Por Medeia
Atualmente, nos noticiários, não existe outra pauta senão a difusão do coronavírus pelo mundo. Em Roraima não é diferente. A distinção que aqui se apresenta pode ter relação com sua peculiaridade. O único estado brasileiro que possui ligação rodoviária com Roraima é o Amazonas, através da BR-174; fora isso, só se chega a Roraima de avião. Esta situação talvez tenha possibilitado que até o dia 21 de março este seja o único Estado brasileiro sem casos confirmados da doença.
Mas se Roraima amanheceu sem nenhum caso neste dia, no final da tarde já somava dois. O governo do Estado e a Prefeitura de Boa Vista têm seguido as medidas padrão adotadas em outros Estados, por exemplo, o cancelamento das aulas. No dia 16 de março tanto o governo estadual quanto o municipal decretaram a paralisação das escolas do dia 17 até o dia 31, podendo ser prorrogado este prazo.
Este anúncio mudou o tom do debate sobre a pandemia. Alguns consideraram a medida demasiado drástica, já que nenhum caso fora registrado na ocasião. Talvez a entrevista realizada por um jornal local com uma enfermeira epidemiologista seja o exemplo mais claro de como as pessoas estavam a lidar com a situação — exagero.
Até o dia 20 parecia que nada tinha mudado muito, a não ser pela louca corrida atrás do álcool em gel e de fornecimento de deliveries. Praticamente todos os estabelecimentos passaram a divulgar que estão melhorando a higienização dos ambientes e disponibilizando álcool em gel para os clientes, além, é claro, da entrega de seus produtos nas residências.
Vale ressaltar aqui uma coisa. Este isolamento de Roraima sempre gerou dificuldades na circulação de mercadorias. Dizem os locais que, se você achou o que queria, “compra na hora”, pois pode ser que no dia seguinte esteja esgotado e demore meses para reabastecer. É claro, então, que a corrida pelo tal álcool gerou um rápido desabastecimento do produto.
E estava sendo assim. Restaurantes self-service funcionando (onde todos usam os mesmos talheres para se servir), supermercados fazendo propaganda com entrega de panfleto nos semáforos, bares com narguilés para a diversão de todos, quadras de esporte nas praças funcionando, etc. Uma exceção foi a pressão de deputados e do governador do estado pelo fechamento da fronteira com a Venezuela. No entanto, este pedido é recorrente desde que a imigração se intensificou. Aqui todos os problemas são justificados pelo excesso de venezuelanos; logo, a contenção da pandemia apareceu como justificativa para a concretização da antiga reivindicação.
Mesmo nas unidades da rede federal de ensino aqui existentes, quando outras unidades Brasil afora já haviam cancelado as aulas, esta discussão só ocorreu depois destes decretos do governo estadual e da prefeitura. E é incrível como a mágica do álcool em gel também afetou meus colegas de trabalho. Na reunião, o eixo foi em torno da liberação de alunos e professores apenas, e a manutenção da jornada de trabalho dos técnicos. Isso porque todos estariam protegidos, já que o tubinho de álcool estava na pia dos banheiros. Detalhe: eram vasilhames de álcool 46°, que não tem efeito algum. E mais um ponto: foram raras vezes em que vi sabonete e toalha de papel neste local, e nada estava diferente esta semana.
Especulo se, pela não mudança no comportamento geral das pessoas, o tom da discussão no meu local de trabalho pode ser um padrão. Falou-se muito de prazos a serem cumpridos, de tarefas que não poderiam deixar de ser feitas sem pensar na excepcionalidade da situação. Usando o gel, fazendo revezamento, todos poderiam trabalhar de forma segura.
Assim estava sendo feito até agora. Porém, no dia 20 de março a prefeita da capital do estado emitiu um decreto proibindo diversas atividades e regulamentando o funcionamento de outras. Novamente esta ação pode ter sido considerada radical demais, mas me pergunto: será que a população de Roraima já se deu conta de que em todo o estado temos apenas 20 leitos de UTI e 11 leitos de semi-intensiva? Se a pandemia chegar aqui, o desastre será grande e, até então, parece que só os gestores refletiram sobre isso.
Diante da confirmação de dois casos no dia 21, a prefeitura lançou outro decreto, declarando situação de emergência no município de Boa Vista. Neste novo documento, os gestores municipais reconhecem a precariedade do Sistema de Saúde Pública do Estado e tomam medidas mais radicais, como a dispensa de licitação para aquisição de bens e serviços para enfrentar a situação de emergência e a proibição de atividades de comércio em geral. Além disso, proíbem toda a atividade que aglomere pessoas e também “(…) a permanência de pessoas em locais públicos, tais como parques, praças, ruas, calçadas e afins”.
Não saí de casa desde o dia 20 para dizer se algo mudou ou não, mas espero que as pessoas entendam a necessidade do isolamento social, pois as projeções de crescimento de infectados com o vírus aumentam a todo momento.
A fotografia de destaque é de Tiago Caldas e a fotografia no texto é de Joédson Alves.
Depois do pronunciamento do Bolsonaro na terça-feira (24/03) parece que a política de isolamento começou a flexibilizar. A maioria dos governadores afirmaram que manteriam as medidas restritivas, mas o govenador de Roraima não se pronunciou. A prefeita da capital (Boa Vista), lança, por sua vez, um novo decreto que flexibiliza o funcionamento de alguns estabelecimentos (https://www.boavista.rr.gov.br/noticias/2020/03/teresa-edita-novo-decreto-e-flexibiliza-funcionamento-de-alguns-segmentos-do-comercio-em-boa-vista).
Já os indígenas, com autonomia, resolveram fechar o acesso para suas comunidades (https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2020/03/26/indigenas-fecham-acesso-a-comunidades-como-prevencao-ao-novo-coronavirus-em-rr.ghtml).
Medeia, para além do funcionamento econômico estricto, como você sente nas pessoas a questão do virus enquanto doença? Digo, existe um negacionismo total e as pessoas realizam eventos familiares e se abraçam despreocupadas, ou ao mesmo tempo em que mantêm as atividades econômicas tomam precauções (mínimas que sejam) sanitárias?
Negacionismo total talvez não seja a palavra mais adequada. Se num primeiro momento a vida social continuava igual, talvez por não acreditarem que a pandemia poderia chegar em Roraima, após as medidas de isolamento e confirmação de casos parece que se instaurou um clima de medo geral. Mas isso mudou após a terça-feira como disse. Um exemplo: na TV, um pequeno empresário disse que queria abrir o estabelecimento atendendo as exigências da OMS, usando máscara.
Sabemos que a orientação a OMS não é bem essa e também que o uso indiscriminado de máscara não impede o contágio.
Outro ponto é a real possibilidade de todos os estabelecimentos tomarem as medidas sanitárias necessárias, pois Roraima sempre sofreu com o desabastecimento de produtos e não se encontra em lugar nenhum máscaras, luvas ou álcool 70°.
A preocupação que tenho é que com a reabertura do comércio de forma ampla se consolide a (falsa) ideia na população de que, usando máscara e álcool em gel, todos estejam protegidos.