Por Miguel Serras Pereira
Num breve escrito, em 1942, em plena Segunda Guerra Mundial, George Orwell recordava assim o seu encontro, ao apresentar-se na milícia do POUM em que se alistara para combater o fascismo, com um miliciano italiano, cuja figura já evocara na sua Homenagem à Catalunha[1]:
A outra recordação é do miliciano italiano que apertou minha mão na sala de guarda, no dia em que ingressei na milícia. Escrevi acerca desse homem no início de meu livro sobre a guerra civil espanhola. E não quero repetir o que disse ali. Quando lembro — e com que nitidez! — de seu uniforme surrado e rosto feroz, patético e inocente, parecem diluir-se todas as questões complexas da guerra, e vejo com clareza que não havia, ao menos, dúvida alguma sobre quem estava no lado certo. A despeito da política das potências e das mentiras jornalísticas, a questão central da guerra estava na tentativa feita por gente como ele por conquistar a vida decente que sabiam ser seu direito. É difícil pensar no fim provável desse homem, sem sentir diversos ressaibos amargos. Tendo-o conhecido no Quartel Lênin, tratava-se provavelmente de um trotskista ou anarquista, e nas condições peculiares da época, quando gente assim não é morta pela Gestapo, termina assassinada pela G.P.U. Mas isso não afeta as questões de longo prazo. O rosto daquele homem, que vi por um minuto ou dois, apenas, continua comigo como lembrete visual do que estava realmente em jogo naquela guerra. Para mim ele simboliza a flor da classe trabalhadora européia, perseguida pela polícia de todos os países, a gente que enchia as valas comuns de sepultamento em massa nos campos de batalha da Espanha e que está agora, na casa de alguns milhões, apodrecendo nos campos de trabalhos forçados.
Pois bem, se me pedissem para resumir as razões — as razões maiores — que me levam a solidarizar-me com a luta que continua na Catalunha contra o governo e a constituição do Reino de Espanha, mas sem por isso deixar de rejeitar o nacionalismo independentista, diria que essas razões se situam na senda e seguem, no essencial, o exemplo do internacionalismo que atravessa, inspira toda a aventura de Orwell, do mesmo modo que é a sua conclusão necessária, tal como decorre de tudo o que ele descreve — e pensa enquanto age — na sua Homenagem à Catalunha e outros escritos mais breves, entre os quais Looking Back on the Spanish War, aqui citado de início[2], é, desde logo, um testemunho incontornável. Dito isto, são também a senda e o exemplo de Orwell que gloso neste poema que há mais de trinta anos escrevi, e publiquei pela primeira vez, e que hoje, com os acontecimentos na Catalunha como fundo, quero aqui retomar.
Homenagem a George Orwell
Deixa-me buscar outras flores e outra espanha
o despertar na carne de outra água
outra ave mais claramente desprendida
da febre da tua fronte submersa
atravessando devagar o nevoeiro em sangue
dos corredores da morte e da infância
O tempo faltou ao nosso encontro a meio da ponte
e só um mar de enxofre uma vez mais vem apagar
as fogueiras dos últimos náufragos do dia
Dom Quixote partiu contigo para as montanhas
e já nenhum cavalo aparece no horizonte
para de súbito rasgar no olhar dos mortos
a bem-amada lua nova da guerrilha
Deixa-me atravessar a seara calcinada
e procurar no rasto dos lobos e dos loucos
as lágrimas e as armas impossíveis
da primeira cidade libertada
Deixa-me buscar outro nome e outro outono
e esperar até que a noite venha
poisar na solidão da tua fronte
os seus últimos pássaros de fogo sobre a neve
os últimos primeiros pássaros de novo
em busca de outra morte e outra espanha
Notas
[1] Título original: Homage to Catalonia. O livro publicado em 1938 tem diversas traduções. Citarei apenas uma, em português do Brasil e de acesso livre via Internet, que integra também, no mesmo volume, o escrito de 1942, Looking Back on the Spanish War: George Orwell, Lutando na Espanha. Homenagem à Catalunha; Recordando a Guerra Civil Espanhola, e Outros Escritos, eBookLibris, Projeto Periferia, 2018.
[2] Ver nota anterior.
Miguel,
Tinha a intenção de escrever um comentário crítico ao teu artigo, acabei por não o fazer. Mas agora, que estou mergulhado na revisão de um livro meu, deparo com uma nota de rodapé que diz o que eu desejava ter dito:
A tese que confundia a coragem política com o mito da virilidade foi persistente na esquerda, e no Outono de 1940 escreveu George Orwell em «My Country Right or Left», a propósito da atitude a tomar na guerra mundial: «São exactamente aquelas pessoas cujos corações nunca pulsaram de entusiasmo à vista de uma bandeira nacional que recuarão perante a revolução quando o momento chegar». Aliás, todo o artigo constitui uma apologia do nacionalismo enquanto mito mobilizador, num verdadeiro sentido soreliano. Este artigo vem reproduzido em George Orwell, My Country Right or Left, and other Selected Essays and Journalism, Londres: The Folio Society, 1998, págs. 197-202, e a passagem citada encontra-se na pág. 202 (sub. orig.).
Um fato notável na história de Orwell é que inicialmente ele foi policial. Depois fez uma história como revolucionário.
No meu comentário pretendi chamar a atenção para o perigo resultante da convergência, ou do cruzamento, das lutas sociais com os conflitos nacionais, para o risco de pensar as classes no quadro da nação. Foi por isso que evoquei aquela passagem de Orwell
Mas Orwell não foi um policial — ou polícia, como se diz em Portugal — no sentido comum do termo. Foi um funcionário da administração colonial britânica na Birmânia com funções de oficial na polícia. Mais interessante, na perspectiva que me interessou aqui considerar, é a posição adoptada por ele durante a segunda guerra mundial, sumariamente indicada na citação a que procedi. E, já agora, mais interessante ainda é o facto de filósofos, juristas e historiadores da Escola de Frankfurt, exilados nos Estados Unidos, terem colaborado durante a guerra nos serviços de análise e avaliação das informações do Office of Strategic Services, os serviços secretos dos Estados Unidos, precursor da CIA. Os relatórios que eles elaboraram encontram-se reunidos em Raffaele Laudani (org.) Secret Reports on Nazi Germany. The Frankfurt School Contribution to the War Effort, Princeton, Nova Jersey e Oxford: Princeton University Press, 2013. O livro está disponível no Scrbd. Aliás, Herbert Marcuse continuou esta colaboração depois da derrota do Terceiro Reich, durante a Guerra Fria, já não no quadro da luta contra o nazismo, mas da luta contra o stalinismo.
A realidade é muito complicada, e coisas que a posteriori parecem claras não o eram a priori. Como será que amanhã se verá o hoje?
João Bernardo. João, sim, é verdade que, em 1940 , e não só, há essa sombra do nacionalismo e da “virilidade” em Orwell. Mas nunca domina a ponto de o aproximar do fascismo, creio eu. Também no ensaio O Leão e o Unicórnio, por exemplo, Orwell tenta mostrar que a revolução na Grã-Bretanha deveria manter ou ter em conta, não talvez o “espírito das leis”, mas qualquer coisa que no espírito dos usos e costumes se ligava a um modo de vida, que, desligado da dominação de classe e da bota de ferro do capitalismo, teria o seu lugar no socialismo, ou, até mesmo, poderia abrir-lhe caminho. Enfim,as coisas são sempre bastante complexas, como tu próprio dizes no teu outro comentário. E Orwell, até mesmo em plena guerra, aderindo plenamente ao esforço de guerra britânico, etc., nunca deixa de sustentar posições anticoloniais, ou de defender a ideia de que, no fim da guerra, os trabalhadores deviam permanecer na posse das armas (“guardá-las em casa”) que lhes tinham sido postas nas mãos para efeitos de defesa nacional, usando-as doravante contra o “inimigo interno” — ou de classe.
Em suma, independentemente de uma ou outra divergência entre as nossas leituras deste ou daquele momento de Orwell, quero terminar esta resposta, citando e subscrevendo o que tu próprio escreveste, há já algum tempo, sobre ele:
“George Orwell tinha uma franqueza rara entre a esquerda militante. Dizia o que via, mesmo que isso pusesse em causa o que até então havia pensado, e enquanto outros procuraram disfarçar os seus ziguezagues políticos ao longo das décadas de 1930 e 1940, ele deixou sempre claras as suas mudanças de orientação. Caracterizava-o também um agudo poder de observação, que o elevou ao nível de alguns grandes sociólogos para quem os fundamentos do rigor científico residiam no olhar próprio, e não em inquéritos inspirados pela prospecção de mercado. A clivagem entre republicanos e fascistas era evidente. Muitíssimo menos evidente era a clivagem interna no campo republicano, opondo de um lado numerosos trabalhadores, que pretendiam converter a guerra civil numa revolução social, e do outro lado o Partido Comunista e a burocracia dos sindicatos anarquistas, para quem se tratava em primeiro lugar de impedir que a guerra civil comprometesse as instituições políticas e económicas do Estado capitalista. Conseguindo ter desde cedo uma noção clara deste dilema, Orwell pôde analisar lucidamente as peripécias da guerra civil”.
Miguel,
Além da honestidade intelectual e da ausência de hipocrisia ideológica, outra das qualidades que aprecio em Orwell, e igualmente rara numa certa esquerda, é a sua especial preocupação com as pessoas comuns. É mais uma história de anónimos do que de celebridades que ele nos apresenta. Apesar de 1984 se contar entre os seus livros mais lidos, nem sempre se presta atenção a um aspecto fundamental. O totalitarismo que ele descreve reina apenas, ou sobretudo, na elite dominante. Lá fora, do outro lado da fronteira social, apercebemo-nos de personagens que conseguem manter um grau de liberdade, porque se alhearam da política — daquela política — e se concentraram na vida privada. Quando Hitler considerava que «para dirigir as massas tenho de arrancá-las à apatia. As massas só se deixam conduzir quando estão fanatizadas. Apáticas e amorfas, as massas representam o maior dos perigos para qualquer comunidade política. A apatia constitui uma das formas de defesa das massas. É um refúgio provisório, um entorpecimento de forças que de súbito explodirão em acções e reacções inesperadas», e quando outro demagogo fascista, Juan Perón, dizia que «a massa mais perigosa é a massa inorgânica. A experiência moderna demonstra que as massas operárias melhor organizadas são, sem dúvida, as que podem ser dirigidas e melhor conduzidas em todos os domínios» — eles estavam a mostrar que Orwell compreendera a forma mais profunda de resistência ao fascismo, a do anonimato das pessoas comuns. Seria bom que a esquerda, aquilo que hoje resta da esquerda, o compreendesse também. Mas é pedir demais.
João, assino por baixo. Sim, o que Orwell compreendeu foi que é à partir da experiência e das “razões” das pessoas comuns, ainda que reflectidas e elaboradas, “trabalhadas” e reformuladas por elas, que podemos e devemos procurar alternativas à dominação de classe. À alternativa que vislumbrava, ele chamou “socialismo democrático”; tu tens-lhe chamado “democracia revolucionária”; eu, “autonomia democrática” enquanto “cidadania governante”, etc., etc. Estas e outras posições têm em comum uma posição distintiva fundamental: qualquer anticapitalismo não-democráticao — ou, por maioria de razão, antidemocrático — tenderá a reciclar ou reforçar o poder hierárquco do capital e do Estado (a distinção estrutural e permanente entre governantes e governados que é o traço fundamental da dominação de classe), ao mesmo tempo que mostram a inconsequência ou mistificação dos que se reivindicam da democracia sem recusar a divisão (política) do trabalho capitalista e/ou a divisão ( classista) do trabalho político própria do capitalismo.
Eu aprendi que toda obra deve ser comparada com a biografia do autor. Sou muito fã do Orwell, considero ele um dos maiores, teve uma vida incrivel. Revolucionário de ação e também ótimo analista.
Particularmente, fico sempre intrigado com pessoas que poderiam ter uma grande posição e optam pela luta social, ir contra o sistema. Mas também aprendi que sempre há alguma coisa pessoal profunda que afeta a alma dessas pessoas e as fazem desejar justiça social ao invés de ascensão pessoal.
Fico pensando se ter crescido com um pai que vivia distante para trabalhar não foi no fundo o que deu a Orwell essa sensibilidade.
Outra coisa que intriga nele: apesar de do ateísmo, optou por um funeral anglicano. E no seu túmulo deixou o nome de nascimento, ao invés de Orwell.
Fiquei curioso. Quem sabe um dia eu conheça melhor a vida dele.
Sobre os policiais, a maior parte deles passa o dia resolvendo briga de casal, de vizinhos, de escola, de bar, de transito e furtos e roubos de pobre contra pobre. O grosso das ocorrências é isso. E a verdade é que não sabemos como se comportarao num dia em que houver convulsão social de verdade. Em São Paulo você encontra muitíssimos mais casos de atrocidades cometidas por seguranças de mercado do que por policiais, embora exista sim uma minoria truculenta. Assim, não tem nada de mais que o revolucionário Orwell tenha sido da polícia.
E tenha desejado um funeral religioso.
Espírita Comunista, deixando de parte outros aspectos deste seu comentário, gostaria de lhe recomendar, para o caso de ainda não a conhecer, a excelente biografia que Bernard Crick escreveu de Orwell: Bernard Crick, George Orweel: a Life (1980; edição revista e actualizada em 1992). Cito a edição inglesa, mas existem traduções noutras línguas — nomeadamente em espanhol e francês. Saudações cordiais.