tensionamento perde o sentido, o capitalismo cobra de volta. O que pode ser uma “retaguarda proletária” nesses momentos?

    Por fim, para sair do problema moral (e tratar em termos éticos, como disse a Liv, ou simplesmente político), talvez a discussão seja melhor dimensionada quando pensada em termos coletivos. Não só a perda de companheiros para o capital, mas de organizações inteiras. Veja o MST, cuja integração ao capitalismo foi tema de profundas reflexões aqui no Passa Palavra nos idos de 2012. Já escutei que nos anos 1990 o “aparato” estadual próprio do movimento eram basicamente dois carros (claro, contava com uma retaguarda da Igreja, sindicatos e partido). Foi também o auge de sua combatividade, enquanto hoje tem armazéns do campo em várias cidades, cooperativas, ações na bolsa etc. e se tornou justamente isso.

    Enfim, só jogando mais umas ideias nessa conversa.
    Abração

  5. Existe um problema de fundo no tratamento teórico (e portanto, estratégico) da questão que acho que esse texto e o comentário do Caio transparecem muito bem. A organização de uma nova dinâmica social vai surgir de dentro dos processos produtivos, por trabalhadores que são explorados, ou vai surgir “de fora pra dentro” por pessoas que vivem outras formas de relacionamento social? Ou seja: se a política comunista vem de uma experiência pura não ditada pelo capital (que não é dinheiro, lembre-se, capital é circulação de dinheiro que visa acumulação de capital), de onde vai surgir a expectativa de uma generalização dessa experiência? Afinal a única coisa geral no capitalismo é a experiência do trabalho. E não acredito que nenhum trabalhador, mesmo que toque a música que quem pagou manda, acredite que essa música ordenada de fora vem do próprio coração. Como nenhum trabalhador se vê ali idêntico nas mercadorias que gera.

  6. Profissional, eu enxergo e conheço o problema de fundo que você traz à tona. Mas olhe para si e para o ambiente em que está – uma pessoa que está discutindo comunismo nos comentários de um site que se propõe “noticiar as lutas, apoiá-las e pensar sobre elas”. Que posição é essa? Constantemente trabalhadores se organizam pra atrapalhar a música ordenada de fora (independentemente do nível de identificação que tenham com ela – que no pós-fordismo, muitas vezes é bem alto), e nesse processo vamos descobrindo outros sons, deles percebemos a possibilidade de compor uma música que venha do coração, para continuar na mesma metáfora. O que se faz a partir daí? No refluxo do enfrentamento, esses sons vão parando de fazer sentido, volta a banda ordenada, mas o ruído às vezes custa a sair da cabeça. E às vezes você não quer que saia. E vai buscar fazer o ruído de novo, às vezes em outros lugares, conhecer ruídos de mais gente, incentivá-los, amplificá-los, melhorá-los, registrar e divulgar as partituras, tentando descobrir como seria essa música que está nos corações. Isso é a militância. Se o objetivo é compor uma nova música desordenando o coreto, será uma posição necessariamente tensa, à revelia, e por isso não falei em “experiências puras não ditadas pelo capital”. Justamente por ser uma posição politicamente tensa, mal resolvida, ela é repleta de riscos, e um deles é achar que a militância possa criar “de fora para dentro” uma nova sociedade, isto é, por si só resolver os problemas que cabem à humanidade proletarizada – como você sugere no seu comentário. Acho que você avança o sinal ao depreender que toda iniciativa militante estará fadada ao vanguardismo, mas não descarto que você possa ter razão. A posição dos militantes, restos humanos de lutas passadas que tentam pensar sobre elas e se relacionar com novas lutas, existe, e por isso faz sentido debatê-la, como propõe o texto do Léo. Possivelmente os esforços dos militantes são totalmente vãos, e novas ondas de luta surgem ao largo ou à revelia deles, ou terminam sendo até prejudiciais, contendo o desenvolvimento de novas lutas com seu peso morto. Na melhor das hipóteses, otimista, é pelo menos um fio vermelho que conecta essas lutas através de diferentes gerações.

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here