Por Raquel Azevedo
“Temos de transformar o aparelho de Estado absolutista de Thomas Hobbes, moldado para investir na infraestrutura material, através de estatais e bancos públicos, no Estado de Jean-Jacques Rousseau, que possa atender às legítimas aspirações sociais de uma democracia emergente, através da descentralização dos recursos para investimentos em capital humano: saúde e educação”. É curiosamente como um iluminista diante do absolutismo decadente que o ministro da Economia, Paulo Guedes, começou a apresentar, na entrevista à Folha no início de novembro, o conjunto de medidas que pretendia enviar ao Congresso com a aprovação da reforma da Previdência. Embora o bolsonarismo se assemelhe mais às guerras religiosas a que o Estado hobbesiano procurava pôr fim, é com a tradição liberal que queria alargar o foro interior privado ao qual o Estado havia confinado seus súditos que Guedes se identifica. É comum que suas declarações não passem de uma tentativa de empurrar moeda falsa na circulação, mas talvez seja um exercício interessante levar essa a sério. Não tanto pelo fiador de milicianos, mas pelo lugar do discurso liberal no atual estado de coisas.
A entrevista repercutiu, na verdade, por conta da insistente defesa do regime de capitalização mesmo depois da derrota no Congresso.
Capitalização significa que, em vez de o teu dinheiro ir para a Jorgina [Jorgina de Freitas, que comandou esquema de corrupção no INSS] ou ser queimado [alusão à destruição pela inflação], ele é acumulado. Nossa proposta era a de capitalização com garantia de salário mínimo. Renda mínima garantida. Os ricos acumulam. Por que os servidores gostam dos fundos de capitalização? Porque capitalizam para eles. Por que a população não pode ter? Só quem está no Petros, Previ, Funcef [maiores fundos de pensão de servidores de estatais] pode ter? O pobrezinho não pode? […] Rejeitaram [o regime de capitalização], então não há o que fazer. Mas, com ele, você colocaria o Brasil para crescer, aumentaria taxa de poupança, educaria financeiramente famílias mais pobres. Um menino, desde cedo, sabe que ele é um ser de responsabilidade quando tem de poupar. Os ricos capitalizam seus recursos. Os pobres consomem tudo.
Uma breve consulta aos dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE nos fornece uma resposta rápida a respeito da razão pela qual os pobres não poupam. Segundo os dados referentes ao biênio 2017-2018, as famílias que recebem até dois salários mínimos destinam 70,3% de sua renda para despesas com alimentação, habitação e transporte. Essa distribuição cai para 59,2% entre as famílias com renda de até dez salários mínimos. Ainda que a estrutura das despesas das famílias e a diferença na propensão a consumir possa ajudar a explicar os limites do crescimento econômico baseado na expansão do consumo, ainda estamos diante das chamadas robinsonadas da economia que, seguindo parte do discurso do liberalismo político, dividem a sociedade entre poupadores e não poupadores. Nos interessa aqui investigar como o autoritarismo pode conviver com ideias difusas do liberalismo político.
A Pesquisa de Orçamentos Familiares também mostra que 27,3% do rendimento das famílias que ganham até dois salários mínimos provém de seu trabalho como empregados, 13,3% de seu trabalho por conta própria, 15,7% de pensão ou aposentadoria do INSS e 7,6% de programas sociais federais. Houve uma diminuição da porção do rendimento proveniente do trabalho como empregados quando os números são comparados à pesquisa anterior. No biênio 2008-2009, essa parcela correspondia a 31,5%. O que chama a atenção em ambas as pesquisas é que em nenhuma faixa de renda o trabalho por conta própria tem uma contribuição tão significativa quanto entre as famílias que ganham até dois salários mínimos. A participação do trabalho por conta própria é decrescente entre as demais faixas. Além disso, é entre as famílias que recebem até dois salários mínimos que está a menor participação dos empregados na origem da renda. Os rendimentos não monetários também têm maior peso nessa faixa de renda do que nas demais, chegando a 28%.
O trabalho por conta própria e os rendimentos não monetários estão geralmente aquém da carteira de trabalho herdada de Vargas – enquanto a verde amarela sonhada por Guedes institucionaliza a precarização. Mas o que parece ser o centro da questão é que essa nova configuração do trabalho se identifica cada vez mais, a um só tempo, com uma nebulosa sensação de ausência de patrão e com um prolongamento da jornada de trabalho. Numa das passagens mais difíceis d’O Capital, Marx diz que na sociedade capitalista as coisas aparecem como realmente são. As pessoas não estão erradas em pensarem que são independentes, embora trabalhem cada vez mais. É sua dependência que aparece como algo fantasmagórico. Por exemplo, quando o céu de São Paulo escurece no meio da tarde por conta das queimadas na Amazônia. Pareceu filme de horror, dizem. Sou livre, faço o meu horário, mas passo parte crescente desse meu tempo no trânsito. Filmes de horror possuem a estrutura adequada para esse tipo de dominação em que não é um soberano – Guedes estava certo sem querer –, mas uma forma que se impõe sobre nossas cabeças.
O liberalismo não é uma miragem, é o aspecto mais concreto da vida das pessoas. É o caráter social da produção que tem o estatuto de fantasma.
Eis que o ideologema retro-iluminista do altelectuin plantonista ministerial é mera apologia do obscurantismo clericalmiliciano, que o JB tempestivamente alcunhou de fascismo pós-fascista.