Por João Bernardo
1.
O Brasil não está no Brasil, está no mundo. Seria bom que os brasileiros tomassem consciência deste facto. Aliás, todos os povos deviam pensar o mesmo relativamente aos seus próprios países, mas especialmente os brasileiros, e adiante voltarei ao assunto. Hoje, mais do que nunca, não deve confundir-se o mundo com o Brasil.
Estamos a viver, ou a morrer, numa situação nova, e além de todas as precauções físicas, das indispensáveis medidas de confinamento e distanciamento social, são urgentes duas precauções mentais. A primeira, é que não devemos proceder a generalizações, quer sobre a covid-19 quer sobre o capitalismo, a partir do caso brasileiro sem verificarmos antes se elas são válidas para os outros países. A segunda é que não devemos agarrar-nos a ideias antigas sem verificarmos se elas se adequam ou não ao novo contexto.
Ambas as precauções são sempre necessárias, mas hoje mais do que nunca, porque a pandemia levanta problemas novos, que exigem uma reflexão nova, novas respostas e, sobretudo, outras perguntas. Quem quiser aplicar à situação actual as respostas — tantas vezes erradas — formuladas em situações anteriores, é melhor colocar-se de quarentena, senão física, pelo menos mental. A covid-19, como todas as grandes convulsões, liquidará, ou deixará na margem, ideias e práticas que deixam de servir e será um laboratório de novas formas de actuação e novas concepções.
2.
Mas será que a situação resultante da actual pandemia é realmente nova?
Há quase exactamente um século, no final da primeira guerra mundial, e quer se devesse ou não aos milhões de cadáveres que apodreciam sem sepultura junto às trincheiras, grassou uma pandemia que infectou cerca de 1/3 da população mundial e deixou pelo menos 50 milhões de mortos. Denominada gripe espanhola nuns países, pneumónica noutros, essa pandemia é esquecida em grande parte da historiografia e, tanto quanto conheço, ignorada pelas obras de história económica. Não poderia, no entanto, deixar de exercer efeitos sobre a economia. Num estudo muito recente, os autores calculam que num «país típico» a gripe espanhola reduziu o PIB real de 6% a 8% e que nos Estados Unidos a produção industrial diminuiu, em média, cerca de 18%. Ora, depois de uma análise estatística e considerando uma variedade de factores, os autores desse estudo concluem que os efeitos económicos da actual pandemia serão menores do que os da gripe espanhola [1]. Apesar disto, porém, a historiografia económica esquece um fenómeno tão considerável. Será que nos anais da História a covid-19 terá o mesmo destino e daqui a um século se reduzirá a uma nota de rodapé num pequeno número de obras eruditas? Ou permanecerá como uma referência obrigatória, dividindo duas épocas?
Como nós não vivemos na História, mas no presente, para já é na covid-19 que as atenções se focam e é sobre esta situação que, queiramos ou não, somos obrigados a reflectir.
3.
Bolsonaro e Trump destacam-se dos outros chefes de governo na subestimação ou negação dos efeitos do coronavírus. Trump aparentemente alterou o rumo, nos ziguezagues que o caracterizam, e reconheceu o perigo da pandemia, mas, apesar disto, continua a evitar medidas suficientemente enérgicas [2]. Ora, nesta atitude os dois presidentes contam com o apoio de uma parte significativa da população dos respectivos países, e para compreender a confluência é necessário recordar que existem algumas semelhanças culturais entre a sociedade americana e a brasileira. Importa aqui destacar duas delas. Antes de mais, são países enormes, virados para eles mesmos, com uma população pouco instruída, inclusivamente entre as elites, e ignorante do que se passa no estrangeiro. Medidas que a população rejeitaria como insensatas se conhecesse a situação noutros países são aceites por falta de termos de comparação. Em segundo lugar, nos Estados Unidos e no Brasil o fundamentalismo bíblico tem uma enorme importância, sobretudo nos meios populares, e tanto as Igrejas evangélicas como o catolicismo carismático difundem o obscurantismo anticientífico a respeito do coronavírus, como de muitas outras coisas.
Nos Estados Unidos, porém, existem instituições fortes, capazes de fazer frente aos desmandos do poder central. No Brasil não existem.
Admitindo que a posição tomada por Bolsonaro a respeito da covid-19 seja provida de alguma racionalidade e não se deva apenas às fantasias do tal astrólogo, que racionalidade pode ser essa? Está difundida no Brasil entre a população pobre, que é o mesmo que dizer entre a maioria das pessoas, a noção de que a covid-19 «é uma doença de ricos». Se assim fosse, as medidas tomadas por Bolsonaro, ou antes, o facto de ele se recusar a tomar medidas, constituiria um extraordinário programa de nivelamento social, condenando à morte os ricos. O problema é que este vírus é transmitido por todos, independentemente de terem ou não contas bancárias, e tanto os ricos contaminam os pobres como os pobres contaminam os ricos.
Nestas circunstâncias, a recusa a decretar medidas generalizadas de isolamento e distanciamento social, arriscando a propagação da doença, pode ter uma explicação racional simples — a previsão de que os ricos, bem alimentados, com habitações que permitem o isolamento e com fácil acesso aos hospitais, terão uma taxa de sobrevivência muito superior à dos pobres. Estes aprenderiam assim, à sua custa, que a covid-19 não é uma doença de ricos.
Em meados de Março, simulações matemáticas efectuadas por cientistas do Imperial College, de Londres, admitiram que, se não fossem adoptadas medidas de isolamento e distanciamento social, a covid-19 poderia afectar 81% da população britânica, o que corresponde a quase 55 milhões de pessoas, provocando um número máximo de 500.000 mortos, ou seja, 0,9% dos afectados. Em todo o mundo, e no caso de não serem tomadas nenhumas medidas, o mesmo modelo calculou que 7 biliões (mil milhões) de pessoas, ou seja, 91% da população mundial, ficariam infectadas, podendo atingir-se 40,6 milhões de mortos, o que representa um taxa de letalidade de 0,58% [3]. E no final de Março uma estimativa muito genérica considerou que, na ausência de uma campanha de isolamento e distanciamento social, entre 25% e 80% da população seriam infectados e, destes, 4,4% ficariam seriamente doentes, 1/3 dos quais necessitaria de cuidados intensivos [4]. Trata-se de simulações matemáticas e de projecções, não de previsões, mas por enquanto não dispomos de nada mais preciso. Ora, importa aqui considerar que aqueles que, tal como os inspiradores de Bolsonaro, defendem a inutilidade das medidas de isolamento e distanciamento social se apoiam nas mesmas simulações e projecções. Só que, enquanto nós extraímos delas umas conclusões, eles extraem as conclusões opostas. Quais?
Se aplicarmos aos 210 milhões de brasileiros as simulações a que o Imperial College procedeu para o Reino Unido e para o mundo em situações de ausência de isolamento e de distanciamento social, concluiremos que a covid-19 atingiria aproximadamente entre 170 milhões e 190 milhões de pessoas, matando entre um máximo de 1,5 milhões e um mínimo de 1,1 milhão. Se continuarem em vigor as medidas — ou antes, a ausência de medidas — de Bolsonaro, e nas condições habitacionais, nutricionais e sanitárias do Brasil, as vítimas mortais encontrar-se-ão, na esmagadora maioria, entre os trabalhadores mais pobres, além de alguns ricos idosos, cujos herdeiros esperam ansiosamente pela herança.
Será esta a explicação racional? Tratar-se-ia de uma experiência de eugenia menos mortífera, afinal, do que a proposta nos Estados Unidos entre as duas guerras mundiais, quando os eugenistas defendiam a necessidade de eliminar rapidamente 10% da população do país, bem como dos outros países. E o processo deveria ser contínuo, porque a saúde biológica da raça exigiria o extermínio progressivo de novos escalões inferiores, sempre calculados na proporção de 10% [5]. Afinal, se adoptarmos para o Brasil as simulações do Imperial College, enquanto os eugenistas norte-americanos teriam proposto a eliminação de 21 milhões de brasileiros, a actual política de Bolsonaro não vitimaria mais de um milhão e meio. Uma verdadeira caridade evangélica.
4.
O mais trágico é que, perante a ameaça do coronavírus, uma grande parte da população brasileira pobre colabora activamente com a política de Bolsonaro.
Antes de mais, colabora quando não segue as normas de distanciamento social. Fiquei verdadeiramente alarmado ao ver que grevistas, manifestando-se na rua contra a falta de condições sanitárias nos locais de trabalho, se tocavam e abraçavam e passavam microfones de mão em mão e de boca em boca. Um caso ainda mais grave, ridículo se não fosse funesto, ocorreu em Pernambuco, onde, num desfile destinado a consciencializar a população sobre as medidas a tomar, os participantes faziam exactamente o que é necessário não fazer [6]. É certo que, em sentido contrário, vários movimentos e organizações de luta, e até ONGs, empresários e redes de televisão, encetaram campanhas de consciencialização acerca das precauções que devem ser adoptadas contra o coronavírus; entre outras iniciativas conta-se, por exemplo, a campanha animada pela CUFA, Central Única das Favelas.
Mas serão campanhas muito difíceis, porque terão de contrariar óbvios e inegáveis traços culturais enraizados na população brasileira, nomeadamente a convivialidade, o carácter festivo, a indisciplina e a exigência do contacto físico. E dizer, como dizem muitos na extrema-esquerda, que no Brasil não há condições habitacionais e sanitárias que permitam tomar quaisquer medidas de isolamento e distanciamento social só agrava a situação, porque estimula o derrotismo e a indiferença. Tal como Deivison Nkosi escreveu na sua página do Facebook, «seguir apenas repetindo que “para a Perifa a quarentena é um luxo inalcançável” é contraproducente e não resolverá o problema que está por vir, aliás, acaba revelando um tipo de negacionismo irracional». Reclamando contra essa atitude muito difundida, Deivison Nkosi apontou o caminho que toda a esquerda deve tomar e, depois de prevenir que «talvez um dia se discuta o grau de eficiência destas medidas que estou indicando ou os epidemiologistas indiquem outras formas mais efetivas», afirmou que «por hora, a pergunta mais sensata deve ser: “quais os meios disponíveis em cada realidade que podemos lançar mão para diminuir o máximo possível a vulnerabilidade ao contágio?”». E Deivison Nkosi concluiu: «Esse debate é tão importante quanto a constatação de que a quarentena não chega na favela» [7].
Mas o pior é que uma grande parte da população brasileira pobre colabora também com Bolsonaro ao exigir que a economia funcione plenamente. Sem trabalho, como podem sobreviver? E como podem sobreviver quando são dúbias ou proteladas as providências compensatórias? Em 2 de Abril entrou em vigor uma medida provisória, mas, atendendo à disputa entre o Congresso e o governo, ainda se ignora como será a lei na sua forma definitiva. Para já, parece-me que uma consequência será o achatamento da pirâmide de renda dos trabalhadores, com uma redução sensível das remunerações no topo. Ao mesmo tempo, porém, para os mais pobres as incertezas continuam devido à demora dos pagamentos. Tudo isto aumenta a pressão económica, e nesta situação já não se trata de «negacionismo irracional», porque é a miséria a impulsionar o desrespeito das precauções elementares. E assim uma grande parte do povo, muitas vezes estimulada pelas Igrejas evangélicas ou carismáticas, apoia Bolsonaro quando este diz que o isolamento não é necessário e que a vida quotidiana deve continuar. A alternativa é o roubo e a pilhagem, a luta de todos contra todos. Não há racionalidade mais trágica, porque a situação que a provoca demorará muito mais a resolver do que a pandemia demora a ser solucionada.
5.
O Brasil está no mundo, e é para o mundo que temos de olhar se quisermos compreender o Brasil. Por isso não devemos proceder a generalizações apressadas, tomando a situação do Brasil como típica de todo o capitalismo ou sequer de todos os países em que uma parte considerável da população está em situação de pobreza.
Comparemos a posição tomada por Bolsonaro perante a covid-19 com a decisão de Narendra Modi, chefe do governo da Índia, de aplicar à totalidade do seu país medidas sanitárias rigorosas. Ora, a Índia tem uma população seis vezes maior do que o Brasil, com uma miséria equivalente, se não pior, e com os pobres a viverem nas grandes cidades uns por cima dos outros. E enquanto no Brasil existem 2,15 médicos e 2,2 camas de hospital por cada 1.000 habitantes, na Índia existem apenas 0,78 médicos e 0,7 camas de hospital por cada 1.000 habitantes e 1 leito de isolamento hospitalar por cada 84.000 habitantes. Apesar disto, ou por isto mesmo, o governo indiano decretou a quarentena em todo o país e anunciou que iria gastar o equivalente a $23 biliões em alimentos e subsídios para a população mais pobre e investir cerca de $2 biliões para melhorar o sistema de saúde. O problema atingiu tais dimensões que só no estado de Delhi o governo estadual projecta distribuir diariamente alimentos gratuitos a mais de 1 milhão de pessoas, que a suspensão da actividade económica deixou sem emprego [8] [9] [10].
Nesta rápida comparação convém salientar que o governo de Narendra Modi é fascista, tal como o é o partido que lhe serviu para ascender e se consolidar no poder, ainda mais claramente fascistas do que o são Bolsonaro e os seus íntimos. Basta isto para verificar que a diferença entre as medidas sanitárias tomadas pelos vários governos não corresponde às diferenças políticas que existem entre eles. Não é o mundo que se limita ao Brasil, é o Brasil que existe no mundo. Se quisermos analisar o capitalismo, temos de o ver na sua diversidade e complexidade.
6.
A luta contra a pandemia recordou, uma vez mais, a necessidade de centralização social. Num artigo recente eu fiz apelo à autodisciplina na manutenção das normas de isolamento e de distância. Argumentei que sem a experiência fornecida pela autogestão das lutas será impossível fundar uma sociedade autogerida, e a autodisciplina faz parte deste processo [11]. Mas aí mesmo reside o problema. Actualmente, e por todo o mundo, só em algumas lutas se notam traços embrionários de autogestão, e também os traços de autodisciplina nesta pandemia só têm sido observados em algumas situações e em alguns países. Além disso, se mesmo nas décadas de 1960 e 1970, quando mais se generalizaram as experiências autonómicas, os trabalhadores não conseguiram coordenar as comissões de luta e as empresas autogeridas em colectivos nacionais, muito menos internacionais, também hoje é inviável pensar sequer que os trabalhadores possam coordenar centralmente as medidas necessárias para combater a covid-19. Mas não é por os trabalhadores serem incapazes de a realizar que a coordenação central deixa de ser indispensável.
Assim, como conseguir essa centralização sem ser por intermédio dos governos? Num fórum libertário em língua francesa encontrei um cómico debate sobre o tema «Comment une société anarchiste gèrerait-elle cette épidémie?», como é que uma sociedade anarquista iria gerir esta epidemia? [12] O problema é que o coronavírus não esperou pelo advento do anarquismo e uma certa extrema-esquerda ilude a resposta, recusando a pergunta. Os anarquistas franceses negaram que este vírus constituísse uma ameaçam significativa e apelidaram de «autoritarismo higienista» as medidas sanitárias tomadas para impedir a sua difusão, considerando-as como «decisões liberticidas» [13]. Nesta mesma perspectiva, que é idêntica à de Bolsonaro — e seria talvez proveitoso que os anarquistas brasileiros reflectissem sobre esta coincidência — os autonomistas do GARAP, Groupe d’Action pour la Recomposition de l’Autonomie Prolétarienne (Grupo de Acção pela Reconstituição da Autonomia Proletária), consideraram que a pandemia é uma invenção dos órgãos de comunicação social, promovida pelos governos e pelas forças repressivas, e classificaram a imposição da quarentena e do distanciamento social como simples medidas de redução das liberdades. O delírio foi levado ao ponto de pretender que os capitalistas «recorreram ao pretexto da covid-19 para dar à luz a crise económica por cesariana, em vez de esperarem passivamente o seu nascimento. O coronavírus serviu, assim, de deus ex machina. Por seu lado, o confinamento foi o instrumento que permitiu esta tentativa de reboot [reinício] do modo de produção capitalista […]» [14].
Há mais quem pense assim. Em Julho de 2013 este site publicou um curto texto recordando que cinquenta anos após a publicação do primeiro volume de O Capital, Lenin publicou uma obra onde já no título anunciava que o imperialismo era a Fase Suprema do Capitalismo, e passados quarenta e oito anos Nkrumah publicou um livro sobre o neocolonialismo, rotulando-o como A Última Etapa do Imperialismo. «Já lá vão outros quarenta e oito anos», escrevia o Passa Palavra há sete anos, «espera-se para breve a publicação de um livro sobre o derradeiro período da última etapa da fase suprema» [15]. O Passa Palavra enganou-se, porque há até quem considere que o capitalismo não está prestes a terminar, mas passou já do prazo. A luta de classes foi substituída por um capitalismo que se autodestrói e a covid-19 deixa-o no leito de morte, quiçá sem ventilador. E assim, enquanto os trabalhadores vão tentando resolver, melhor ou pior, os problemas reais com que deparam, uma certa extrema-esquerda residente nos departamentos de ciências sociais das universidades, que se tornou o seu locus preferido, se não único, dedica-se à histeria apocalíptica.
Entre a maior parte (não escrevi todos, escrevi a maior parte) dos que animam os meios anarquistas e libertários, e também os do marxismo conselhista e do autonomismo, a resposta ao problema da necessidade de uma coordenação central é simples — na sociedade que desejamos (isto é, diferentes sociedades, cada uma desejada por cada um deles) o ser humano será outro. Claro que com esta transformação dos dados do problema se resolve tudo, a única dificuldade consiste em saber como é que as pessoas actualmente existentes conseguirão edificar essa sociedade em que as pessoas não serão como estas actualmente existentes.
Mas deixemos os anarquistas, os libertários e os autonomistas entretidos com o problema do ovo e da galinha e regressemos à questão urgente, que é a de que aqui e agora o combate à pandemia requer uma centralização. E como os trabalhadores não conseguiram instaurar uma sociedade autogerida, essa centralização tem de ser heterogerida. Assim, o papel dos governos enquanto agentes centralizadores é hoje não só aceite, mas exigido pela prática unanimidade das pessoas.
7.
Essa legitimação da função centralizadora dos governos permitiu, nas palavras de um prestigioso órgão do liberalismo, a «mais espectacular ampliação do poder de Estado desde a segunda guerra mundial» [16].
Mas não será que o reforço da intervenção governamental na vida quotidiana dos cidadãos começou muito antes? Enquanto durou a guerra fria, a liberdade individual foi um dos temas constantes da propaganda ocidental, por contraste com os regimes de tipo soviético, onde cada pessoa tinha de dar conta das suas idas e vindas. Nas últimas décadas, porém, a grande diferença entre as democracias e as ditaduras é que as democracias, em vez de intervirem directamente, fazem-no só indirecta e dissimuladamente. Assim, essa «espectacular ampliação do poder de Estado» difere da situação anterior só por ser espectacular, ou seja, por dar nas vistas em vez de operar sub-repticiamente. Será isso prejudicial?
Se já tínhamos cada passo da nossa vida fiscalizado e minuciosamente seguido por meios ocultos, o que perdemos agora pelo facto de a interferência no quotidiano se dever também a militares, claramente assinalados pela farda, que, além de porem as suas capacidades logísticas ao serviço do sistema de saúde, fiscalizam o cumprimento das normas de confinamento e de distanciamento social? É curioso que uma boa parte da extrema-esquerda, que parecia habituada à vigilância encoberta, manifestasse alarme só quando viu os soldados descerem à rua. Numa interessante convergência, The Economist considerou que «as forças armadas foram concebidas antes de mais e acima de tudo para matar pessoas e não para aplicar multas em esquinas de ruas nem para distribuir comida a supermercados». E, depois de considerar que «a covid-19 afectará, tanto directa como indirectamente, o estado de prontidão dos militares», esse bastião do pensamento liberal concluiu que «as tropas podem ter a sua atenção desviada, mas a guerra não se interrompe por causa dos vírus» [17]. Com argumentos opostos, eis uma singular coincidência de opiniões.
Igualmente curioso é o alarme suscitado pela forma como os celulares (ou telemóveis, como dizem os portugueses) são empregues na China, incluindo Hong Kong, em Taiwan, na Coreia do Sul, em Singapura e em Israel para fiscalizar o cumprimento das quarentenas e seguir os processos de transmissão do coronavírus [18], quando, na verdade, os mecanismos de vigilância mediante celulares estavam já montados antes da pandemia.
Aliás, o mais preocupante não é o facto de os governos usarem os celulares e os computadores pessoais para fiscalizar as pessoas nem de as empresas recorrerem a esses meios para orientar as suas linhas de produção consoante as preferências expressas pelos consumidores, fazer publicidade e fidelizar os clientes. Os governos e as empresas estão assim a cumprir o seu papel. O que nos deve inquietar é o facto de terem sido as próprias pessoas que começaram a fornecer obsessivamente os seus dados pessoais às plataformas das redes sociais. O mecanismo já estava montado desde há bastantes anos e as consequências funestas desta ideia fixa de fornecer e partilhar dados pessoais não datam de agora, apenas se tornaram mais visíveis. Como de costume, quando algo se torna visível é tarde demais.
8.
Passada a pandemia, decerto se consolidará em vastos meios, não só entre empresários e políticos de direita, mas também numa certa extrema-esquerda, a sedução pelo modelo chinês de controle populacional. E não tenhamos ilusões. Essa sedução exercer-se-á ainda sobre muitas pessoas comuns, alheadas da vida política, que verão na alienação da liberdade privada uma condição para que sejam debeladas eficazmente as ameaças que as transcendem. Note-se que desde o começo da pandemia tem aumentado significativamente a taxa de popularidade dos governantes que tomam medidas drásticas, enquanto declinou a popularidade do governante que mais explicitamente se recusa a tomar essas medidas.
Tanto mais urgente se torna o combate à militarização da sociedade e ao dispositivo de vigilância electrónica instalado, mas sem comprometer as necessárias medidas de confinamento e distanciamento social. Como será possível prosseguir, desde já, esta dupla tarefa? Nas suas relações de trabalho, quer estejam fisicamente presentes nas instalações das empresas quer laborem por computador a partir de casa ou por celular num veículo, é indispensável que os trabalhadores conjuguem 1) a luta pela instauração de condições sanitárias aceitáveis e por remunerações e subsídios que lhes permitam respeitar as medidas de isolamento e distanciamento, com 2) a demonstração prática de que, para combater a pandemia, são capazes de autodisciplina na esfera individual e de autocoordenação no quadro das empresas.
A outra face da luta contra a militarização da sociedade e a expansão da vigilância electrónica é a autocoordenação e a autodisciplina, alicerces da autogestão da sociedade.
Referências
[1] Sergio Correia, Stephan Luck e Emil Verner, Pandemics Depress the Economy, Public Health Interventions Do Not. Evidence from the 1918 Flu, 26 de Março de 2020.
[2] Linda Qiu, «Analyzing the patterns in Trump’s falsehoods about coronavirus», The New York Times, 27 de Março de 2020.
[3] «Instituto britânico diz que coronavírus poderá provocar 1,8 milhões de mortes em todo o mundo», Diário de Notícias, 26 de Março de 2020.
[4] «The coronavirus could devastate poor countries», The Economist, 26 de Março de 2020.
[5] Edwin Black, War against the Weak. Eugenics and America’s Campaign to Create a Master Race, Nova Iorque e Londres: Four Walls Eight Windows, 2003, págs. 52, 59 e 225.
[6] «Manifestação contra o coronavírus», Passa Palavra, 29 de Março de 2020.
[7] Deivison Nkosi, Facebook, 17 de Março de 2020, 09:33.
[8] «South America: Brazil», The World Factbook, Central Intelligence Agency (actualizado em 11 de Março de 2020).
[9] «India and Pakistan try to keep a fifth of humanity at home», The Economist, 26 de Março de 2020.
[10] «Lockdowns in Asia have sparked a stampede home», The Economist, 2 de Abril de 2020.
[11] João Bernardo, «A autodisciplina no combate à pandemia», Passa Palavra, 19 de Março de 2020.
[12] «Coronavirus… et anarchisme?», Libertaire.net, 15 de Março de 2020.
[13] «Coronavirus ou l’autoritarisme hygiéniste», Le Monde Libertaire, 3 de Março de 2020.
[14] «Du bon usage des épidémies», Groupe d’Action pour la Recomposition de l’Autonomie Prolétarienne, Março de 2020.
[15] «Certidão de óbito adiada», Passa Palavra, 7 de Julho de 2013.
[16] «The state in the time of covid-19», The Economist, 26 de Março de 2020.
[17] «Armies are mobilising against the coronavirus», The Economist, 23 de Março de 2020.
[18] «Countries are using apps and data networks to keep tabs on the pandemic», The Economist, 26 de Março de 2020.
Gostei do artigo e também gostei deste outro que li hoje noutro site, talvez ajude no debate: https://www.brasil247.com/blog/do-controle-de-solo-para-o-planeta-quarentena-isto-e-apenas-um-teste
JB & PE, intromisturados num fado tropical? A conferir…
Há um par de anos atrás, tinha a impressão de que companheiros tomavam a fragmentação política da classe trabalhadora como algo positivo. Talvez transformando o dado em virtude.
Agora, tenho a impressão de que companheiros tomam a falta de perspectivas e a impotência como algo positivo. Talvez transformando já não simplesmente o dado, senão as fraquezas em virtudes.
Como poderão as lutas, por si mesmas, criar algo novo, se não é justamente por tomar-se os riscos de criar algo novo, algo concretamente novo e não apenas no campo do conceito? Do contrário, será de tanto insistir na responsabilidade dos patrões e do Estado para realizar as demandas sociais, que patrões e Estados desaparecerão?
O que seria de nós, sem o perguntador impressionado?
Talvez conseguíssemos fracassar melhor…
o PP melhorou muito, buscando tratar da Crise provocando pelo Capitalismo de Desastres,mas ainda sinto falta no PP de ler e ver indicações mais concretas dos caminhos de organização necessários e possíveis. A hora é de juntarmos os Anticapitalistas de todas as cores nas barricadas,mas por onde começamos, qual seria nossa “narrativa”, quais ferramentas? Nem só de análises podemos viver, sobretudo quem no trabalho escuta coisa do tipo “o que fazer?”
O PP é partido político para “dar a linha”? Acho que não. Deve, sim, continuar nas análises. Quem quiser, pega estas análises, aplica a seu contexto e tira as linhas de ação mais adequadas.
Como é frequente, uma boa análise. Agradeço a clareza e exatidão dos argumentos.
Caro João, seus textos sempre são ótimos.
O que se define por ”marxismo conselhista”?
Quando você coloca:
Não vou questionar a parte que se refere a ‘esfera individual”, porque isso me parece um tanto subjetivo e, na atual circunstância, imagino que se refere aos cuidados individuais quanto a preservação, transmissão do vírus e etc.
Agora, quanto ao resto, fico com uma dúvida. Ao falar que os trabalhadores devem juntar as exigências de melhores condições materiais de vida, trabalho, que permitam respeitar o isolamento (e devem exigir isso mesmo em momentos outros, sem pandemia) e, ao mesmo tempo, mostrarem que são capazes de se ”autocoodenarem no quadro das empresas”, não se está justamente aconselhando o que sempre uma certa ala da esquerda (a nossa? Em determinados momentos da história, mesmo outras) tem aconselhado?
Caro Gabriel,
O conselhismo é uma corrente política inaugurada há precisamente um século pelo KAPD, Partido Comunista Operário da Alemanha, e que teve alguma relevância durante um curto período. Depois, um vasto leque de pequenos grupos tem-se reivindicado dessa herança. Note que conselho é a tradução literal do russo совет, lido aproximadamente soviet. Os conselhistas defendem um comunismo em que o poder de decisão é conferido aos comités de empresa e de bairro. O GARAP, um grupo de quem eu citei um texto, insere-se neste meio político.
Quanto à autocoordenação nos locais de trabalho, é certo que se trata de um objectivo geral e válido para toda a luta anticapitalista. Sem a prévia experiência da autogestão das lutas não conseguiremos edificar uma sociedade autogerida. Mas faça uma experiência. Leia este artigo do Passa Palavra, em que os trabalhadores exigem condições sanitárias no local de trabalho. Agora veja as fotografias e os vídeos, em que os manifestantes estão encostadinhos uns aos outros, a fazerem eles mesmos aquilo que exigem que os patrões não façam. Será difícil tirar as conclusões?
Leio num despacho de hoje da Agence France Presse, relativo à situação na Alemanha: «Nas últimas semanas, manifestantes de extrema-esquerda e de extrema-direita têm-se concentrado todos os sábados em Berlim, apelando para “uma resistência democrática” contra aquilo que consideram como restrições autoritárias e anticonstitucionais, no contexto do coronavírus. No último sábado a polícia prendeu cerca de cem pessoas, de um total calculado em mil manifestantes, e está prevista uma nova manifestação no Primeiro de Maio».
Notícias como esta permitem algumas reflexões sobre o estado de certa extrema-esquerda.
[Ver a tradução no final do comentário.]
Je continue de penser que les mouvements qui rejettent la science moderne de façon caricaturale, d’extrême droite ou d’extrême gauche, ont le même socle idéologique.
”Un aspect de la pandémie de COVID-19 à propos duquel je n’ai pas encore vraiment écrit est le développement d’une alliance malsaine entre d’un côté les négateurs de la COVID-19 (qui diffusent des théories du complot et prétendent à tort que la maladie n’est pas si grave et/ou que les confinements et mesures de distanciation sociale ne sont pas – ou ne sont plus – nécessaires, et devraient être levées pour limiter les dégâts catastrophiques que les efforts de contrôle ont immanquablement causé à notre économie), et de l’autre le mouvement antivaccinal (qui sans surprise propage de la désinformation et des théories conspirationnistes à propos de la manière dont la COVID-19 serait instrumentalisée dans le cadre d’un complot pour imposer la vaccination universelle – ou même que la maladie aurait été créée par Bill Gates dans ce but précis, tout comme la grippe H1N1 et Ebola ! –, ou de la manière dont le vaccin contre la grippe nous rendrait plus sensible au coronavirus. Spoiler alert : ce n’est pas le cas).”
“Au final, les deux groupes ont en commun de n’avoir aucun, ou presque aucun sens social de leurs responsabilités vis-à-vis de la santé publique et brandissent égoïstement leurs « droits personnels »”
Vous pouvez retrouver l’article en français et en anglais ici (d’ailleurs les autres articles de ce blog sont intéressant): https://blogs.mediapart.fr/yann-kindo/blog/240420/les-negateurs-de-la-covid-19-et-le-mouvement-antivaccinal-une-alliance-malsaine
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Tradução do Passa Palavra
Continuo a pensar que os movimentos que recusam de maneira caricatural a ciência moderna, sejam de extrema-direita ou de extrema-esquerda, assentam na mesma base ideológica.
«Um aspecto da pandemia de COVID-19 acerca do qual ainda não escrevi verdadeiramente é o desenvolvimento de uma aliança nociva entre, por um lado, os negacionistas da COVID-19 (que difundem teorias da conspiração e pretendem erradamente que a doença não é tão grave como se diz e/ou que o confinamento e as medidas de distanciamento social não são — ou já não são — necessários e deveriam ser revogados para limitar os danos catastróficos que os esforços de controle provocaram inevitavelmente na nossa economia) e, por outro lado, o movimento antivacinas (que naturalmente propaga a desinformação e as teorias da conspiração acerca do modo como a COVID-19 seria instrumentalizada no âmbito de uma cabala para impor a vacina universal — ou até que a doença teria sido criada por Bill Gates exactamente com esse objectivo, tal como a gripe H1N1 e o Ébola! — ou do modo como a vacina contra a gripe nos deixaria mais sensíveis ao coronavírus. Spoiler alert: não é esse o caso).
«Afinal, ambos os grupos partilham o facto de não terem, ou praticamente não terem, nenhum sentido social das responsabilidades para com a saúde pública e fazem uma agitação egoísta em torno dos seus “direitos pessoais”.»
Podem encontrar aqui o artigo em francês e em inglês (e, aliás, os outros artigos desse blog são também interessantes).
Querido João
Eu fiz a pergunta para confirmar a interpretação que fiz da sua fala sobre a autocoordenação, e sua resposta resolveu minhas dúvidas. Me lembrou um pouco algumas declarações que já vi de alguns intelectuais, professores, etc.. sobre ”solidariedade” e ”autocoordenação” na classe trabalhadora que, no fim, mais pareciam querer indicar que os trabalhadores deveriam mesmo é serem ótimos funcionários para as empresas.
Agradeço as respostas, ajudaram a dar sentido