Por Rodrigo Oliveira Fonseca
O foco na ação: restaurar e reerguer o país
O encanto geral das direitas na Europa e fora da Europa com os regimes fascistas não passou por uma identificação ideológica, e sim pelo seu “exemplo de vitória sobre as forças da desordem” [1]. Por isso mesmo um provérbio famoso em defesa da Itália fascista era o de que “Mussolini fez os trens rodarem no horário”. A despeito de se falar de um programa fascista ou nazifascista de reconfiguração do Estado, de libertação dos seus fracionamentos e da corrupta pluralidade de partidos e interesses, o motor e o princípio dos fascismos sempre foi a ação. Daí a forte aversão dos fascistas às doutrinas políticas, a desimportância dos programas eleitorais, e uma mistura de ideias e referências bastante discrepante da relação dos comunistas com o campo teórico do marxismo, por exemplo. Para os fascistas, os chefes, com sua determinação e seus exemplos, sempre foram fatores muito mais determinantes do que as ideias. Como escreve João Bernardo [2],
[…] Mussolini, insistira sempre que era a sua intuição a traçar os rumos, livre de quaisquer barreiras doutrinárias. Logo no primeiro discurso que proferiu no parlamento após a tomada do poder ele declarou que “infelizmente não são programas que faltam em Itália, faltam homens e a vontade de aplicar os programas”.
Eric Hobsbawm [3], referindo-se a lideranças autoritárias ou conservadoras da época do entreguerras, como o rei Alexandre da Sérvia e o general espanhol Francisco Franco, estabelece que os únicos traços ideológicos comuns eram o anticomunismo e os preconceitos tradicionais de suas classes. Para o historiador inglês a própria conjuntura do entreguerras teria feito com que a Alemanha de Hitler e a Itália de Mussolini gozassem de um apoio bastante amplo, recebendo, inclusive, elogios de Winston Churchill [4]. Seja por conveniência da conjuntura, seja por identificação política, a análise histórica dos fascismos aponta para o fato de que esse extravasamento das fronteiras programáticas implica justamente na pouca ou nenhuma importância de tais fronteiras.
Assim, os fascismos conviveram bem com formas e expressões republicanas e monárquicas, com forças católicas e anticlericais, empresariais e trabalhistas, militares e milicianas, mostrando o poder de atração de toda uma série de enunciações em torno do fenômeno da revolução conservadora, desde uma improvisação e ousadia de linguagem por parte de um ministro italiano (rivoluzione conservatrice) até à consolidação de konservative Revolution como o signo de “uma tradição política que percorre todo um campo ideológico da direita alemã, ao menos de 1921 até 1934 e mesmo além, até 1940” [5].
Se o partido, ao lado das milícias fascistas, é tomado como uma das instituições fundamentais dos fascismos, ao mesmo tempo ele não pode ser mais do que um prolongamento e uma emanação da vontade do chefe. Mas um detalhe aqui é realmente notável: o carácter supraclassista adotado pelos movimentos fascistas acabou sendo adotado como regra geral de todos os grandes partidos contemporâneos, de direita, esquerda ou centro, seja nos EUA, seja na China, seja em um partido que se vende como “dos Trabalhadores”, seja em outro que se chama “Comunista do Brasil”. E desse modo, pela primeira vez na história, pôde-se conquistar o tipo de integração social ensejada pelo partido fascista [6].
Ainda em torno do princípio maior da ação, um dos maiores elementos pragmáticos da política fascista é a busca de uma mobilização permanente das massas, a “mobilização total” (totale Mobilmachung) da sociedade a serviço do Estado e sua defesa, notadamente a mobilização social contra os inimigos internos na Alemanha nazista, um dos elementos ideológicos e narrativos que originaram a fórmula nazista do Estado totalitário, ao lado da importação do termo italiano.
[…] se detecta na população comum dos regimes totalitários não a dissolução dos elos sociais, mas uma reorganização das redes de relacionamento a níveis muito profundos. Hitler, que nunca perdia a ocasião para se gabar de ser o maior, ou até o único, conhecedor do assunto, explicou uma vez: “Para dirigir as massas tenho de arrancá-las à apatia. As massas só se deixam conduzir quando estão fanatizadas. Apáticas e amorfas, as massas representam o maior dos perigos para qualquer comunidade política. A apatia constitui uma das formas de defesa das massas. É um refúgio provisório, um entorpecimento de forças que de súbito explodirão em acções e reacções inesperadas” [7].
O estímulo feito ano passado à denúncia e gravação de professores no Brasil, no espírito do projeto “Escola Sem Partido”, agora instalado no Ministério da Educação, é sinal desse esforço de mobilização popular contra inimigos internos, conforme discutiremos adiante. Mas existe também, no rol dos elementos que consagram o lugar primeiro da ação pragmática, um fator que é o avesso da mobilização popular e que se desenvolve mediante certas práticas linguageiras. É o trabalho com os eufemismos. Dentre as formas de manipulação entre significantes e significados manifestadas durante o regime nazista, de acordo com Ana Zandwais [8], o eufemismo parece ter sido o mais conveniente aos domínios das práticas políticas totalitárias, conferindo um caráter de alienação às políticas do Estado, produzindo o blefe como forma de subjugar e naturalizando a violência dos agentes estatais. Ou seja, tanto os discursos mobilizadores quanto aqueles desmobilizadores, ocuparam lugar de destaque no fundamento do pragmatismo fascista.
Dentro desse mesmo fundamento está a sustentação em forças políticas opostas — em geral em torno de equívocos, de objetos ideológicos paradoxais [9], como povo, nação e democracia. Não por acaso convergiram no apoio a Jair Bolsonaro os setores liberais que, a partir da crise econômica de 2014 e do ascenso de lutas da juventude precarizada, dos estudantes e dos trabalhadores, perceberam que o governo não conseguia mais apassivar a sociedade, como também aqueles setores que há alguns anos vinham se manifestando publicamente a favor de uma intervenção dos militares no cenário político. Bolsonaro fez carreira política como defensor do funcionalismo público, e mais particularmente dos militares, demarcando-se no debate público como um estatista. O truque utilizado para conciliá-lo com o grande empresariado foi chamado de “Posto Ipiranga”: a atribuição de toda a responsabilidade pela agenda econômica a um “Chicago Boy”, Paulo Guedes, que acompanhou de perto as reformas neoliberais implementadas no Chile da era Pinochet [10]. Para além disso, o trabalho de mobilização conjunta de setores ultraliberais e militaristas se tornou produtivo a partir de um jogo discursivo e ideológico em torno do signo democrático, cujo oposto eram os referentes Cuba e Venezuela — que jamais serviram de modelo aos governos petistas, criticados na verdade por não se alinharem automaticamente com a política externa dos EUA. Quanto a esse jogo ideológico em torno da democracia, Jacques Rancière mostra que, para os críticos do atual cenário democrático existente, o governo democrático seria ruim sempre que se deixa “corromper” pela sociedade democrática (que gostaria que todos fossem iguais e que todas as diferenças fossem respeitadas); mas seria bom sempre que “mobiliza os indivíduos apáticos da sociedade democrática para a energia da guerra em defesa dos valores da civilização, aqueles da luta das civilizações” [11], o que também é fortemente evocado pelo fascismo russófilo, caracterizado hoje pelo campo ideológico eurasiano [12].
Outro paradoxo do pragmatismo fascista ou fascistizante é que vetores do conservadorismo político usam e abusam da força mobilizadora da banalidade e da vulgaridade. Basta aqui o registro da comunicação ampla e imediata do presidente Bolsonaro com amplas parcelas da sociedade a partir da divulgação nas suas redes sociais, na forma de denúncia, de uma cena do carnaval paulista de 2019 em que um homem urina na cara de outro — prática conhecida das sessões de tortura realizadas durante o regime militar brasileiro de 1964 a 1985, com a grande e óbvia diferença da falta de consentimento do torturado, mas que, por se fazer no espaço recatado de um porão da polícia política, talvez seja considerada menos repulsiva e reprovável pelos conservadores radicais da extrema-direita, que utilizaram metonimicamente aquela cena recortada do carnaval para condenar o carnaval como um todo.
Outro elemento afim é justamente o vazio, a fraqueza de alguns dos personagens que se tornam mitos e lideranças dos movimentos direitistas. O próprio Olavo de Carvalho, principal ideólogo do governo Bolsonaro, em entrevista divulgada no dia 10 de abril de 2019 no programa televisivo Conversa com Bial, pontuou que há vinte anos vinha dizendo que “o primeiro sujeito que se apresentar candidato a presidente com um programa ostensivamente conservador vence, porque a população brasileira é conservadora”. Bolsonaro mesmo, enquanto liderança, não teria nada de excepcional.
Por fim, a importância da mentira (ou fake news) para o campo fascistizante. Anterior aos fascismos, um caso paradigmático da força política da mentira é o caso Dreyfuss, que começou em 1894 com a acusação forjada a um capitão do Exército francês, Alfred Dreyfuss, de origem judaica, que teria passado documentos militares secretos para o Exército alemão. A armação, valendo-se do forte nacionalismo antigermânico e do preconceito antissemita que atravessava vastos setores da sociedade francesa à época, foi sendo descoberta aos poucos, e ao invés de isso vir a dissipar o engodo, fez com que se erigisse uma intensa polarização na política francesa, que arrastou o julgamento de Dreyfuss por dez anos. Reconhecer a mentira, ainda que evidente, provavelmente abalaria as forças militares francesas que compunham o governo, de modo que a direita da época preferiu pagar esse preço. Mas existe outro caso ainda mais ilustrativo, aquele dos Protocolos dos Sábios do Sion. Ainda que fossem reconhecidamente forjados, o filósofo italiano fascista Julius Evola chegou a afirmar que “o essencial” era que aqueles documentos expressavam um sentimento autêntico acerca de uma desordem não acidental, mas planejada e descrita com exatidão nos protocolos [13], numa lógica parecida com a de se dizer que “é mentira, mas é verdade”, ou a do “não acredito em bruxas, mas elas certamente existem, e é isso o que importa”. E é mais que pertinente sublinhar o seguinte: essas mentiras não são necessariamente artifícios (ou não o são em primeiro plano) utilizados ardilosamente contra os inimigos, tratando-se antes de algo muito mais pragmático, com a crença genuína de que existe um fundo de verdade nisso que, eventualmente, “aparece” sob a forma de mentira. Basta ver que o industrial antissemita estadunidense Henry Ford, em seu livro O Judeu Internacional (1920), parecia acreditar sinceramente que “o bolchevismo é pura e simplesmente a realização do programa internacional contido nos Protocolos sionistas” [14].
As mentiras acabam dando vazão a sentimentos e percepções largamente compartilhados que se amplificam ainda mais. Mas como diz Harald Weinrich em seu livro Linguística da mentira, aquelas palavras com as quais muito se mentiu acabam se tornando elas próprias mentirosas, o que teria sido o caso — no contexto do nazismo e do pós-nazismo alemão — de Weltanschauung (visão do mundo), Lebensraum (espaço para a vida, território) e Endlösung (solução final) [15]. O aparecimento dessas palavras na boca de alguém o tornava imediatamente mentiroso ou vítima da mentira, representando, acrescentamos, o oposto da eficácia política (em termos de aceitabilidade daquilo que se diz) alcançada na década de 1930 por uma fórmula como totale Staat, Estado totalitário [16]. Com base no estudo de Jean-Pierre Faye das linguagens totalitárias, afirma Alice Krieg-Planque [17]: “É o processo de aceitabilidade efetuado pela fórmula que anuncia a consagração da palavra como questão política: é ele que dá às palavras um de seus poderes mais espantosos — agir”.
Entendemos, então, que as palavras e expressões tornadas mentirosas acabam funcionando como um avesso da “fórmula”, ou como uma fórmula explicitamente defeituosa, que evoca a inaceitabilidade e a falta de credibilidade para aquilo que com ela se diz. Hoje no Brasil talvez seja consideravelmente constrangedor falar de mamadeira de piroca e kit gay, imagens e termos que circularam desinibidamente durante a campanha eleitoral que levou Bolsonaro à presidência. Quando aparecem é como objeto de escárnio, na voz das oposições ao governo. E há toda uma série de outras palavras e expressões que vêm se configurando como “mentirosas” ou extraordinariamente equívocas em nossa conjuntura do dizer, como acabou a mamata, nova política, defesa da família e mesmo patriotismo e gripezinha. Posto o tanto que falharam ou vêm falhando e tropeçando no debate público, mostram-se assim incapazes de cumprir aquele papel fundamental de condutoras de aceitabilidade. Na falta de um léxico próprio para a aceitabilidade do fascismo brasileiro, não surpreenderá a adoção de um caminho ainda mais personalista, rasteiro e politicista, das idas e vindas do dia a dia entre apoios, desavenças e traições no cenário político. Um caminho, enfim, mais pragmático, que conta também com a adesão do seu antagonista oficial, o ex-presidente Lula, que já chamou a atenção da sua militância para não “torcer contra” o governo Bolsonaro [18].
Compreender o fascismo: 1) o conceito
Compreender o fascismo: 2) sonho e ódio
Compreender o fascismo: 3) o pragmatismo
Compreender o fascismo: 4) violência e modos de dizer
Notas
[1] HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. Tradução de Marcos Santarrita. 2ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 127.
[2] BERNARDO, João. Labirintos do Fascismo: na encruzilhada da ordem e da revolta. 3a edição, ampliada e revisada, 2018, p. 338. Disponível aqui.
[3] HOBSBAWM, 1995, p. 117.
[4] Em 1933 Churchill classificou Mussolini como “o maior legislador vivo”, e em 1927, quando era Ministro do Tesouro, disse que era “completamente absurdo pretender que o governo italiano não assenta numa base popular e não emana do consenso activo e prático das grandes massas. […] Se eu fosse italiano, tenho a certeza de que estaria inteiramente ao vosso lado, desde o começo até ao fim da vossa luta vitoriosa contra os apetites bestiais e as paixões do leninismo” — cf. a citação por João Bernardo (2018, p. 261-262), que chama a atenção para o fato de que no mesmo ano de 1927 o governo britânico lançava uma legislação proibindo as greves gerais, dificultando a convocação de greves de solidariedade e estabelecendo um sistema oficial de arbitragem nos conflitos.
[5] FAYE, Jean-Pierre. Introdução às linguagens totalitárias: teoria e transformação do relato. Tradução de Fábio Landa e Eva Landa. São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 70.
[6] BERNARDO, 2018, p. 1354.
[7] BERNARDO, 2018, p. 275.
[8] ZANDWAIS, Ana. Práticas políticas nacionalistas e funcionamento discursivo: totalitarismo, fascismo e nazismo. In: ZANDWAIS; ROMÃO (Orgs.), Leituras do político. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2011, p. 138-139.
[9] PÊCHEUX, Michel. Ideologia, aprisionamento ou campo paradoxal? Tradução de Carmen Zink. In: PÊCHEUX, Análise de Discurso. 2ª edição. Campinas, SP: Pontes, 2011 [1982], p. 107-119.
[10] Rocío Montes, O laço de Paulo Guedes com os ‘Chicago boys’ do Chile de Pinochet. El País, 31/10/2018. Disponível aqui.
[11] RANCIÈRE, Jacques, O ódio à democracia. Tradução de Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2014, p. 10.
[12] BERNARDO, 2018, p. 1358-1362; GLAZEBROOK, Dan. Vestindo a esquerda de camisas pretas: Alexander Dugin e a ascensão do fascismo “politicamente correto” Parte II. El Coyote, 15/07/2019. Disponível aqui.
[13] BERNARDO, 2018, p. 341.
[14] Citado em BERNARDO, 2018, p. 961.
[15] WEINRICH, Harald. Linguística da mentira. Tradução de Maria Aparecida Barbosa e Werner Heidermann. Florianópolis: Editora da UFSC, 2017 [1966], p. 45.
[16] FAYE, 2009.
[17] KRIEG-PLANQUE, Alice. A noção de “fórmula” em análise do discurso: quadro teórico e metodológico. Tradução de Luciana Salazar Salgado e Sírio Possenti. São Paulo: Parábola, 2010, p. 46.
[18] “Eu quero que ele (Bolsonaro) faça o que precisa ser feito”. Cf. “Lula na TVT: ‘Não dá pra torcer pra dar errado. Quando um governo dá errado, quem perde é o povo’”. Redação RBA, Rede Brasil Atual, 16/01/2020. Disponível aqui.
As ilustrações reproduzem obras, ou detalhes de obras, de Francis Bacon (1909-1992).