Por Passa Palavra

A normalidade encontra-se suspensa há mais de dois meses nas principais cidades chilenas. Embora as manifestações nas ruas de Santiago já não alcancem as mesmas dimensões que ganharam durante o Estado de Exceção declarado pelo presidente Sebastián Piñera, a revolta ganha novos desdobramentos nas mãos dos estudantes secundaristas. Nos primeiros dias de 2020, a convocatória de um boicote massivo ao vestibular levou a uma série de problemas na aplicação do exame nacional de ingresso nas universidades.

Não por acaso, os estudantes do Ensino Médio também estão na raiz do “estalido social”, como os chilenos costumam se referir à onda de protestos. Quando a tarifa do metrô de Santiago sofreu um aumento de 30 pesos, os secundaristas convocaram a população a não pagar passagem. “Evade!”, dizia o grito que se fazia escutar cada vez mais e se espalhava pelos muros da cidade enquanto os catracaços se multiplicavam ao longo de sua extensa rede de trilhos. O metrô reagiu fechando estações onde havia protestos e alterando o funcionamento das linhas, numa escalada que culminou em uma manifestação massiva na sexta-feira 18 de outubro, e em diversas estações destruídas [1].

O governo reduziria a tarifa no dia seguinte, mas já era tarde. Ao decretar Estado de Exceção, impor um toque de recolher e convocar o Exército para restaurar a ordem, o presidente jogou mais lenha na fogueira. À frente dos gigantescos protestos que se espalharam por todo país, ele se defrontou com o que muitos chilenos descreveram como uma “geração sem medo”: uma juventude que, apesar de carregar a memória da violência de uma ditadura que perdurou até 1990, não viveu o terror pinochetista como seus pais, e desafiou o Exército já no primeiro dia de toque de recolher.

Há pouco a perder quando o que se tem pela frente é um endividamento vitalício ou a impossibilidade de entrar em uma universidade; tratamentos médicos a preços exorbitantes ou a precariedade dos hospitais públicos em estado de abandono; um custo de vida cada vez mais alto; uma aposentadoria com a qual não dá para sobreviver, embora tenha custado caro ao longo da vida toda; o imperativo, enfim, de ir e vir no aperto dos vagões todos os dias e trabalhar literalmente até morrer. As ruas de Santiago – assim como as de outras cidades do mundo, como Hong Kong [2] – parecem ter sido tomadas por uma turba sem futuro.

São esses os estudantes que atenderam à convocatória da Assembleia Coordenadora do Estudantes Secundaristas do Chile (ACES) para impedir a aplicação da Prova de Seleção Universitária (PSU), vestibular unificado adotado por quase todas as universidades do país. Espaço central para as ocupações de dezenas de escolas em 2006 [3], a ACES foi retomada em 2010 como uma estrutura permanente que atuou no movimento de 2011 e se manteve sempre à margem da política institucional, ao contrário de outras entidades estudantis. Depois dessas duas históricas ondas de ocupações, da eleição de lideranças dos anos anteriores para o Congresso Nacional [4] e do incremento da repressão dentro das escolas — com a entrada da polícia e a “Lei Aula Segura” [5] —, um espírito niilista parece marcar a geração atual de estudantes. O que não deixa de traduzir, afinal, uma percepção apurada do mundo que os cerca.

Na madrugada do dia 7 de janeiro, muitos desses secundaristas ocuparam locais de aplicação da PSU, armaram piquetes e sumiram com provas, iniciando uma jornada de luta contra o vestibular que se estenderia ao longo dos dois dias de prova em diversas cidades do Chile. Usualmente aplicado em novembro ou dezembro, o exame já havia sido adiado para janeiro por conta dos protestos. A ação direta dos estudantes na segunda semana de 2020 fez com que ele terminasse sendo suspenso em 145 locais de aplicação. Além disso, no segundo dia de exame, quando o aluno opta entre Ciências Naturais ou Ciências Humanas, o vazamento desta última prova levou o governo a cancelá-la a nível nacional.

Ao lançar a convocatória, a ACES difundiu pequenos manuais de organização do boicote pelas redes sociais, permitindo que a tática fosse facilmente replicada em todo o país [6]. Em um momento de descenso das manifestações de rua – que, depois de tomar as ruas de Santiago e outras cidades praticamente todos os dias por mais um mês, passaram a concentrar-se em um dia da semana — a ação direta dos estudantes abriu novas possibilidades para o movimento geral, demonstrando como é possível estender a revolta até situações em que ainda reinava a normalidade. A mobilização contra a PSU direciona pontualmente a energia social que está nas ruas para uma demanda concreta [7], ao mesmo tempo em que confere um sentido prático a esse movimento de recusa cada vez mais difuso, que um pacto entre a direita e a esquerda institucional pretende canalizar para a Assembleia Constituinte [8].

A resposta do Estado dá dimensão do tamanho do perigo. Por todo o país, piquetes e ocupações foram violentamente reprimidos pela polícia, que atropelou uma aluna em Pudahuel. Poucos dias depois, o governo invocou a Lei de Segurança do Estado (um equivalente do que é, no Brasil, a Lei de Segurança Nacional) para denunciar trinta e quatro estudantes, incluindo os dois porta-vozes da ACES. Neste momento, quando mais de mil pessoas permanecem presas por causa da onda de protestos, toda solidariedade é necessária aos estudantes perseguidos pelo governo (uma petição de apoio circula aqui). O presidente Sebastián Piñera lançará mão de todos os meios que tiver a seu alcance para atacar o movimento estudantil antes que o retorno das aulas, em março, possa conferir novo fôlego à revolta popular no Chile.

Notas

[1] Para uma discussão do lugar do metrô na experiência cotidiana de sofrimento da população de Santiago ver a entrevista da socióloga Kathya Araújo para a BBC. Para um apanhado mais completo sobre os primeiros dias da explosão social no Chile e o papel dos estudantes secundaristas, ver o verbete em espanhol da Wikipedia.

[2] “Se nós queimamos, vocês queimam conosco”, “Prefiro virar cinzas do que poeira” são escritos que se lê nos muros de Hong Kong (ver Chuang, The Divided God). Para uma visão mais geral sobre o movimento na cidade chinesa, ver o Dossiê de artigos publicados no Passa Palavra.

[3] Em 2006, escolas em todo Chile foram tomadas pelos estudantes contra o modelo privado de educação básica. No Brasil, o movimento ficou conhecido por meio do documentário A Rebelião dos Pinguins, de Carlos Pronzato. Em 2011, o Chile viveria uma segunda onda de ocupações, dessa vez perdurando ao longo de todo o ano letivo e envolvendo também os setores universitários.

[4] Após o movimento de 2011, lideranças estudantis chilenas de variadas matrizes políticas — do tradicional Partido Comunista, como Camila Vallejos (Juventudes Comunistas), às novas correntes anarquistas, como Gael Yeomans (Frente de Estudantes Libertários) — seguiram carreira na política parlamentar. A adesão de parte desses setores à base do segundo governo de Bachelet, bem como sua participação em acordos de desmobilização e repressão ao levante de 2019, marcam a experiência política da atual geração de jovens em relação à institucionalidade. Basta ver, por exemplo, o tratamento recebido por Gabriel Boric, deputado e ex-liderança da “Esquerda Autônoma” em 2011, ao ser reconhecido no Parque Florestal, ponto comum da onda protestos em Santiago.

[5] Para se ter um quadro da escalada repressiva no interior das escolas, basta ver o exemplo da entrada da polícia no Instituto Nacional em julho, lançando bombas de gás lacrimogêneo no interior de salas de aula. Em outubro, a aprovação da Lei Aula Segura pelo Congresso vem reforçar esse cenário, ampliando os poder dos gestores escolares para punir e expulsar estudantes.

[6] Os manuais estão disponíveis na conta de Instagram da ACES. É interessante notar como o formato do manual – difundindo publicamente táticas de ação que podem ser apropriadas e aplicadas autonomamente por estudantes de diferentes lugares — é bastante próximo das cartilhas de ”Como ocupar um colégio?“ ou de “Como fazer um travamento?” usadas pelos secundaristas de São Paulo durante a luta contra o fechamento de escolas pelo governo estadual em 2015.

[7] “A PSU é o instrumento que melhor reflete que o poder do dinheiro garante o acesso às melhores universidades aos mais ricos e à elite, enquanto obriga a grande maioria dos jovens que não recebeu uma educação de qualidade a estudar onde o sistema e a pontuação permita – inclusive a custo de um alto endividamento familiar” (Carta de solidaridad y apoyo a dirigentes secundarios).

[8] Depois de protestos crescentes que não cessaram diante da presença do exército nas ruas, o governo celebrou um acordo celebrado com os principais partidos do país para a elaboração de uma nova Constituição a partir deste ano. Além da possibilidade – talvez remota – de que o processo termine sendo hegemonizado pela direita e resulte em uma Carta Magna ainda mais ao gosto do capital, o pacto tem servido para canalizar o debate de várias das assembleias territoriais, vistas com entusiasmo por boa parte da militância chilena. Quando chegar a hora de eleger representantes, divisões inócuas e seus efeitos perversos não tardarão a aparecer.

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