Por Marcelo Lopes de Souza
Em nenhum outro lugar como uma grande cidade ou metrópole, por exemplo no Brasil atual, vemos tanta proliferação de clamores por afirmação identitária; ao mesmo tempo, as desigualdades de todos os tipos não parecem diminuir (a não ser, em certos casos, superficial e parcialmente). Pelo contrário. Em meio a tudo isso, o que significaria bater-se pela igualdade, sem a qual se esvazia a luta por justiça?
Gostaria de começar recordando o famoso princípio aristotélico, de acordo com o qual fazer justiça consiste em “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais”. (Aos desavisados que, torturando a língua, acham que “desigualdade” sempre evoca algo negativo, ao passo que “diferença” remeteria a algo positivo, esclareço que “desigualdade”, aqui, se refere a toda e qualquer diferença, ou seja, falta de igualdade – de qualquer ordem, boa ou má. O fato de Aristóteles ter justificado a escravidão e o status de não cidadãs das mulheres na pólis é decerto deplorável aos nossos olhos, mas em nada invalida o referido princípio, muito menos o meu argumento.) Exemplo: tornar acessíveis os equipamentos urbanos a todas as pessoas depreende pensar também nos cadeirantes, nos deficientes visuais etc. (“portadores de necessidades especiais”); esquecer dessa desigualdade, como que a pressupor uma fictícia igualdade no que tange à facilidade de locomoção, colaboraria para perpetuar ou até agravar humilhantes situações de inacessibilidade ou dependência, pois não construiríamos rampas de acesso para quem não pode subir uma escadaria, sinais sonoros para aqueles que não veem os luminosos, e por aí vai. Dito isso, podemos entrar no assunto. Tratar as pessoas como se fossem “neutras” em matéria de identidades culturais ou culturalmente construídas, notadamente gênero, fenótipo e orientação sexual: corresponderia isso a um ideal de justiça? Seria justo fingirmos que não houve discriminações negativas no passado e, acima de tudo, agirmos como se fosse aceitável uma narrativa em que origens histórico-geográfico-culturais distintas sejam pasteurizadas? A meu ver, contribuições culturais específicas não devem ser petrificadas e fetichizadas, muito menos folclorizadas, mas tampouco devem ter suas raízes escamoteadas, pois isso também faz parte da construção da autoestima e da desconstrução do racismo e do machismo.
É fato que não se pode condescender com o fascismo e, mais amplamente, com o autoritarismo (inclusive com o “argumento de autoridade” que se esconde em uma interpretação essencialista, exclusivista e monoescalar da noção de “lugar de fala”, que em sim mesma é fecunda). É igualmente preciso rechaçar a sedução pela biologização quando da interpretação da heteronomia e das opressões (no estilo “brancos” versus “negros”, “machos” versus “fêmeas”), por abrirem espaço para as generalizações mais abomináveis. Por isso é válido e até mesmo imprescindível rejeitar certas premissas: “miscigenação é genocídio”, “todo homem é um agressor”, e assim sucessivamente. Apesar disso, por qual razão haveria de ser tão difícil colocar-se no lugar do Outro? Não para falar por ele, no sentido de tutelá-lo, mas sim para tentar ao menos imaginar como seria estar em sua pele (em certos casos, literalmente)? Essa empatia é um pressuposto dos mais elementares para que haja qualquer diálogo digno do nome. É mesmo tão difícil assim compreender de onde vêm as mágoas que levam a que tantos desemboquem em falácias biologizantes e generalizações falaciosas?…
E como a realidade sempre tem ao menos uma ponta de tragédia, talvez seja necessário aceitar que uma certa turbulência, derivada de uma indignação que não admite mais ser contida, inevitavelmente fará parte de um processo de aprendizado coletivo. Cada vez menos gente está disposta a abaixar a cabeça, a pôr um sorriso amarelo diante de piadinhas racistas, machistas ou homofóbicas e fingir que não ouviu ou viu certos comentários sussurrados ou olhares acusadores ou de desprezo atirados de soslaio. De um ponto de vista emancipatório, isso é intrinsecamente positivo, muito embora excessos causem, muitas vezes, desconforto e até perplexidade em brancos (ou pseudobrancos) não racistas, homens não machistas e heterossexuais cisgênero não homofóbicos, porque tais excessos lhes parecem (e de fato são) injustos. Críticas e acusações genéricas contra “os brancos” e “os homens” são, sem dúvida, excessos – e perigosos, inclusive pelo risco de afastarem aliados reais ou potenciais. (Naqueles casos em que se proclama que “miscigenação é genocídio” ou que “todo homem é um agressor”, parece que não se quer aliados, o que torna, em tais circunstâncias, o problema algo muito mais sério.) Desgraçadamente, vivemos em uma quadra da história em que aqueles que sofrem determinados tipos de discriminação negativa são infinitamente mais expostos a valores e discursos individualistas, conservadores e capitalistófilos – “seja um empreendedor!”, “diversidade dá lucro”, e assim sucessivamente – que a valores e discursos verdadeiramente antissistêmicos. O status quo se alimenta da fragmentação dos trabalhadores, ao mesmo tempo em que engendra novas ou renovadas ilusões de ascensão social.
É preciso ter paciência histórica, pois a necessária vigilância contra os fascismos societais e os autoritarismos quotidianos não devem nos impedir de desconfiar de que, ainda que o capitalismo contemporâneo se sirva das divisões entre os trabalhadores, até certo ponto facilitada ou impulsionada pela explosão de identidades muitas vezes exclusivistas e ensimesmadas, não foi o capitalismo que, simplisticamente, fabricou a totalidade do problema: em larga medida, este não deixa de ser também o resultado de séculos de secundarização da especificidade irredutível de vários tipos de opressão, bem como o dano colateral de uma busca por erguer a própria voz, volta e meia com estridência não muito construtiva, com a finalidade de expor tais feridas.
Como o caminho do aprendizado coletivo não será outra coisa que não dolorido e não deveria se fazer de outra maneira que não por meio do diálogo, vale a pena chamar a atenção para a importância ética e político-pedagógica de também os homens brancos, heterossexuais e cisgênero genuinamente imbuídos de sensibilidade emancipatória, mas nem por isso destituídos de bom senso, não abrir mão de seu direito de apontar problemas derivados de exclusivismos e forçadas de barra. Por exemplo, quando o cantor, compositor e ator Seu Jorge afirma, em uma entrevista para o jornal Folha de S. Paulo (21/07/2019), que o guerrilheiro Carlos Marighella, por ele interpretado no cinema, era “negro” por ser filho de uma negra: como soaria se alguém propusesse que Marighella era “branco” pelo fato de ser filho de um imigrante italiano? Esta última interpretação, que parece um produto da ideologia do embranquecimento levada ao paroxismo, não deixa de ser, em princípio, perfeitamente simétrica da primeira, apenas trocando-se o sinal. (De quebra, note-se que a sensibilidade perante o racismo, bastante salientada pelo entrevistado, não pode ser unidirecional: sobre os indígenas brasileiros, o mesmo Seu Jorge a eles se refere como “[c]oisa que não existe mais no mundo, mas nós temos essa porra!”. A observação, esclareça-se, não era intencionalmente derrogatória, tendo sido feita, pelo contrário, em um contexto de exaltação da diversidade. Me pergunto, contudo, se as palavras utilizadas não deveriam ser vistas como, no mínimo, incrivelmente infelizes.) O triste é que cada vez menos nos ocorre o óbvio: Marighella era filho de uma descendente de escravos e de um imigrante italiano e, portanto, miscigenado (fruto de “genocídio”, portanto?…). O binarismo “racial” (típico dos Estados Unidos, país que muita gente parece ter na conta de paradigma civilizatório) e o exclusivismo identitário querem nos impedir de enxergar isso. Porém, seria necessário, para honrar as raízes de Marighella, silenciar sobre uma parte da verdade, investindo em uma meia-verdade? Parafraseando um político estadunidense, cada um de nós tem direito às próprias opiniões, mas não aos próprios fatos. Ilustrações semelhantes ou que servem de equivalentes funcionais a esse exemplo abundam por aí, hoje em dia. E muita gente acha “descolado” ou “progressista” repetir certas coisas sem um pingo de reflexão, ou com apenas um pinguinho. Mas mantenho o otimismo (em um nível modesto, admito) de que, no longo prazo, poderá haver um enriquecimento do projeto emancipatório, por mais que, atualmente, preponderem os distanciamentos, os ensimesmamentos e os exclusivismos. Todavia, o sistema capitalista, sem dúvida, parece trabalhar na direção de que isso não aconteça.
O sistema se beneficia enormemente toda vez que se cultiva a falácia biologizante e hiperautoritária que reside em ver no “homem branco” o inimigo, como se muitos homens brancos pelo mundo afora não tivessem sido e continuassem a ser explorados (e humilhados e espezinhados de várias formas) e como se a consciência das opressões sofridas pelas mulheres não brancas pudesse, independentemente da luta de classes e da solidariedade com os homens brancos que deixarem para trás o machismo e o racismo (e sim, acreditem, isso é possível), ser garantia de coerência na luta por um mundo significativamente menos heterônomo. Tivemos, ao longo do século XX, importantes esforços por parte de várias pensadoras importantes, autoidentificadas como feministas ou não, para pensar de maneira cruzada classe e sexo/gênero, perscrutando as imbricações entre capitalismo e dominação masculina (que várias estudiosas têm chamado, não raro de modo impreciso e por razões ligadas a uma certa conveniência político-ideológica, de “patriarcado”). Da mesma forma, também tivemos intelectuais de relevo, às vezes brancos (como Florestan Fernandes), que contribuíram para articular exploração de classe e racismo. Essas contribuições, ainda que marginais ou limitadas, não obstante existiram e não deveriam ser esquecidas, mas sim superadas por um patamar de complexidade superior. Elas correm, porém, o risco de serem deixadas de lado – e, de fato, a exploração de classe tem sido tremendamente negligenciada nas últimas décadas – em um momento da história em que tanta gente parece ter perdido qualquer vontade de apostar na hipótese de outra sociedade, preferindo concentrar-se em uma “política do possível” aqui e agora. A fronteira entre pragmatismo e capitulação (ou comodismo, para não dizer oportunismo) é, muitas vezes, tênue.