Por Bruno Duarte e Utanaan Reis

Ou é o começo do fim, ou é o fim. Vital Frias

O governo do presidente Jair Bolsonaro já estava em processo de decomposição, já estava doente e o coronavírus (a COVID-19) veio somente referendar seu fim. Uma série de fatores, como os listados abaixo, se somaram ao estado delicado e aprofundaram a corrosão do governo:

1) A política econômica fracassada de Paulo Guedes. Apesar do argumento, disseminado como verdade absoluta, de que as reformas levariam ao destravamento da taxa de acumulação do capital no país, as reformas não surtiram efeitos; garantiram um crescimento pífio à economia que, junto ao expressivo desemprego, informalidade, baixo investimento público, corte de verbas em setores essenciais, etc., mostraram e continuam mostrando a ineficácia da agenda neoliberal engendrada por Paulo Guedes e cia.

2) O obscurantismo manifestado com a ciência, com o conhecimento e com os órgãos de pesquisa do Brasil colocou o miliciano numa posição execrável para todos aqueles que têm o mínimo de comprometimento com o desenvolvimento econômico do país e, por conseguinte, com a pesquisa.

3) As sucessivas ligações dos filhos do presidente a casos de corrupção (rachadinha, caixa 2, laranjas, funcionários fantasmas, etc.) fragilizaram a moral e a ética da família — se é que algum dia as tiveram.

4) A forte ligação do governo com as milícias. Ou será que todos já esqueceram que, incontáveis vezes, Bolsonaro e seus filhos exaltaram as milícias? E ainda, será que esqueceram que um dos assassinos de Marielle Franco e Anderson era vizinho do presidente e o outro foi homenageado por Flávio Bolsonaro e teve a esposa e a mãe como funcionárias em seu gabinete?

5) Perda de apoio nas forças armadas. Apesar de ainda ser um setor expressivo de sustentação, este vem, paulatinamente, tentando se descolar da imagem do capitão (mas não do poder), como bem demonstram as declarações do general Braga Netto, diferenciando o governo e as forças armadas.

6) Perda de apoio parlamentar. Se, ao chegar ao planalto, o presidente dispunha de grande apoio, isso não sucede mais. Figuras que, publicamente, exaltavam o capitão, como os deputados Alexandre Frota, Janaína Paschoal, Joice Hasselmann e tantos outros, pularam fora, pois notaram que o barco funcionava mal e a qualquer momento podia afundar. Bolsonaro, percebendo isso e a falta de apoio dentro do seu próprio partido também, pulou fora na tentativa de criar um novo partido e acalmar os ânimos. Ademais, acrescentam-se os constantes embates com governadores, o que de fato isola ainda mais o presidente.

7) A briga interminável entre o capitão e os meios de comunicação. Bolsonaro atacou e ataca ferozmente os meios de comunicação, criando mais um inimigo, que antes o ajudara a se eleger. Os exemplos mais emblemáticos são a tensão com a Rede Globo e a Folha de S. Paulo.

8) E, por fim, e talvez o mais importante nesse momento, a crise[1] do coronavírus. A pandemia apenas evidenciou algo que já era notório para alguns: o governo, especificamente o presidente, não tem capacidade de lidar com os problemas e liderar uma nação.

Estes pontos realçados demonstram que a correlação de forças que um dia beneficiou Bolsonaro está mexida, se alterando e, provavelmente, nos próximos dias irá se modificar profundamente. Se antes as reformas garantiam o apoio de setores do grande capital, o baixo crescimento e o constante risco provocado pelos posicionamentos de Bolsonaro colaboram para a derrocada de diversos setores que antes estavam apaixonados pelo neoliberalismo sem causa.

Da mesma forma que, se antes a população enxergava o capitão como um salvador da pátria, agora percebe que suas demandas concretas (emprego e renda) não estão sendo cumpridas e nas ferocidades ditas e reverberadas pelo presidente transparecem claras discordâncias com o povo. Ou seja, no limite, a margem de manobra do capitão diminui cada dia mais.

Sobre o emprego e a renda, nenhuma mudança no sentido de expandir a economia interna foi esboçada no pós-golpe. Pelo contrário, se entregou tudo ao marasmo do neoliberalismo. O governo no poder é uma versão perniciosa do governo Temer, balizado por uma ideologia fascista. Nunca se importou de fato com uma política voltada para o trabalhador, que, neste Brasil de neoliberalismo avassalador, é visto apenas como mais um insumo da produção capitalista.

A trajetória do governo no primeiro ano era realizar as contrarreformas, os cortes e o consequente desmonte do Estado em favor daqueles que o colocaram no poder: o grande capital. Enquanto isso, a economia interna do país ficava ao léu, rumando nas tendências externas (não que isso seja um fato novo). Logo, o setor de serviços, que já vinha em crescimento (tendência mundial), se apoderou da maior parte dos trabalhadores, qualificados ou não, com seus subempregos que levam o trabalhador à máxima extração de seu mais-valor.

O que também agradou à classe média, que nos governos petistas começou a concorrer com os extratos que se elevavam da baixa renda pelos empregos que necessitavam de mão de obra qualificada. Cabe aqui uma diferenciação entre os trabalhadores qualificados que estão indo para o subemprego: estes são os que haviam aumentado sua renda nos governos anteriores, e não a classe média que é indiferente às políticas inclusivas.

A explosão do emprego informal, atrelado à queda da taxa de desemprego (mesmo que artificialmente), permite que Bolsonaro iluda a população. Mas, com a pandemia e a necessidade de isolamento social, essa melhora fictícia da economia desaparece e a máscara do governo cai. Toda a exploração a que os trabalhadores estão submetidos e o roubo de seus direitos trabalhistas vem à tona. O subemprego é a forma usada pelos governos neoliberais para dissimularem a realidade aos trabalhadores e para dizerem que está tudo caminhando bem.

Não à toa, Bolsonaro conclama as pessoas a voltarem às ruas e irem ao trabalho, como se nada estivesse acontecendo. Sua economia tem de continuar enganando a população, senão como vai poder continuar as reformas neoliberais à vista de todos? Com Bolsonaro, é melhor ir contra o mundo e a OMS (Organização Mundial de Saúde), e tentar conquistar aqueles que podem votar nele. Ele prefere o contágio do que salvar vidas. Com ele, o que merece ser salvo é o lucro. Bolsonaro é a personificação do neoliberalismo, que revela a desumanidade e todas as opressões embutidas nessa variante do capitalismo.

Com a pandemia se espalhando pelo mundo, o que vemos no Brasil é um sintoma da ideologia bolsonarista no governo. As contradições entre o presidente e seus ministros expressam a necessidade de o governo estar sempre certo, de estar sempre mentindo e estar sempre criando um inimigo para se consolidar, sintomas do bolsonarismo. Na contramão do mundo, Bolsonaro profere dizeres irresponsáveis e desprezíveis, de forma que suas últimas forças se esvaem, acelerando seu processo de decomposição.

Enquanto isso, a cada nova mentira dita em cadeia nacional, os meios de comunicação fazem questão de encaminhar o velório do governo. Caso emblemático ocorreu no pronunciamento do presidente onde ele distorceu as palavras do diretor-geral da OMS. Em seguida, o Jornal Nacional da Globo iniciou-se desmentindo prontamente o presidente. Outro caso foi o Twitter apagar uma das publicações de Bolsonaro por esta ir contra a saúde pública e, em consequência, violar as regras da rede social.

Aos poucos, a burguesia brasileira, associada ao capital internacional, vai se desfazer deste governo. Mas não enquanto estiverem com a possibilidade de extrair das veias da economia brasileira seu capital expandido. Nesse sentido, o corpo governamental em putrefação ainda luta, mas não pela vida, e sim pelas reformas. Como evidenciado no caso do auxílio emergencial aprovado e aumentado por deputados e senadores, que chegou a sofrer chantagem para ser aprovado. Guedes apontou para a necessidade de uma PEC emergencial que limitasse os gastos, que não foi levada para a frente diante da pressão de uma população desperta. Diante de um problema global e sem solução a curto prazo, o governo coloca a responsabilidade fiscal acima de tudo.

Como sempre, numa crise o Estado tende a salvar o capitalismo para manter a roda girando e jorra dinheiro na economia através de políticas keynesianas. Mas aqui no Brasil não parece ser assim. As contradições governistas e a necessidade de continuar descaracterizando o Estado, ignorando os efeitos da COVID-19, apontam como o nosso neoliberalismo está em descompasso com outros governos de extrema-direita no resto do mundo e como vivemos no limite da barbárie capitalista. Até mesmo a renda emergencial aprovada (ainda que com veto — miséria pouca é bobagem) é o mínimo para o governo capitalizar politicamente e, se comparada ao liberado para o setor financeiro, é patética.

Ainda assim, a noite é sempre mais escura antes do amanhecer[2] e, como escreveu Gramsci, pensando sobre o interregno, “a crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer. Nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece.” Esse governo, que já nasceu velho, está morrendo, mas a ideologia do bolsonarismo não. Os constantes embates do presidente com governadores fortalecem alguns “sintomas mórbidos” para as próximas eleições, como Dória e Witzel, que se aproveitaram do fanatismo para se elegerem.

Apesar de todos os problemas e de estar quase próximo da morte cerebral, o corpo doente respira e, na tentativa de reunir anticorpos, tenta seus últimos movimentos. O primeiro é a centralização do poder em suas mãos, um possível Estado de sítio justificado pela pandemia, com fechamento do Congresso e do STF. Não obstante, pela falta de apoio social e parlamentar, ele percebe que essa alternativa se consagra como difícil e de alto custo político. O segundo movimento — que, apesar de parecer fora da realidade, faz muito sentido — é o impeachment. Isso mesmo, caros leitores, Bolsonaro quer que se instaure um impeachment contra ele. Isso faz sentido, visto que pode ser uma das formas de reerguer o corpo capenga, de aglutinar massas acéfalas, de dar vigor a uma política fracassada, de novamente mobilizar nas redes sociais — e talvez nas ruas — seus fiéis apoiadores arrebatados pela ideologia bolsonarista.

Bolsonaro tenta sua última alternativa, que parece inglória pela falta de comprometimento de Rodrigo Maia com seu projeto de reviver a pré-eleição de 2018. Ao capitão pouco lhe resta, a renúncia está na mesa e é uma grande possibilidade. Como disse Mauro Iasi dias atrás, “a hora do miliciano está chegando e ele não vai deixar saudades”.

Notas

[1] O intuito não é atribuir a crise ao fenômeno da Covid-19, como fazem corriqueiramente na mídia.
[2] NOLAN, C. (Diretor). (2008). Batman – O Cavaleiro das Trevas. Burbank, CA: Warner Bros.

Bruno Duarte e Utanaan Reis são graduados em Ciências Econômicas pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e pesquisadores do Coletivo Marxista da Rural (MAR/UFRRJ).

3 COMENTÁRIOS

  1. Os autores do texto, não sei se de propósito ou não – me digam! -, citaram o Vital Farias no início. Vital Farias é um dos personagens que mais me intriga dos últimos dez anos. De apoiador do MST em 2010, e candidato a senador da Paraíba duas vezes pelo PSOL e PCB, virou um lavajateiro convicto, desses admiradores fanáticos do Sergio Moro, pedindo intervenção militar e virando apoiador – até hoje! – do Bolsonaro. Vejam, o compositor de Saga da Amazônia e Saga de Severinin bolsonarista…
    Desculpem que não falei do texto, rsrsrsrs, mas é que, pô, cês citaram o Vital Farias…

  2. Acho bem mais realista sobre a situação do Bolsonaro esse artigo do Lincoln Secco. https://aterraeredonda.com.br/a-famiglia-no-poder/

    Eu particularmente acho que ele chega ao final do mandato Pior do que ele está fazendo na crise do covid19 para se isolar politicamente e da realidade acho impossível ocorrer.
    E mais, se tivesse que apostar ainda apostaria na reeleição dele.

    Acho que apreende melhor a realidade não pensar em termos de queda de Bolsonaro, Temer etc. Assim como a questão após o golpe de 64 era o fim da ditadura civico militar, a questão após o golpe ultraneoliberal de 2016 não é se Medice ou Geisel irão cair, mas se o regime o qual eles sao executores eventuais vai cair. O golpe de 2016 marcou o impedimento de qualquer política que nao fosse de acordo com o neoliberalismo. E estamos longe, muito longe desse regime neoliberal (aqui nao é mais mera política de governo, mais um ditadura de modelo economico), se enfraquecer e cair, por mais que empobreça a população e mostre índices de emprego e PIB horríveis.

  3. Além de este artigo estar cheio de alguns dos lugares comuns da esquerda hoje – o “golpe”, o “neoliberalismo”, as “contrarreformas”, etc. -, os autores se queixam de que o Bolsonaro não tem capacidade de “liderar” a nação e de que a economia está sujeita a determinações externas. No fundo, portanto, parecem querer um líder forte comandando um Estado forte e dirigindo uma economia nacional. A ênfase na fraqueza do Bolsonaro e no seu neoliberalismo é tão grande que, se o Bolsonaro fosse forte e não fosse um neoliberal, talvez os autores tivessem a seu respeito uma opinião bem mais favorável. Sem contar que o artigo termina repetindo uma análise, como se fosse uma grande descoberta e uma grande novidade, que é, na verdade, para quem acompanha a imprensa, a dos chefes do Legislativo brasileiro: https://noticias.uol.com.br/colunas/tales-faria/2020/03/21/para-o-congresso-bolsonaro-quer-que-tentem-impeachment-para-ter-confronto.htm .

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