Por Silva

Em 31 de março de 2020 acordei, tomei café, comi duas torradas e fui ao trabalho. Chegando no lugar de costume — um hotel com diárias de até R$ 470,00 — fui orientado, junto com o restante, a retornar para casa. Os requintados aposentos permaneciam vazios. A desorientação e a incerteza do dia seguinte estavam presentes no semblante de cada trabalhador. A recepção, a governança e o setor de alimentos temem não só pela manutenção dos empregos, mas pelo custeio de suas vidas nesse cotidiano precário. Não queremos e não devemos trabalhar no meio dessa pandemia, mas também não podemos aceitar as migalhas que nos oferecem no canto da mesa. Para além do sofrimento que aflige cada um, é necessário resgatarmos um pouco dos acordos que nos levam até esta situação.

Um Termo Aditivo à Convenção Coletiva de Trabalho foi assinado em 19 de março de 2020. Este acordo faz parte do pacto firmado entre o sindicato dos trabalhadores (Sinthoresp) e os sindicatos patronais (Sindhotéis — sindicato dos hotéis, Sindresbar — Sindicato de bares e restaurantes, Fhoresp — federação de hotéis e restaurantes e Cntur — Confederação Nacional do Turismo).

O Sinthoresp é o sindicato que abriga os trabalhadores em hotéis, apart hotéis, motéis, flats, pensões, hospedarias, pousadas, restaurantes, churrascarias, cantinas, pizzarias, bares, lanchonetes, sorveterias, confeitarias, docerias, buffets, fast-foods e assemelhados de São Paulo e região. Colocando-se como “defensor da categoria e maior interessado no bem de seus representados, [o sindicato] concorda que deve tomar medidas que colaborem com a manutenção dos postos de trabalho”. Neste conturbado instante, seu secretário-geral ainda afirma que “demos algumas saídas para os empresários atuarem junto a suas administrações”[1].

Neste banquete entre os sindicatos, parece não haver controvérsias diante das decisões do negociado sobre o legislado, uma vez “que o caput do artigo 611-A da CLT diz que “a convenção coletiva e o acordo coletivo de trabalho têm prevalência sobre a lei”. Sendo assim, vamos ao que diz o menu referendado pelas partes “para o enfrentamento da crise econômica originada pela declaração de pandemia do coronavírus”:

a) Concessão de férias aos empregados, de forma individual ou coletiva, sem necessidade de qualquer comunicação prévia, por se tratar de medida emergencial decorrente da pandemia global, desde que concedidas dentro do prazo de 120 (cento e vinte) dias, a contar da assinatura do presente Termo Aditivo;

b) Redução dos salários dos empregados em 25% (vinte e cinco por cento) e correspondente redução de jornada (cláusula 6 e seguintes) durante o prazo de 120 (cento e vinte) dias, a contar da assinatura do presente Termo Aditivo;

c) Suspensão dos contratos de trabalho por 120 (cento e vinte) dias, a contar da assinatura do presente Termo Aditivo, quando não possível a manutenção dos salários, na forma da alínea anterior; e

d) Rescisão dos contratos de trabalho dos empregados que não puderem ser mantidos com salários reduzidos ou contratos suspensos.

Enquanto trabalhadores, não negamos o aporte científico. O isolamento é necessário nesse momento. Deixem o pó se acumular nas poltronas da recepção! Deixem a cama desarrumada! Deixem as cadeiras desordenadas! Deixem as mesas viradas!

O que parece inconcebível é aceitar esses acordos firmados pelos aparelhos sindicais como uma outorga. Agindo como administradores da mão-de-obra, os “representantes” dos trabalhadores e das patronais parecem confabular as estratégias necessárias para a perpetuação da exploração de classe antes, durante e depois do coronavírus.

Deste modo, me resta escolher entre os poucos dias de férias que me sobram (provavelmente não cobrirá os dias da pandemia no Brasil), a redução da jornada e do salário (o local em que trabalho já dispensou os trabalhadores), a suspensão do contrato por até 120 dias (esta foi a proposta da empresa onde trabalho) ou a rescisão dos contratos.

Pois bem, ao garantir 50% do piso salarial aos trabalhadores, o luxuoso hotel frequentado por mim durante 6 dias por semana conseguiria, segundo promessa do governo, se livrar dos encargos tributários e sociais durante este período. Tudo ainda é muito nebuloso, com exceção do boleto depositado em minha caixa de correspondência com o vencimento do próximo aluguel.
O menu parece se moldar, mesmo que de modo chinfrim, aos capitalistas. Para os trabalhadores, as opções começam insossas e caminham até a completa amargura. Ao que parece, a cortina de fumaça do artigo 18 da Medida Provisória 927, cuja flexibilização das leis trabalhistas previa a suspensão dos contratos de trabalho por 4 meses — ausência de trabalho por 4 meses sem o pagamento dos salários (artigo revogado pela Medida Provisória 928) — pode ainda encontrar brechas para serem realocadas. Tudo isto com o aval dos sindicatos patronais e dos trabalhadores.

Retornando às condições materiais em que tropeço neste momento, com o direito a receber metade do piso salarial de minha categoria — cerca de R$800,00 — reflito se o aluguel, assim como as contas de luz, gás e telefone também serão reduzidas pela metade. Sem contar a provisão para que um dia, quem sabe, ainda consiga caminhar à minha labuta para novamente arrumar a mesa do Happy Hour aos meus “representantes” e seus colegas do patronato.

As imagens que compõem a ilustração deste artigo são do filme O grande hotel de Budapeste (2014) do diretor Wes Anderson.

Referências

[1] Cf. Sindicato de hotéis assina acordo que permite suspender salário por 4 meses. Uol Notícias, 01/04/2020. Disponível aqui

 

 

 

 

1 COMENTÁRIO

  1. Prezado Silva,

    O seu pungente relato expressa a situação e o sentimento que passa na mente e no coração de milhões de trabalhadores nesse momento. Redução salarial, o drama do desemprego ou iminência de ocorrer, contas à pagar que não foram reduzidas e a alta do custo de vida.

    Por que os trabalhadores são os primeiros a ser imposto arrocho e sacríficios?

    Por que os milionários donos de hoteis e dos outros setores econômicos não são chamados a pagar a conta da crise? Eles tem gordura pra queimar, nós não!

    Pesquisa rápida mostra a riqueza do setor hoteleiro:
    https://exame.abril.com.br/estilo-de-vida/os-hoteis-mais-luxuosos-do-brasil/
    https://exame.abril.com.br/blog/primeiro-lugar/sauipe-na-bahia-passara-por-reforma-e-pode-ganhar-parque/

    Muito justa a sua denúncia sobre o comportamento sindical lesivo aos trabalhadores. E o Sindicato já assinou o 2º Termo Aditivo:
    https://sinthoresp.com.br/site/wp-content/uploads/2020/04/SINTHORESP-SEGUNDO-ADITIVO-CCT-19-21_08_04_2020.pdf

    Olhei a página do Sindicato e deparei com esta declaração do presidente da entidade, Francisco Calasans Lacerda: “A postura do Sinthoresp é de defender a classe, mas sem radicalismos. Isso implica em haver, da melhor maneira possível, um entendimento entre capital e trabalho”.
    https://sinthoresp.com.br/site/historico/

    Entregar de bandeja a cabeça dos trabalhadores é a filosofia de colaboração de classes e de traição desse podre sindicalismo brasileiro.

    Essa corja do movimento sindical dá sucessivas demonstrações de que não passam de capataz dos patrões. Assinam qualquer medida que os patrões imponham desde que recebam uma parte. É o sindicalismo 5 estrelas, habituado a frequentar os ambientes da burguesia, seu parlamento podre, cuja prática e aspiração é agradar docilmente a burguesia para seguir se empaturrando das migalhas que caem da mesa do senhor e do festim com o sangue operário.

    Soa a hora dos trabalhadores varrerem esse sistema cruel, esses burgueses gananciosos e a pelegada colaboracionista!

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