Por Marcelo Lopes de Souza

Adquiriram grande visibilidade pública, no Brasil dos últimos anos, os desastres envolvendo barragens e atividades de mineração, como os de Mariana (2015) e Brumadinho (2019), ambos no estado de Minas Gerais. No entanto, agora que já adentramos o verão, e com ele entramos na época das chuvas torrenciais nas regiões de clima tropical úmido, devemos nos recordar de que, nas nossas grandes cidades, provavelmente assistiremos a um tipo de tragédia muito mais comum.

Na verdade, trata-se da repetição de um ciclo que atravessa as gerações, ocorrendo com frequência crescente ao longo das décadas: primeiro, vêm as chuvas fortes que, em condições sócio-espaciais determinadas (na verdade, estas antecedem e condicionam tudo), provocam desastres ambientais, com perda de vidas e patrimônio; em seguida, a grande imprensa faz sua cobertura, quase sempre muito superficial, quando não sensacionalista; nesses marcos, finalmente, políticos profissionais e outros agentes diretos do Estado dão, então, declarações vazias, ao passo que engenheiros e outros especialistas em problemas geotécnicos baseados nas universidades, convidados a emitir suas supostamente abalizadas opiniões, reproduzem uma ladainha pedestre a propósito da “falta de planejamento” e da “falta de vontade política” dos governantes de plantão. Após tudo isso, passado o período de maior comoção, o café começa a esfriar e o assunto é deixado de lado — até as próximas tragédias, que dão a senha para se requentar o mesmo café.

As referidas calamidades, envolvendo uma combinação de desmoronamentos ou deslizamentos de terra, inundações, alagamentos e enxurradas, costumeiramente são chamadas de “desastres naturais”. O que haveria, porém, de “natural” em tais desastres? É notável como a terminologia brasileira oficial sobre desastres (Classificação e Codificação Brasileira de Desastres/COBRADE) continua a se referir a “desastres naturais” até mesmo a propósito de fenômenos como epidemias e erosão, para não falar em desmoronamentos e deslizamentos de terra e inundações. (Na realidade, a terminologia brasileira nada mais faz que acompanhar um padrão terminológico internacional.) E mais chocante é o fato de que, também no dia a dia do meio universitário, essa distorção ainda prospere.

Não são muitos os que demonstram perceber adequadamente que o desastre acontece apenas porque um fenômeno que, em si mesmo, na maioria dos casos poderia ocorrer independentemente da presença humana, transforma-se em tragédia a partir do momento em que a organização espacial da sociedade e as relações sociais em uma sociedade marcada pela exploração, pela desigualdade e pela injustiça engendram situações específicas de vulnerabilidade (que, não por acaso, dizem respeito aos mais pobres). E, como se isso não bastasse, uma vez ocorrido um desastre, o aparelho de Estado será lento em socorrer as vítimas, não raro sendo, ainda por cima, socialmente seletivo em suas prioridades — circunstância à qual nem todos prestam a atenção que deveriam. O cineasta estadunidense Spike Lee mostrou, com seu documentário When the Levees Broke: A Requiem in Four Acts (Quando os Diques se Romperam: Um Réquiem em Quatro Atos), de 2006, que a devastação causada pelo furacão Katrina em Nova Orleans, que tinha tido lugar no ano anterior, atingiu desproporcionalmente a população pobre e negra. Alguma surpresa?… O surpreendente, isso sim, é continuarmos a ouvir e ler que a catástrofe associada ao Katrina foi “natural”, a exemplo de tantas outras similares. Ora, um furacão é, ele mesmo, “natural” (na medida em que ainda pudermos fazer abstração do fato de que eventos climáticos extremos como furacões estão sendo cada vez mais influenciados pelo aquecimento global, com seu componente antropogênico); mas a tragédia social que veio na esteira do Katrina não foi, em nenhum sentido relevante, “natural”.

O campo das geociências (entendido em sentido estrito), notadamente geólogos e geomorfólogos, bem como as engenharias, banalizam tremendamente a análise dos fatores. As modernas ciências da natureza e as engenharias são, sem dúvida, grandes realizações da humanidade; o problema começa quando cientistas naturais e engenheiros presumem que os desastres vinculados aos movimentos de massa, às inundações e às enxurradas que, de tempos em tempos, vitimam centenas ou milhares de pessoas nas cidades brasileiras (e de muitos outros países), têm por base não uma organização espacial que reflete assimetrias de poder estruturais e segregação residencial no seio de uma sociedade de classes, mas sim uma “ocupação desordenada” e uma carência de soluções técnicas adequadas — ou seja, nada que algumas medidas repressivas e umas tantas obras de engenharia não possam resolver… As ciências da sociedade e, nesse contexto, os “estudos urbanos”, de sua parte, têm a capacidade de ajudar a mostrar como os desastres são, via de regra, socialmente fabricados: seja porque um fenômeno em si mesmo natural (um terremoto, uma erupção vulcânica etc.) causa tragédias que sempre são mediadas, no que se refere a quem é atingido e com que intensidade, pelas relações sociais, seja porque alguns fenômenos são, de um modo ou de outro, ainda por cima frequentemente deflagrados ou catalisados por intervenções humanas, como escorregamentos ou inundações. Contudo, no Brasil, os estudiosos do urbano teimam em tratar os desastres sociais de cunho ambiental como secundários ou “temas menores”. Um exemplo disso são os Simpósios Nacionais de Geografia Urbana (os SIMPURBs), realizados bianualmente desde 1989. Eles correspondem a um caso particularmente gritante, pela responsabilidade que os geógrafos potencialmente têm de superar tanto a miopia que faz aqueles influenciados pelo discurso tecnicista e tecnocrático verem os desastres sem enxergá-los corretamente como fenômenos socialmente condicionados quanto a tacanhez que leva grande parte dos estudiosos do urbano a olharem as cidades como se nelas não ocorressem intempéries e seus dramáticos desdobramentos.

Estamos diante, com isso, de dois compartimentos estanques, alheios um ao outro. De uma parte, os cientistas naturais e os engenheiros, apelando para abstrações vazias, platitudes e simplificações abusivas, se valem de termos ocos como “fator antrópico” e de conceituações e análises paupérrimas sobre o “risco” de desastres para escamotear as causas profundas e os papéis dos diversos agentes sociais. (Mas, afinal de contas: em uma época como a nossa, em que até uma grande parcela do que ainda se passa por esquerda tem enorme dificuldade para pensar e falar em classes e divisão de classes, não seria talvez demais exigir que justamente os apóstolos da tecnolatria se pusessem a fazê-lo?) De outra parte, os estudiosos e ativistas que deveriam olhar para as nossas cidades enquanto espaços concretos, submetidos a intempéries e vulneráveis em diversos sentidos, recusam-se, muitas vezes, a fazê-lo. Não entendem que abandonar os “problemas ambientais” inteiramente aos cientistas naturais e engenheiros é uma deserção intelectual e política, além da perda de uma oportunidade ímpar de exame das disparidades sócio-espaciais e injustiças típicas de uma grande cidade da (semi)periferia capitalista.

Há, claro, exceções — inclusive entre os cientistas naturais e engenheiros. Uma delas, brilhante exceção que confirma a regra, é fornecida pelo artigo “O discurso técnico do risco nas tentativas recentes de remoções forçadas de favelas no Rio de Janeiro”, de autoria de Mauricio Campos, apresentado em 2016 no II Seminário Nacional sobre Urbanização de Favelas (URBFAVELAS). Mauricio Campos é uma incomum mistura de ativista pelo direito à moradia e engenheiro profissional. Ele foi, duas décadas atrás, um dos articuladores da criação da Frente de Luta Popular/FLP, que durante alguns anos deu apoio ao movimento dos sem-teto da Zona Portuária do Rio de Janeiro. Após a dissolução da FLP, Campos tem colaborado com o ativismo favelado em seu combate por dignidade e justiça. Graças à sua formação como engenheiro, mas pondo os conhecimentos técnico-científicos a serviço de uma causa popular, Mauricio Campos constata, no referido artigo, que tem havido um evidente enviesamento antifavela por parte da Fundação Instituto de Geotécnica/Geo-Rio, da Prefeitura do Rio de Janeiro. Os exemplos por ele dados demonstram à saciedade como a interpretação e a operacionalização do “risco” têm servido a interesses antipopulares, pró-remoção. Chama a atenção, aliás, o caráter tosco de algumas classificações e análises oficiais, que induzem a uma leitura simplista segundo a qual “favela” e “área de risco (geotécnico)” seriam praticamente sinônimos (isso, a despeito da indiscutível qualificação do corpo técnico da Geo-Rio, reconhecida pelo autor). Infelizmente, o artigo de Campos não teve, nem de longe, a disseminação que merecia. Que ele não faça escola entre os engenheiros, entende-se, creio, com mais facilidade; contudo, é de pasmar que também no âmbito dos “estudos urbanos” os pesquisadores brasileiros ainda tenham tanto a aprender com o exemplo oferecido por Mauricio Campos. Oxalá possamos, no futuro, ver mais esforços como o dele tanto sob uma perspectiva intelectual quanto prático-política. As análises sobre desastres e riscos ambientais, tão necessárias em nossas cidades, precisam ser chacoalhadas, deixando de se identificar, fundamentalmente, com um olhar cientificamente bitolado e politicamente conservador.

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