Primo Jonas entrevista Carlos
Diante dos últimos eventos no Equador, a entrevista a seguir foi realizada no último domingo (06 de outubro) com um companheiro equatoriano que vive em Quito.
Primo Jonas: Comecemos com um pouco de contexto recente. Como se sentiu a transição entre o governo Correa e o governo Moreno? A população sentiu uma virada política? Como isso impactou nos diferentes setores sociais?
Carlos: Sim, realmente foi sentida uma virada. Eu pessoalmente não estava morando aqui neste momento, mas pelos relatos que escutei e, no que acompanhei à distância, desde que Moreno assumiu houve uma virada muito forte em relação às políticas de Correa. É importante lembrar que Moreno foi vice-presidente do governo Correa durante 6 anos, e chega à presidência como representante do governo anterior. O outro candidato era Gillermo Lasso, que é associado aos setores bancários e que esteve envolvido no que aqui ficou conhecido como a crise do “feriado bancário” de 1999, que foi uma crise muito profunda em decorrência da aplicação de medidas neoliberais – que basicamente estão sendo repetidas.
Se bem que nos últimos anos do correísmo já se sentia certo mal-estar social – quer dizer, sempre houve mal-estar, mas de setores minoritários -, já vinha se sentindo algo um pouco mais generalizado a respeito de algumas políticas. O bom momento do petróleo já não rendia tantos frutos como em 2013 e 2014. Isso foi caindo, então já se via o ajuste chegando e com ele o mal-estar, que é muito difícil de medir. Muitos setores votaram em Moreno apesar deste mal-estar, pois reconheciam nele um “mal menor”. Mas, quando ele chega ao poder, em poucos meses rompe – a princípio mais “verbalmente” – tanto com as políticas quanto com o discurso correísta. A partir daí o governo passou a distanciar-se dos setores correístas e dentro do próprio governo começam a pipocar casos de corrupção, muito casos. A princípio os famosos casos da Odebrecht, pelos quais foi acusado o ex-vice-presidente, Jorge Glas, que foi afastado do seu cargo; além de muitas outras denúncias de corrupção ocorridas durante o governo de Correa, muitas das quais fomentadas pelo governo de Moreno. Além disso, Moreno começou a se aproximar dos setores que estavam em conflito com o governo Correa, isto é, setores bancários, meios de comunicação, etc. Então sim, a ruptura é muito forte, e ela é lida pelos setores correístas como uma traição. E não apenas por eles: boa parte da população também interpreta assim, como uma virada brusca e uma aproximação de setores da direita tradicional, financeira e empresarial.
PJ: Na imprensa internacional o aumento dos combustíveis aparece como o tema principal das manifestações. É assim de fato? Uma reação ao aumento do custo de vida?
C: De fato, acho que o sentido do principal mal-estar que produz as manifestações é o aumento do preço do combustível, que na verdade é a retirada do subsídio, cotado ao preço de mercado. O problema é que na prática isso significa que o diesel, mais usado no transporte de alimentos e cargas pesadas, vai subir mais de 200%. Então acho que na maioria da população nós entendemos que a equação é muito simples: que todos os alimentos e as coisas que consumimos cotidianamente são transportadas em caminhões de carga pesada, e no preço evidentemente vai repercutir; sem contar também o aumento do preço das passagens da mobilidade urbana. Então esse é o principal foco de mal-estar, mas está longe de ser o único. Desde o princípio do governo de Moreno, e um pouco antes também, já vinham sendo aplicadas medidas de cortes no setor público. São agora aproximadamente 20 mil demitidos. Falam de mais 10 mil até o fim do ano, mas não existem números claros. Também tivemos recentemente um empréstimo do FMI e de outros órgãos internacionais, num total de 10 bilhões de dólares, que acontece ao mesmo tempo em que se perdoa dívidas do setor bancário no valor de 4 bilhões de dólares. Tudo isso vai se somando à pilha do mal-estar. Entre as novas medidas também inclui-se uma reforma trabalhista para ser aprovada no Congresso, que precarizará muito mais o trabalho; fala-se também de um recorte de 20% nos salários dos novos contratos do setor público. Então estamos falando de um golpe bastante forte e que será sentido imediatamente. Por isso o mal-estar não é novo, e ainda que seja sentido principalmente na questão dos combustíveis, está longe de se resumir a isso.
PJ: Quais setores convocaram a paralisação e as manifestações? Que papel cumprem os sindicatos e as organizações sociais?
C: A paralisação nacional foi convocada para a quinta-feira (03/10) principalmente pelos setores de transporte, e muitos pontos do país amanheceram com bloqueios. Também houve locais onde a população se “autoconvocou” e realizou bloqueios de estradas e de ruas. Para a tarde de quinta-feira estava convocada uma manifestação de setores universitários em Quito, que juntou muitas pessoas, aproximadamente 10 mil – não saberia dizer exatamente, mas foram, sim, muitas pessoas. Não conseguiria dar um quadro exato, mas éramos muitos “autoconvocados”. Digo principalmente em comparação com outras manifestações que fui em que se podia claramente identificar os grupos e organizações que convocavam, sindicatos, partidos, etc. Ainda que alguns sindicatos tenham se pronunciado, não é o setor que está realmente mobilizando. Mas, por exemplo, na sexta-feira a operação do governo era tentar ligar as manifestações com os setores do transporte, e muitos dirigentes deste setor foram detidos pela polícia logo de manhã. Nos meios de comunicação – aliados ao governo – levantavam a ficha de alguns destes personagens e, claro, em geral são personagens nefastas, típica burocracia, então com isso tentaram deslegitimar este setor. Porém à tarde já dava para ver que não se reduzia a esse setor. De fato, na sexta à noite os dirigentes do transporte determinaram o fim da paralisação, mas a essa altura o setor indígena já estava muito mobilizado, e é um setor muito importante neste momento. Esse setor já havia se pronunciado e aderido à paralisação na quinta, e agora existem muitas colunas que estão se dirigindo à capital, realizando bloqueios nas regiões das serras e da Amazônia em muitas estradas. Também desde quinta-feira muitas destas comunidades se mobilizaram nas cidades, com muita repressão. Desde os anos 90 esses setores indígenas vêm numa trajetória recente de lutas que os governos não conseguiram desarticular, por isso demonstram uma força muito grande.
PJ: Você conhece expressões de algum tipo de direita (nova ou velha) que tenha participado nas manifestações?
C: Não conheço expressões da direita que estejam nas manifestações. Mas o que posso te mencionar a respeito é, infelizmente, um grau de mal-estar relacionado a sentimentos xenófobos nas conversas na rua, no transporte público, sobre a imigração venezuelana. Neste momento há aproximadamente 500 mil venezuelanos e venezuelanas aqui no Equador. Há dois meses começou a se pedir visto para a entrada de venezuelanos no país, o que cortou um pouco o fluxo migratório, mas sua presença é marcante. Então é comum agora escutar alguns comentários xenófobos no estilo de “estão nos roubando o trabalho”, que eles não são bem-vindos agora nesse momento econômico ruim, etc. É uma merda, porque há algo concreto aos olhos da população, dado que existem muitos empresários que se aproveitam das condições desesperadoras dos migrantes e pagam salários bastante inferiores aos demais.
PJ: Como você vê o cenário geral? É possível dizer que estas manifestações produziram uma modificação no sentido geral das coisas no país? Alguma repercussão subjetiva, algo relacionado a um descrédito no setor político, alguma polarização entre apoiadores e opositores ao governo?
C: Essas manifestações alteraram radicalmente o que vinha ocorrendo antes. Agora já são mais de 2 anos de ajustes. Houve manifestações antes, mas que não tinham tido essa expressividade de agora, pois eram de setores específicos afetados: de estudantes, ou de sindicatos, etc. Não tinha havido até o momento uma expressão tão generalizada, apesar de uma ou outra manifestação grande. Também a natureza das manifestações, que eram sempre com as faixas, percurso da mobilização combinado com a polícia, dispersão mais ou menos ordenada, tirando um ou outro caso de pedras e repressão pontual. Um caso para mencionar é o dos residentes médicos, que foram os únicos que conseguiram uma “vitória”, assim entre aspas, pois conseguiram que não retirassem seus direitos: o governo iria cortar quase 40% do salário dos residentes, mas a mobilização deste setor fez o governo retroceder. Foi o único caso.
Então as manifestações de agora alteraram muito o aspecto subjetivo e também a natureza das próprias manifestações. Explico um pouco o porquê. Durante a década de 1990 aqui no Equador, tivemos 5 presidentes num período de 10 anos, pois cada um era derrubado pelas manifestações populares, exatamente a partir de tentativas de aplicar medidas neoliberais. Eu acho que estas manifestações de agora talvez não tenham a mesma força – temos que esperar para ver como se desenvolverão -, mas, sim, compartilham algo daquele espírito, de um mal-estar muito generalizado e de uma legitimidade muito ampla. Acredito que nos setores populares existe uma total legitimidade destes protestos, mas surgem divisões de classe a partir dos apoios que o governo está negociando. De fato o governo parece ter um acordo pleno com os meios de comunicação hegemônicos e com os partidos políticos tradicionais, para além da discordância pontual com um ou outro. Também com setores financeiros e empresariais, claro. Então existe uma blindagem midiática muito forte, como se fosse apenas um mal-estar dos transportadores, e agora a operação é dizer que a normalidade voltará logo, que não está ocorrendo nada. Estão cobrindo apenas algumas mobilizações indígenas, mas não as manifestações nas cidades.
Não diria que existe uma crise com a política em geral. Sim, a questão da representatividade está quebrada. Digo, há muitos setores afins ao correísmo “de Correa” que têm saudades do seu líder, principalmente frente a governos negligentes, pois o governo Correa realizou muito investimento público. Então, mesmo com todas as denúncias de corrupção, produziu isso de dizerem que “rouba mas faz”. Mas, fora isso, há certo sentimento de que não há ninguém que possa exercer legitimamente uma direção dos setores populares.
PJ: Comentários finais que queira fazer ou algo que não tenha sido perguntado.
C: Acho que seria importante ficarmos atentos à situação especialmente no que diz respeito aos direitos humanos e ao desenvolvimento dos eventos, pois estamos sob Estado de Exceção desde quinta-feira. Os militares já interviram nos protestos, não apenas nas estradas, mas também nas cidades. O nível da repressão é bastante alto e estamos em pleno desenvolvimento do cenário, pois ainda que os dirigentes dos transportes já tenham se retirado das manifestações, os setores populares estão ativos. Já mencionei o setor indígena que está se mobilizando em direção a Quito e já há casos de repressão e feridos nas imediações da capital. Mas não há indícios de que as manifestações se acalmem. Não vi nenhuma convocatória “oficial” de nenhum setor organizado aqui em Quito para esta segunda-feira, mas o que vi são alguns centros onde estão organizando doações de comida e roupas para as colunas indígenas que se aproximam da cidade. Mas acho que vai ocorrer como na sexta-feira, que não houve convocatória oficial mas, na verdade, diversos focos de mobilização em diferentes pontos da cidade, com organizações e autoconvocados. O maior foco de mobilização na sexta-feira, próximo do centro da cidade, foi onde mais houve repressão e violência; não foi uma marcha, foi praticamente um enfrentamento direto com a polícia.