Por Passa Palavra
1. Narrativas e narrativas
O lítio. Ouro branco. Petróleo. Onde há petróleo ou recursos naturais, há golpe estrangeiro. Essa narrativa a respeito do golpe militar na Bolívia tem circulado como explicação mais profunda sobre o processo político que lá ocorre tanto no Brasil quanto na esquerda internacional que se pretende solidária ao “povo” boliviano. Em resumo, Evo Morales teria caído por ter nacionalizado um valioso recurso natural alvo da ganância de potências estrangeiras — de preferência, dos Estados Unidos. Isso seria confirmado pelo rápido apoio do presidente americano Donald Trump aos recém-proclamados governantes (aqui em inglês e aqui em português). Na sua resistência em defesa dos recursos naturais bolivianos, Morales e o MAS seriam vítimas de uma investida estrangeira. A narrativa fecha. Tudo parece fazer sentido no caótico cenário boliviano.
Só tem um problema: a narrativa choca-se com a realidade. Evo não estava sendo contra a exploração estrangeira do lítio boliviano. Inclusive, Evo não era visto com tanta antipatia quanto dizem pelo empresariado externo ao país.
Vejam: o Washington Post em matéria deste mesmo ano, um veículo insuspeito de simpatias ao socialismo do século XXI, elogiava o governo de Evo por sua mobilidade social ascendente e colocava o seu governo como exemplo de que um governo de esquerda não necessariamente resultaria em uma Venezuela. Disse Morales ao jornal: “O Estado não é capaz de resolver todos os problemas. O Estado como cabeça do investimento, acompanhada pelo setor privado — esse é o nosso modelo de socialismo”. O governo foi elogiado pela sua melhora na posição do ranking internacional de corrupção, pelos investimentos em infraestrutura e pela redução da pobreza.
Será mesmo que o governo caiu para uma espécie de rapina imperialista?
2. A questão do lítio: caiu pela nação?
A postura de Evo em relação ao setor privado não foi muito diferente no caso das reservas de lítio encontradas em Potosí. O presidente da empresa estatal boliviana de mineração, a Yacimientos de Litio Bolivianos (YLB), de acordo com a Telesur, anunciou em junho de 2019 um “vantajoso” acordo com a empresa alemã ACI Systems. A parceria seria de 51% da estatal e 49% da parceira alemã.
A questão não é pacífica entre o governo e a população de Potosi há algum tempo. Em 2015, uma greve de 17 dias em Potosí resultou em ataques à embaixada da Alemanha. Na época os moradores se queixavam da ausência de investimentos de infraestrutura prometidos em contrapartida da mineração.
Existe uma disputa grande entre as cooperativas privadas de mineiros com o estado boliviano em torno dos termos de exploração dos recursos do país, os termos de parceria e trabalho da principal estatal de mineração e as parcerias com empresas estrangerias. Em 2016, uma disputa a respeito do direito de as cooperativas de mineiros conseguirem autorizações para alugarem suas concessões de mineração a empresas privadas ou estrangeiras resultou no sequestro e assassinato de Rodolfo Illanes, vice-ministro do interior do governo do MAS. Esse momento delicado demonstra que não estamos tratando simplesmente do conflito entre trabalhadores das minas e as empresas estrangeiras que querem rapinar os recursos do país — em que um governo de esquerda protege o povo contra as gananciosas empresas estrangeiras.
Voltando ao lítio e a Potosí, de acordo com uma matéria que celebrou o acordo e reportou a tensão em torno da questão:
“A joint venture brinda a Alemanha e a Europa com acesso direto à matéria-prima do lítio”, admitiu [Wolfgang] Schmutz [diretor-executivo da ACI Systems]. Mas a Bolívia, por sua vez, tem acesso à tecnologia para a extração e industrialização dessa matéria-prima. Segundo Schmutz, parte essencial numa joint venture estabelece que “dois parceiros criam o que um sozinho não consegue”.
O acordo foi comemorado pela Telesur como uma possibilidade de substituição do papel de exportador de matérias-primas da Bolívia para produtor de produtos industrializados. Por todos esses motivos, o acordo com a empresa alemã foi buscado e defendido até o fim pelo governo do MAS.
3. De que reclamavam os moradores de Potosí antes da queda de Morales?
As queixas dos contrários à instalação da ACI Systemas em Potosi eram várias.
Para resumir, o Comitê Cívico de Potosi (COMCIPO) se queixou de que a empresa sequer tinha dinheiro, pois tinha ido buscar financiamento para a empreitada. A queixa essencial, no entanto, tratava dos royalties. A legislação boliviana de metalurgia estabelece um royalty de 3% em favor da região pela exploração de carbonato de lítio.
O presidente do COMCIPO, Marco Pumari, queixava-se de que a região estava sendo deixada de fora por 70 anos. A disputa pelos royalties era a demanda mais visível da greve cívica que movimentava Potosí antes da reeleição interrompida de Morales.
4. O acordo foi revogado — uma vitória da nação?
A população local de Potosí — empresários, cooperativas, mineiros — contestava o acordo com a ACI Systems. À greve de fome do Comitê Cívico se somaram bloqueios de rua e protestos. Evo Morales e o MAS defendiam essa parceria.
Quando o acordo sobre o lítio foi revogado logo após a eleição, em meio à polêmica sobre a questão da auditoria dos resultados, a reação do governador de Potosí, Carlos Cejas, foi de acusar uma conspiração de “agitadores de dentro e fora de seu estado que estariam tentando prejudicar o desenvolvimento da região”. Morales dizia que os protestos contra a parceria eram “orquestrados pela oposição com o objetivo de prejudicar seu governo”.
A ligação do Comitê Cívico de Potosí com a oposição, pelo menos, é inconteste. Marco Pumari foi visto ao lado de Carlos Camacho, liderança expressiva da oposição a Morales, no momento da proposição de um ‘conselho de notáveis’. Mas o fato é que a oposição capitalizou uma mobilização contra a presença de uma empresa estrangeira na mineração boliviana que estava sendo proposta pelo MAS. Ao contrário do que fazem supor as notícias que citamos no início da reportagem, era muito mais interessante para as empresas inseridas nesse setor que o governo de Morales continuasse estável e com condições de construir uma parceria sólida. A derrota de Morales foi também a derrota do seu projeto de parceria com outros países para a mineração do lítio.
Cesar Navarro, Ministro da Mineração responsável pelo acordo com a ACI Systems, foi a primeira baixa resultante do movimento que deu na queda de Evo e continua até hoje disputando as rédeas do país. Ele renunciou após o incêndio da sua casa e ameaças de violência contra seus familiares.
O senador do MAS de Potosí, René Joaquino, também renunciou. Juan Carlos Sejas, governador do estado, também renunciou em conjunto com Willians Cervantes, prefeito do muncípio de Potosí. O então presidente da Câmara dos Deputados, Victor Borda, também renunciou após ataques a sua residência em… Potosí.
5. A chave do labirinto — seria Morales uma vítima de um nacionalismo mais radical que o seu?
Esta província em que foi derrotado o governo do socialismo do século XXI, defensor da whipala e do orgulho plurinacional boliviano, revelou-se central para o desmonte do regime vigente no país. Foi ali que esse governo foi derrotado ao tentar defender a entrada de uma alemã na mineração do lítio boliviano. Talvez o problema do nacionalismo seja de fato uma chave para entender como essa ultradireita foi capaz de aproveitar o momento político para entrar no poder — mas em um sentido oposto do que quer acreditar boa parte da esquerda brasileira e do resto do mundo.
Mas na descrição desses acontecimentos a questão eram os royalties e não o acordo em si com uma empresa estrangeira.
Por outro lado li em algum lugar que o líder golpista de extrema-direita, Camacho, teria ligações com exploração de gás, e aí teria algum interesse…
Se no Brasil o golpe de 2016 foi resultado de uma convergência de interesses e atores, na Bolívia certamente nao foi diferente nesse sentido.
Substiutir a luta de classes em termos de nacionalismo contra globalismo é reacionário independente da perspectiva em que se coloque. Este texto me lembra a briga entre PSOL e PT na disputa pelo espaço de esquerda. Não me assusta que ainda usem por aqui o termo esquerda com tanta desenvoltura, pois não estão conseguindo se libertar de concepções do lado esquerdo do capital. Há luta de classes na Bolívia hoje mas aqui prevalece a luta entre a direita e esquerda. Fico deveras chateado de ver uma abordagem tão pobre e desprovida de conteúdo revolucionário, pior, que pode servir mais aos recionários que aqueles que ainda podem se interessar pela mutação da sociedade em direção ao fim da exploração capitalista.
Complicada essas análises que colocam o golpe na conta de quem o sofreu, e não daqueles que o aplicam. As situações descritas são interessantes e chave pra entender o projeto de evo e avaliar qualitativsmente seu dito socialismo mas também é uma perspectiva fatalista como impossível de generalizar para outros países, se assim fosse, e se existisse um “nacionalismo mais radical”, quantos golpes o pt já não teria tomado? A ideia de colocae o golpe na conta de Evo obscurece qualquer análise se conjuntura possível, colocando um véu sobre quem são os atores so imperialismo que querem disputar a América latina contra a classe trabalhadora. Além disso que prijeto de nacionalismo radical é esse que se aproveita de uma organização internacional, OAE, para validar suas ações? E que arranca as próprias bandeiras do uniforme?
Ao que me parece o autor do texto está tentando trazer elementos para pensarmos o fenômeno de forma mais ampla e sem o maniqueísmo das teorias da conspiração. Infelizmente muitos dos que se enquadram na esquerda ainda estão presos na análise já caduca do imperialismo na América Latina, o Imperialismo não funciona mais com já funcionou no século XX e da mesma forma que os militares ainda estão encalacrados na doutrina de segurança nacional e no combate ao inimigo comunista, muitos da esquerda estão presos nas narrativas antigas sobre as relações capitalistas e as nações. Pensar um fenômeno histórico em termos de culpados e inocentes é bem simplório, não vejo o texto querendo culpar os que sofreram o golpe como os causadores do golpe. Certamente o que se deve discutir com afinco e sem teorias da conspiração sobre a América Latina, é o peso dos nosso processo internos, das disputas e das correlações de força internamente. Fato é que Evo rompe de certa forma o pacto com o povo ao atuar repressivamente por diversos momentos durante seu governo. Porque ele não instituiu um exército profissional para as nações indígenas? Se a “cadela do fascismo está sempre no cio”, de que maneira o governo Evo, na sua relação repressiva com os movimentos populares poderia ter combatido o fortalecimento da narrativa ultra-conservadora? Certamente ao se distanciar das demandas populares, ou tutelar os movimentos e não permitir que essas nações indígenas pudessem se armar e defender como uma nação de fato, Evo caminhou para um limbo politico que os acordos e associações já não poderiam sustentar. A esquerda precisa realmente entrar no jogo da democracia, quem ficar na marra no poder, vai perder legitimidade e vai abrir caminho para o fascismo. Aprendemos essa lição. Espero sinceramente que um dia a esquerda institucional e partidária entenda que mais vale o domínio da narrativa política na busca por hegemonia, do que estar a qualquer custo no poder, no governo. Evo perdeu o governo, mas antes já havia perdido o domínio sobre a narrativa política na sociedade, o conflito de Potosí mostra bem isto. Quando temos dificuldade ao analisar um fato histórico e político como este, nos termos de governo-oposição, e/ou esquerda-direita, é porque justamente quem tinha o domínio da narrativa, perdeu esse domínio.