Por Alguns amigos
João Bernardo
A contradição entre o apoio aos imigrantes e a rejeição aos turistas é um lugar-comum nos países turísticos da União Europeia, nomeadamente na Espanha e em Itália. Em Portugal o Bloco de Esquerda começou essa campanha e apareceram inscrições nesse sentido, mas o turismo tem agora uma tão grande importância económica em Portugal e ajudou tanto o país a sair da crise, além de criar muitos postos de trabalho, inclusivamente para pessoas sem qualificações, que o Bloco recuou e silenciou a campanha, para não perder votos. Mas a ideia anda muito à superfície e não tardará a reaparecer. Pessoas consideradas à esquerda do Bloco, como Esta ou Aquele, por exemplo, tomam também abertamente posição contra os turistas. Na Catalunha a ala radical do independentismo, chamada anticapitalista, chegou ao ponto de sequestrar um ônibus de turistas no meio de uma estrada, bater no condutor e obrigar os turistas a regressarem a Barcelona a pé. Note-se que, enquanto esses meninos e essas meninas, praticamente todos universitários, proclamam que os refugiados são bem-vindos, no dia a dia eles demonstram uma real insatisfação para com todos os estrangeiros, seja qual for a forma como chegam ao país. Em França, os Coletes Amarelos deram mostras de uma disposição semelhante, todos eles anticapitalistas, claro.
Para vocês compreenderem melhor o problema, tenho de explicar que na Europa o turismo move massas, não é de modo nenhum um privilégio da elite. É uma forma usual de férias da classe trabalhadora, especialmente agora, com os voos low-cost. Assim, a campanha estridente que o Bloco de Esquerda fez e continua a fazer contra os chamados Alojamentos Locais, ou seja, apartamentos em residências alugados por curta duração a turistas, atingem exclusivamente os turistas pobres, porque é claro que os turistas ricos vão para hotéis. O Bloco não se preocupa com a Herdade da Comporta nem com os hotéis de cinco estrelas nem com os campos de golf. Toda essa campanha da esquerda e da extrema-esquerda contra os turistas é uma forma de virar trabalhadores contra trabalhadores. No Brasil, onde praticamente não existem estrangeiros, vocês não observam as consequências mais nocivas desse tipo de extrema-esquerda e de identitarismo, tal como podem observar-se na Europa. Teria de escrever muito mais sobre o assunto, porque o debate não deve ser resumido, mas aumentado, e muito. Daria todo um artigo, que aliás há tempo que tenho na cabeça, acerca do salazarismo cultural do Bloco de Esquerda. Enquanto o Partido Comunista Português é, como sempre foi, nacionalista, o Bloco de Esquerda é pior ainda, é bairrista.
Acrescento o seguinte. Em Itália é a extrema-direita que é hostil aos turistas, acima de tudo em Veneza, que fica na zona de maior apoio ao Salvini. E os argumentos que ela emprega são em tudo semelhantes aos argumentos que a extrema-esquerda emprega na Catalunha ou nas outras regiões de Itália ou o Bloco emprega em Portugal. Claro que, quando eu refiro a hostilidade aos turistas, quero dizer aos turistas pobres, porque quem for bem-vestido não sente hostilidade nenhuma por parte dessa gente. Mas é um bom exercício de análise política, comparar os argumentos contra os turistas formulados pelo Bloco de Esquerda a respeito do Porto e de Lisboa com os formulados pela extrema-direita italiana a respeito de Veneza.
Rodrigo Fonseca
Lendo o que você escreveu, lembrei imediatamente das lutas contra o Airbnb, que se apropriou do que havia surgido como um compartilhamento camarada do sofá da sala para turistas mochileiros e hoje é utilizado por redes, imobiliárias, proprietários de vários imóveis que antes eram alugados a moradores e hoje rendem muito mais colocados à disposição no aplicativo que vende uma experiência (e um custo mais em conta que o dos hotéis).
João Bernardo
A argumentação exposta pode — e sublinho pode — abrir o caminho àquela que usam as pessoas, tanto os que se pretendem da esquerda como os populistas de direita, que são contrários aos turistas, acusando-os de fazerem aumentar os aluguéis e os preços dos apartamentos. No entanto, essa argumentação é falsa, por vários motivos, e passo a enunciar aqueles que me parecem mais importantes.
a) Uma grande parte, diz-se mesmo que a maior parte, dos alojamentos locais ofertados aos turistas não passa por esse tipo de aplicativos, e são uma fonte de rendimentos para pessoas que de modo nenhum são ricas. É um aluguer boca a boca, sem declaração às finanças e, portanto, pelo qual o proprietário do alojamento não paga impostos.
b) Como os alojamentos locais são mais baratos do que os quartos em hotéis, os lobbies da indústria hoteleira estão discretamente por detrás das campanhas contra os alojamentos locais. Não é a primeira vez, não será a última, que as boas intenções da esquerda servem as más intenções alheias.
c) No máximo, existe um coeficiente de correlação, em certas ruas e em certos bairros, entre o aumento do número de alojamentos locais e o aumento do preço dos aluguéis e dos apartamentos. Mas um coeficiente de correlação não é uma causa, embora seja demagogicamente usado como tal. O facto de um bairro ou uma rua atraírem muitos turistas é o resultado de uma causa mais profunda, que faz com que esse bairro ou rua atraiam muitos residentes, pela sua beleza e interesse histórico. Se a procura aumenta e a oferta é inelástica, os preços obrigatoriamente aumentam.
d) Isto leva a todos os bonitos discurso de esquerda, ou simplesmente populistas, contra a gentrificação. São lágrimas de crocodilo, como dizemos em Portugal, porque essas pessoas que declamam contra a gentrificação nunca viveriam nas casas dessas ruas ou bairros antes de a gentrificação ter ocorrido. Eram casas insalubres, sem condições higiénicas, por vezes de uma miséria atroz. Vejam na cidade do Porto, por exemplo, o interior das casas miseráveis nas ruas que ainda não foram gentrificadas. Quando essa extrema-esquerda faz a apologia da miséria, sempre desconfio de que se trata de um álibi para o que ela se prepara para fazer se algum dia obtiver o poder.
e) O turismo, com todos os serviços e todas as indústrias que ele activa, é responsável pelo emprego de muita gente com baixas qualificações profissionais, que sem isso estariam no desemprego. Quem diz que o turismo estimula baixos salários raciocina ao contrário. O turismo permite o emprego massivo de pessoas que ganham baixos salários porque têm poucas qualificações, mas que sem o turismo estariam no desemprego.
f) Além disso, o tipo específico de turismo que procura os alojamentos locais tende a cozinhar em casa, em detrimento dos restaurantes, e por isso aumenta os negócios dos pequenos estabelecimentos de esquina de rua, aquilo a que em Portugal chamamos mercearias, muitas vezes abertos até tarde, e que numa parte crescente dos casos, em Lisboa como em Londres, são mantidos por paquistaneses e indianos. Estes turistas que ficam em alojamentos locais deram um impulso ao pequeno comércio, mais do que aos grandes supermercados, e ajudam a viver os imigrantes.
Em suma, as campanhas contra os turistas, que são hoje um dos aspectos obrigatórios do populismo tanto de esquerda como de direita, visam mover trabalhadores contra trabalhadores, porque os turistas realmente ricos, esses, nunca os vemos. Estão lá longe, nos seus hotéis de luxo bem discretos, junto aos campos de golfe ou em parques fora das cidades. Quando andam nas ruas, é só para irem às lojas de luxo, em carros com motorista, que os deixam à porta da loja e os levam de volta à saída. Os turistas que são expostos como nocivos são trabalhadores que fazem turismo, e é conveniente que vocês, brasileiros, saibam que na Europa o turismo de massas é praticado por trabalhadores, e mesmo trabalhadores que não recebem salários elevados. As campanhas contra os turistas são uma forma, por enquanto bem-educada, da mesma vaga de fundo que levou aos acontecimentos analisados no artigo «O racismo negro antinegro na África: doloroso paradoxo da luta de classes».
Josevan Bispo
Curioso. A percepção que tenho da gentrificação e das lutas em torno dela é bastante distinta, talvez porque as lutas em que estive envolvido sejam um tanto diferentes das lutas “contra os turistas” em torno de aplicativos como o Airbnb. Explico:
a) Gentrificação, que prefiro traduzir adequadamente como enobrecimento, é um termo academicamente estabelecido e cientificamente bem definido do urbanismo – seu uso nas lutas sociais apenas demonstra quem está à frente delas, e quem estabelece o léxico dominante. O conceito define, sinteticamente, um processo. Áreas urbanas centrais degradadas costumam ter preços baixíssimos de aluguel, quando não se trata de pura ocupação de ruínas e imóveis decadentes. São residência de proletários de renda mais baixa, de prostitutas, de pequenos traficantes, de moradores de rua etc. Os baixos preços de aluguel, e também as oportunidades de ocupação de ruínas, atraem setores que, pertencendo à intelectualidade romantizadora destas condições de vida, ou não tendo condições de pagar por aluguéis em outras áreas da cidade, ou qualquer outra condição dependente da situação geográfica, vão morar nestas áreas. Sua presença nos mercadinhos, açougues, farmácias, mercearias e, principalmente, nos botecos, atrai para a área a frequentação de outros do mesmo estrato social, tornada aos poucos habitual. O lugar passa a ser conhecido pelos alugueis baratos, pela vida barata, pela crescente tolerância social (às práticas destes novos moradores, claro), e outros do mesmo estrato social vão chegando como moradores. Os moradores antigos vão sendo paulatinamente substituídos, e o caráter social da área vai mudando. A área vai se tornando um lugar conhecido pela arte de rua, saraus, música, teatro, boemia intelectual etc. Tudo isto valoriza o lugar e atrai as atenções de proprietários de imóveis, de incorporadoras etc., que veem aí uma oportunidade de negócios e a aproveitam. A esta altura, os moradores antigos são minoria, já vivendo às margens dos sítios mais valorizados da área, ou saíram completamente, migrando, voluntária ou forçadamente, para outros cantos. Há casos em que estes moradores antigos foram literalmente expulsos, há outros em que foram saindo aos poucos pela pressão do custo de vida crescente no local, mas o fato é que os proletários, as prostitutas, os traficantes, os moradores de rua etc. tendem a mudar de lugar, que, com o tempo, termina enobrecido. Casos típicos deste processo são o SoHo e o Bedford-Stuyvesant (Nova Iorque), Barnsford (Londres), Saint Roch (Quebec), Cerchia dei Bastioni (Milão) e a Colônia Roma (Cidade do México). Um caso “incompleto” é o Dois de Julho (Salvador): o lugar passou de área degradada de moradia no início da década de 1990 a moradia de estudantes universitários pobres no final da mesma década, depois a lugar de boemia intelectual na primeira metade dos anos 2000 até ser, hoje, moradia da classe média baixa. O setor de hotelaria tem grande interesse na área, que tem belíssima vista para a Baía de Todos os Santos; já tentou duas vezes instalar um complexo hoteleiro por lá, mas os moradores entendem que isto terminaria, com o tempo, expulsando-os de uma área muito próxima ao Centro da cidade e mobilizaram-se contra, com sucesso. Os processos de enobrecimento costumam demorar décadas, medem-se muito vagarosamente, e a metamorfose passa despercebida até certo ponto.
b) Em todos os casos que vi mais de perto, a luta dos moradores mais antigos (ou seja: os proletários, as prostitutas, os traficantes, os pequenos artesãos etc.) não era para expulsar os turistas. Não queriam, em nenhum dos casos que vi mais de perto, expulsar ou impedir o “gringo” de chegar, mesmo porque suas profissões dependem do fluxo de turistas. Queriam, pelo contrário, permanecer nas áreas reformadas e garantir maiores investimentos estatais na recuperação das áreas mais degradadas, seja para melhorar sua qualidade de vida, seja para que mais turistas pudessem frequentar estas áreas, servindo-lhes de clientela. Por outro lado, os apoiadores externos destas comunidades e ruas têm um discurso e práticas muito fortes contra incorporadoras, construtoras e imobiliárias que planejem expulsar moradores para substituí-los por gente rica, mas assumiram igualmente como positivo o papel do turismo, pretendendo apenas redirecioná-lo em favor dos moradores mais antigos.
c) Muito interessante foi ver como estes moradores mais antigos sabem perfeitamente como lidar com os mais ingênuos entre os militantes “contra a gentrificação”. Certa feita, quando um morador de certa área degradada fazia propaganda de um evento no centro cultural que coordenava, recebeu questionamentos de certas figuras acadêmicas por estas “parcerias”, pois a atividade contou com o patrocínio de algumas lojas de materiais de construção, supostamente interessadas no enobrecimento da área. A resposta foi pronta: “me desculpem, mas isto é coisa de quem nunca passou fome. Você vai ajudar a conseguir dinheiro para a atividade, ou vai ficar aí, de longe, me dizendo o que eu posso ou não posso fazer? Sem dinheiro não tem atividade, sem atividades culturais nossa rua não melhora, e aí fica fácil para o pessoal da universidade fazer discurso bonito em cima de nós”. Postos diante da contradição, os críticos calaram-se. Ao associar-se a capitalistas, e portanto engajar-se no enobrecimento da área, este sujeito contrariou o discurso acadêmico e, ao mesmo tempo, evidenciou os resultados práticos da falta da mais elementar solidariedade de classe.
d) Outra coisa muito distinta me parece ser este tipo xenófobo de militância antiturista. Por sinal, tais militantes entendem tão mal o enobrecimento que não percebem como são, eles mesmos, seus agentes. Aplicativos como Airbnb não “inventam” nada, apenas aceleram processos existentes — e é esta aceleração que permite, no caso do enobrecimento, saltar sua etapa, digamos, “artesanal” e “boêmia”, para chegar diretamente à exploração imobiliária capitalista mais feroz. O enobrecimento via aplicativos, portanto, não é exceção, mas a regra — funcionando mais rápido, mas é a regra, em pleno funcionamento. Se aplicativos como Airbnb chegaram a determinada área, é porque, primeiro, existe nela quem conheça o aplicativo, não sendo, portanto, exatamente a mais degradada das áreas; segundo, porque nesta área existem elementos suficientes para torná-la atrativa a turistas (do contrário, o negócio seria inviável). Por “elementos suficientes” refiro-me a uma inserção minimamente digna na malha urbana: acesso a transporte e telecomunicações, alguma segurança pública, acesso a uma rede local de pequenos serviços (padarias, mercearias, farmácias, açougues, lavanderias, lan houses, restaurantes e lanchonetes etc.). Por trás de cada militante contrário ao Airbnb encontra-se, decerto, um frequentador da área onde se situam imóveis inscritos na plataforma; do contrário, sequer saberiam da existência, na área, de imóveis cadastrados no aplicativo. Sua militância não é apenas contra o aplicativo ou contra a aceleração do enobrecimento que ele provoca, mas também, e diria eu principalmente, contra os que vieram “tomar” aquele lugar “pitoresco”, “agradável” e “aconchegante” — lugar que um dia tomaram, eles próprios, dos antigos moradores. Sintoma de um tempo em que o consumidor é responsabilizado pelas mazelas estruturais do capitalismo, causadas pela exploração econômica e pela opressão política; em que a “ética” individualista da “militância do consumo consciente e sustentável” substitui a ação política contra o Estado e as empresas.
João Bernardo
Talvez eu me tivesse explicado mal. Não me referia a lutas de moradores. A minha percepção, nas cidades em que vivi e que conheço, em vários países, é semelhante. Os moradores aceitam os turistas como aceitam as pessoas da mesma cidade que vêm dos bairros mais ricos, ou menos pobres. Além disso, quando mencionei lutas, queria dizer campanhas articuladas e conduzidas por partidos políticos, muitas vezes sem a participação de moradores, noutros casos com uma participação apenas simbólica. É o que se passa em Portugal com o Bloco de Esquerda e com os morenistas do MAS, que são muito pouco significativos. E é o que se passa em Espanha com o Unidos Podemos (que agora, para ser politicamente correcto, mudou o nome para Unidas Podemos). Aliás, o Podemos hoje é constituído por um centro identitário que reúne nas províncias os nacionalistas locais. É a soma identitarismo + nacionalismo. Na Catalunha, por exemplo, quem agrediu fisicamente os turistas foram militantes do Anticapitalismo. Em Barcelona a hostilidade das populações locais, quando existe, não é tanto contra os turistas mas sobretudo contra os habitantes vindos das outras regiões de Espanha. Um horror. Vou dar um exemplo português. Uma pessoa próxima recusa-se agora a ir a zonas de Lisboa, a Baixa por exemplo, onde é maior a concentração de turistas. Mas essa mesma pessoa acha perfeitamente natural que, com os financiamentos e bolsas que obtém, vá passar meses em cidades estrangeiras. Eu acho que deve haver uma relação entre essa reacção e aquela que leva as feministas a falarem de espaços seguros ou os estudantes negros nos campi norte-americanos a colocarem anúncios para procurarem outros estudantes para formarem repúblicas, mas explicando que não querem brancos. Não sei exactamente formular essa relação, mas estou convencido de que existe e que se trata de uma hipótese de trabalho eventualmente frutífera. Mas, voltando ao caso dessa pessoa, ele e outro formaram numa rua semitípica de um bairro semitípico uma associação frequentada exclusivamente por meninos e meninas ecológicos, identitários, etc., mas não acham que assim contribuem para o processo de gentrificação dessa rua. O mesmo sucede, por exemplo, com a Casa da Achada, que é uma intromissão de intelectuais de classe média num dos bairros mais típicos de Lisboa. Isso, essa gente não considera que seja gentrificação, porque se deve a eles mesmos e não aos turistas. Outro exemplo fascinante é o Bairro Alto. É um dos mais velhos bairros de Lisboa, uma das poucas zonas da cidade que sobreviveu ao grande terramoto de 1755. Colaborei há muitos anos atrás na livraria Contra a Corrente, que ali funcionou e que era a sede do jornal Combate. Nessa época o Bairro Alto era habitado exclusivamente por operários e prostitutas, sendo que estas residiam lá, mas não exerciam lá a actividade. De resto, havia dois ou três pequenos restaurantes e várias tascas, ou seja, botecos. Hoje o Bairro Alto é uma espécie de Vila Madalena. Alguns dos companheiros nossos conhecem. Pois bem, quem fez a gentrificação do Bairro Alto não foram turistas. O processo é muito anterior ao afluxo de turistas verificado nos últimos anos. Essa gentrificação deveu-se à juventude boémia e mais ou menos de esquerda. E precisamente por isso o Bloco e quejandos não incluem agora o Bairro Alto no seu rol de vítimas. Tudo isto tresanda a hipocrisia. Querem que os pobrezinhos vivam nas suas casinhas pobres, coitadinhos, tão típicos quando os vemos de longe.
Lembrei-me agora de uma história antiga. Há muitos anos, em 1984, fui ao Rio de Janeiro para fazer uma série de palestras. Alguém organizou uma festa, para eu conhecer pessoas, e houve uma menina que me abordou para contar que num bairro do Rio, em processo de gentrificação, ela e o seu grupo estavam a organizar uma exposição com fotografias do bairro antigo, para a população ver o que tinha sido destruído. Eu perguntei-lhe se iam expor também fotografias mostrando aquilo que havia sido destruído quando as casas e praças anteriores haviam sido construídas. Ela primeiro não entendeu o que eu estava a dizer, e depois, quando entendeu, não gostou nada. É assim, as cidades são plásticas, e os bairros que estão agora a ser mudados mudaram outras coisas quando foram edificados. O turismo de massas é um dos efeitos de um processo de globalização económica e cultural, o mesmo processo que globaliza o mercado de trabalho.
Ora, esse processo de globalização económica e cultural que levou ao turismo de massas contribuiu muito para mudar a cultura portuguesa, depois de meio século de fascismo e o correspondente isolacionismo. E para mudá-la de uma maneira muito positiva. Não só o turismo de massas, mas igualmente a imigração massiva de pessoas de outros países e com outros hábitos, brasileiros, por exemplo, que fundam escolas de capoeira em lugares inesperados, em aldeias perdidas no interior do país. Outra contribuição profunda e duradoura deve-se ao programa de intercâmbio de estudantes universitários no interior da União Europeia, denominado Erasmus. Quem se opõe hoje ao turismo de massas em Portugal, e essa oposição vem praticamente toda do Bloco de Esquerda e dos morenistas do MAS, pretende reproduzir o ambiente cultural do salazarismo. Desde há muito que eu penso escrever um artigo sobre este último aspecto, que intitularei Salazarismo bairrista, mas, como disse, para já não tenho tempo.
Rodrigo Fonseca
Ficou claro para mim que existem dois processos — que em alguns pontos e lugares se cruzam, certamente, mas que podem ser vistos como dois processos diferentes: a) as lutas à direita e à esquerda contra os turistas e o turismo; e b) os processos de gentrificação, mais amplos. Moradores não tão antigos em bairros que passam por gentrificação (ou simples frequentadores) podem, eventualmente, aderir a posições antituristas em meio a uma subida dos aluguéis e dos preços em geral, e entrando em choque com os interesses dos moradores mais antigos que não pagam aluguel e que se beneficiam no plano imediato dessas valorizações, por serem os prestadores de serviços no bairro, da boca de fumo ao botequim, da coleta de recicláveis às oficinas de eletrônicos e ateliês de arte. É como na crítica que Marx faz aos protecionistas, que querem proteger os trabalhadores dos capitalistas estrangeiros para que eles próprios, os capitalistas nacionais, tenham acesso exclusivo à extorsão (facilitada e ampliada) da sua força produtiva. Se o processo de gentrificação avançar para valer, todos os moradores se lascam, antigos e não tão antigos, mas o exemplo do Dois de Julho em Salvador pode tanto ser o de uma gentrificação incompleta como o de uma gentrificação interrompida e revertida… A questão toda pode passar pelo turismo, como no caso da Lapa do Rio de Janeiro, mas não é tanto uma questão do turismo (interno ou externo) quanto dos processos sociais e econômicos que levam os bairros a serem descobertos ou esquecidos pelos capitalistas.
Lembro de ter reparado certa tensão em torno dos moradores de Havana Vieja, que conheci em 2007. Vi que eram estigmatizados pelo pessoal do PC (que parecia estigmatizar a todos que viviam dos “CUCs”/dólares dos turistas) quando um me disse que eles preferiam viver em casas caindo aos pedaços, em ruínas, mas no coração turístico de Cuba, em vez de irem para casas novas (mas distantes…) que o governo estaria lhes ofertando. Construir casas novas em vez de reformar as antigas foi a senha para o entendimento de que o governo gostaria de retirar aqueles moradores dali, em meio a um cabo de guerra entre a sustentabilidade e a insustentabilidade daquelas condições de moradia precárias, mas provavelmente melhores do que em outro lugar, afinal também no socialismo cubano ninguém vive só de morar.
Por isso mesmo é que a gente sempre vai correr algum risco ao tocar essas questões pelo viés estrito do “turista” (ideologicamente apresentado como “o outro” — quem é o turista?) e do “morador” (onde a identificação ideológica é sempre facilitada — somos todos moradores), em vez de partirmos do trabalhador nas suas relações possíveis com os espaços, suas possibilidades de viajar (mesmo que de vez em quando!) e de se locomover nas cidades no dia a dia, sem gastar 5 horas ou mais indo e voltando do trabalho, e sem ser humilhado e impedido de usufruir dos lazeres que as cidades têm. Não temos pátria, mas temos os bairros que nos sobram (até que os ventos mudem), e por isso mesmo tanto o bairrismo quanto o cosmopolitismo burguês parecem trazer problemas para a prática política.
João Bernardo
Os brasileiros não têm turistas, mas tem megalópolis. Os europeus têm turistas e não têm megalópolis (Londres e Paris são conjuntos de pequeninas cidades, sem que exista propriamente um centro urbano). O processo de gentrification, em Lisboa como noutras cidades europeias, atinge o centro histórico, que é precisamente aquele mais visitado pelos turistas, tanto estrangeiros como nacionais. Mas, independentemente do preço das habitações, eu nunca viveria nos centros históricos, cheios de inconvenientes sob o ponto de vista dos transportes e dos acessos. Os bairros suburbanos são os melhores para morar, têm espaço e todas as lojas necessárias para o dia-a-dia, e o sistema de transportes públicos desloca as pessoas rapidamente para qualquer ponto da cidade. Paris é aqui também uma excepção, já que a cidade foi praticamente toda destruída no século XIX, no Segundo Império e no começo da Terceira República, e reconstruída segundo os planos do barão Haussmann. Por isso é mais problemático falar de gentrification em Paris. Assim, a expressão lançar as pessoas para os subúrbios tem no Brasil um sentido completamente diferente do que tem na Europa. Mas enfim, eu sou um fan das cidades. Não sei o que é «cosmopolitismo burguês», só sei o que é cosmopolitismo, e eu sou, não só um internacionalista, mas um cosmopolita. E, repito o que para mim resume tudo: as cidades são plásticas, são um terreno de choques e confrontos e vaivéns, com a mais maravilhosa das infraestruturas, que são as ruas e avenidas modernas, uma infraestrutura muito simples mas capaz de ao mesmo tempo cumprir dezenas de funções diferentes.
Há muita gente que vê a cidade como uma espécie de antinatural. Pois bem, as cidades são o meu natural. Sempre foram. Se o globo terrestre todo fosse um conjunto de cidades de média dimensão e os produtos da agropecuária fossem produzidos em espaços próprios e intensivos, longe da vista e geridos como indústrias, pois bem, a isso eu chamaria o paraíso. E penso isto desde há muito tempo. Antes de eu ter ouvido falar de ecologia, já eu era antiecológico. As cidades são o triunfo da geometria, por isso eu gosto delas e as defendo e só nelas quero viver.
Bem, há o mar ainda, que é a minha outra grande paixão. Mas o mar é inurbanizável e é geométrico também, é o grande espaço vazio onde tudo pode ser imaginado. Cidades e mar.
A gentrificação — ah, a gentrificação… Creio que fui o primeiro, se não o primeiro, a abordar esse assunto da moda, adornado com uma horrível palavra enfiada na marra na língua portuguesa, aqui no Passa Palavra, em um artigo (de 2011) intitulado “O direito ao centro da cidade”.
O fato de estar na moda, em si, não lhe retira a importância social e política. É imprescindível que se analisem os processos pelos quais a acumulação de capital se vem valendo, em escala inaudita até meados do século XX, da destruição e (re)produção do espaço urbano. Assim como, acima de tudo, é imprescindível examinar e denunciar (e prestar solidariedade a quem dela necessitar, da maneira mais prática possível) as injustiças e barbaridades cometidas contra populações, mormente populações pobres — pois é de um câmbio de classe que se trata. Por óbvio que não se trata (ou não deveria se tratar…) de desejar que os pobres permaneçam vivendo em espaços nem sempre salubres e em condições amiúde precárias, mas em constatar que, na esteira dos processos eufemisticamente chamados de “revitalização”, “requalificação urbana” etc., populações são estigmatizadas, chantageadas e pressionadas a sair, quando não pura e simplesmente expulsas de seus lugares de moradia, para proveito dos suspeitos de sempre e sem que lhes seja oferecida uma verdadeira alternativa. (As proporções de engodo, cooptação, chantagem e ameaça variam de acordo com o país e a época; e mormente se estamos falando de cidades do centro ou da periferia do capitalismo.)
Por outro lado, o fato de estar na moda gera, sim, um aparente (sublinhe-se o “aparente”) paradoxo. Com o modismo acadêmico, em questão de não mais de trinta anos se vêm multiplicando exponencialmente os artigos, os livros, os congressos e tudo o mais que se possa imaginar. A gentrificação é, entre muitas outras coisas, também um vasto nicho no mercado das ideias. Com toda essa quantidade, deveríamos esperar diversidade, profundidade e contundência nos debates, certo? Quem responder “sim”, definitivamente, não sabe o que é o mundo acadêmico (pós-)moderno. Somente os crédulos e os ingênuos podem acreditar que o seu motor, sobretudo nas ciências da sociedade, seja a geração de inovação, muito menos o debate franco e honesto. O motor é a encenação, incontáveis vezes, da mesma coreografia, em que, seguindo uma lógica de “comportamento de manada”, pesquisadores e seus estudantes endossam os “temas certos”, citam as “pessoas certas”, usam as “palavras certas” e publicam nos “lugares certos” — para gáudio das estruturas de poder internas ao mundinho universitário e, acima de tudo, das empresas (editoras etc.) que regiamente lucram, inclusive com os temas “de esquerda”. Como decorrência de tudo isso, é inevitável que uma das primeiras a tombar seja a genuína criatividade; outra que sempre tomba é a profundidade, irmã da honestidade intelectual e inimiga jurada da hipocrisia.
Nem todos, sem dúvida alguma, embarcam em uma interpretação tola (e hipócrita) da pobreza urbana e seus desdobramentos. Há, no meio de tanto joio, trabalhos admiráveis, às vezes originais. Mas há, sim — e não somente em meio aos estudos sobre gentrificação — uma “estetização da pobreza” que me causa aflição e desânimo. Sobre isso, me permito repetir o que escrevi, em outro artigo publicado também neste Passa Palavra (“Duas versões do espírito libertário: Um abismo intransponível?”), alguns anos atrás:
“Atualmente, libertários de figurino ‘pós-moderno’, alegadamente em nome do respeito à dignidade dos pobres, como que implícita ou explicitamente elogiam uma certa ‘estética da pobreza’ e muitas vezes se mostram orgulhosamente iconoclastas. Não contentes em relativizar o pretenso sentido absoluto de supostos cânones literários, musicais etc. (relativização que me parece necessária e justificada), costumam ir além e desdenhar ou desconfiar em sentido absolutizante da cultura historicamente consumida e referendada pelas elites. (…) Em vez de combater a pobreza e universalizar os benefícios do ‘progresso’, propõem, em seus discursos, ‘respeitá-la’ (evitando ou recusando-se a considerar a habitação e o habitat em espaços segregados como um problema). Passa-se, com isso, a impressão de que denunciar as privações que caracterizam a pobreza pudesse atentar contra a dignidade dos pobres, como se combater a pobreza e combater os pobres (física ou simbolicamente) fossem uma e a mesma coisa. (E, no entanto, interessantemente, se misturam com as ‘massas’ de trabalhadores e trabalhadoras pobres muito menos do que os velhos anarquistas faziam. Aliás, não seria, em grande parte, por isso mesmo?…)”
Acrescente-se, na citação acima, “neomarxistas” a “libertários” e “anarquistas”, e teremos uma melhor dimensão do tamanho do problema.
Morei em Lisboa nos últimos quatro anos e achei que era o único que me horrorizava quando lia o slogan “Lisboa para os lisboetas”, mas vejo que o João Bernardo colocou bem as contradições deste e de outros movimentos essencialmente xenófobos e elitistas. Alguém no Brasil concordaria com o slogan “Ipanema para os Ipanemenses”? Ou “Os jardins para os paulistanos quatrocentões”? Em que mundo vivem os que acham que o privilégio do nascimento (na Vieira Souto, na Alameda Santos ou no Bairro Alto) deve criar direitos eternos?
Vale dizer que muitos lisboetas frequentam as praias de uma outra cidade, Almada, e que todos – TODOS – os articulistas que entoam o ramerrão turismófobo são, eles também, turistas. Viajam a passeio (e mesmo quando é a trabalho, jornalistas e acadêmicos dão uma passeadinha), muitos já moraram no exterior e no fundo expressam somente o incômodo ao ver a classe média européia viajando barato, entre a Ryan Air e o AirBnb, e de ver turistas chineses e brasileiros falando alto nas vielas do centro. Vá lá que todos nós gostaríamos de ser os únicos a desfrutar da ambiência única de Paris (e das vielas de Veneza, e das muralhas de Dubrovnik), mas transformar isto em bandeira partidária – da esquerda! – é o cúmulo do egoísmo.
Sejamos francos: a turismofobia é elitista, fruto do inconformismo de uma certa esquerda esnobe que se vê como a aristocracia do pensamento, idealiza os pobres urbanos e gostaria de vê-los assoviando fados, pendurando roupas nos varais das ladeiras da Alfama e da Madragoa, morando nos sobrados sem elevador, gelados no inverno e abafados no verão, como parte da paisagem da cidade. Mas não como iguais. Enfim, o mesmo afeto que as pessoas têm pelos animais do zoológico.
Esta gente nega a agência de uma parcela expressiva da população de Lisboa, lamentando que a valorização do solo urbano tenha estimulado muitos a vender ou alugar as residências onde moravam. Mas na cidade capitalista, onde espaço é mercadoria, qual o motivo para se negar aos velhinhos, aos pobres, o direito de disporem da sua propriedade? Algum intelectual se sente “expulso” quando alguém oferece pelo apartamento onde mora o dobro do que ele valia há 5 anos atrás? Gente que recebe aposentadorias pequenas, gente que conta centavos, de repente vê a possibilidade de trocar de carro, ou visitar o filho emigrado, de ter uma vida mais folgada, e tudo isso se mudando do centro histórico para um lugar a 20 minutos de metrô. Qual é o crime?
E nem me venham falar em “gentrificação”, termo tão gasto que significa tudo – e nada – e não serve, nem de longe, para caracterizar os processos urbanos que afetam Lisboa há décadas. A cidade vem perdendo habitantes há muito tempo, por diversos motivos, e a vaga recente de turismo serviu para reverter o esvaziamento e deterioração física do tecido urbano do centro, que parecia inexorável. Isto beneficia os moradores antigos e o comércio local.
Esgrimindo preconceitos baseados na ignorância das estatísticas (não vou me alongar, mas a quantidade de “moradores expulsos” e “estrangeiros com vistos gold” é irrelevante para o mercado imobiliário de Lisboa) e interpretando o Direito à Cidade como o direito de quem nasceu num bairro (e os seus descendentes) de continuar morando lá para sempre, como se fosse um castelo do século XVIII, os turismófobos criaram um ambiente de hostilidade que alimenta a xenofobia. Que a esquerda portuguesa e européia tenha embarcado nesta onda me parece de uma ingenuidade criminosa, pois a estigmatização dos estrangeiros (turistas ou imigrantes, tanto faz) é historicamente a raison d’être da direita.
Em Lisboa ou alhures, a principal perspectiva, penso eu, não seria a gentrificação, nem mesmo a dicotomia nacionalistas x turistas, mas a produção do trabalhador:
E, assim, os turistas das excursões e das outras modalidades de vilegiatura concentracionária são convertidos em mero objecto de produção. Nos ócios, tal como na escola, os trabalhadores são produzidos como mercadorias. Mais do que um mero controle ideológico, trata-se já de uma verdadeira produção do trabalhador no interior de um dado quadro ideológico (BERNARDO, João. Transnacionalização do capital e fragmentação dos trabalhadores: ainda há lugar para os sindicatos? São Paulo: Boitempo Editorial, 2000, p. 66).
E se fôssemos escolher uma outra perspectiva para a crítica, ainda outra seria a perspectiva mais urgente:
“Com afroturismo, ela busca se reconhecer em todos os lugares aonde vai”
“(…) Durante as viagens, Luciana começou a aprender muito mais sobre outros povos e pessoas, mas não esperava ter grandes encontros consigo mesma e sua ancestralidade. Aconteceu. “Percebi que o corpo negro já tem uma característica do movimento, da mudança. Afinal, a gente já é esse corpo que viaja, que migra. Esse corpo que explora novos territórios, acho que está no nosso DNA”, diz…. (disponível em https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2019/11/09/com-afroturismo-ela-busca-se-reconhecer-em-todos-os-lugares-aonde-vai.htm)
Enfim, o que muitas vezes se evidencia, nem sempre revela a essência dos processos materiais e históricos a produzir o trabalhador como trabalhador…