Por Caíque de Oliveira Sobreira Cruz

“O operário é constrangido a viver nessas casas já arruinadas porque não pode pagar o aluguel de outras em melhor estado […] De quando em vez, diante da ameaça de epidemias, a sonolenta consciência dos serviços de higiene é despertada” (ENGELS, 2010, p. 101).

“Quando a epidemia deu seus primeiros sinais, uma onda de pavor envolveu a burguesia da cidade. De súbito, ela se recordou da insalubridade dos bairros pobres — e tremeu com a certeza de que cada um desses bairros miseráveis iria se constituir num foco da epidemia, a partir do qual a cólera estenderia seus tentáculos na direção das residências da classe proprietária. Rapidamente se designou uma comissão de higiene para inspecionar aqueles bairros e preparar um relatório rigoroso de suas condições ao Conselho Municipal” (ENGELS, 2010, p. 105-106).

“Dadas tais condições, como esperar que a classe mais pobre possa ser sadia e viva mais tempo? Que mais esperar, senão uma enorme mortalidade, epidemias permanentes e um progressivo enfraquecimento físico da população operária?” (ENGELS, 2010, p. 138).

“Quando evocamos as condições em que vivem os operários, quando nos lembramos do amontoamento de suas casas e do quão abarrotadas de pessoas elas são, quando recordamos que doentes e sadios dormem num único e mesmo cômodo, às vezes na mesma cama, ficamos surpresos pelo fato de uma doença tão contagiosa como o tifo não se propagar ainda mais. E quando pensamos nos parcos recursos médicos à disposição dos doentes, com pessoas abandonadas sem nenhum cuidado e ignorantes das prescrições dietéticas mais elementares, a mortalidade parece-nos baixa” (ENGELS, 2010, p.140).

Percebe-se nestes trechos de Engels, publicados em 1845, que o presente repete o passado. Quando o cerco atual (2020), provocado pelo coronavírus, começar a fechar, os mais afetados serão aqueles desprovidos do mínimo possível de qualidade de vida. Aqueles que não têm condições de ficar 24h dentro de casa, pois vivem da venda da sua força de trabalho e precisam sair para garantir o básico para si e sua família, matando um leão a cada dia, aqueles que não podem evitar aglomerações, aqueles que não podem se isolar em quarentena pelo fato de não terem moradias dignas e estarem em dezenas no mesmo cômodo, aqueles que não podem se higienizar corretamente, pois não têm condições financeiras para tanto, são os trabalhadores. Mas, também, aqueles que não podem realizar quarentena sem sair de casa, pois nem casa eles possuem para habitar, nesta sociedade em que existem mais moradias vazias e desocupadas do que moradores de rua em todo o mundo.

Alastrando-se este quadro triste de pandemia, os mais afetados gravemente serão aqueles com imunidade baixa que não se alimentam direito ou que morrem de fome, mesmo havendo menos pessoas passando fome no mundo (quase 1 bilhão) do que alimentos em circulação que são descartados no lixo diariamente. Os mais atingidos deverão ser aqueles que estão trancafiados em locais aglomerados, insalubres e desumanos, por terem atentado contra algum bem valioso da ordem vigente. As doenças orgânicas não escolhem classe ou raça para atacar, mas a sociedade, por intermédio do seu sociometabolismo, designa quais grupos irão sofrer o maior impacto e quais terão a mínima chance de se proteger, isolar-se, higienizar-se, medicar-se, alimentar-se, ter atendimento etc.

Por isso, rejeitei o pedido feito por alguns amigos e amigas para gravar um vídeo ou redigir um texto com palavras acolhedoras para este momento catastrófico por que passa o mundo. Pediram-me “filosofia” para orientar a nossa desordem subjetiva em meio ao caos e calamidade pública, porém não acredito que essa possa ser a saída, as ações concretas valem mais do que palavras vazias largadas ao vento, que são as únicas coisas que posso fazer neste momento, enclausurado em casa. Posso recitar poemas belíssimos, usar um vocabulário erudito para envolver pessoas em “pseudoanálises” filosóficas sobre a temática em voga, como fazem com bastante elegância, sapiência e perspicácia três ou quatro “filósofos” da moda no nosso país, quase que diariamente, nas televisões, rádios, nas mídias de grande alcance. Passando-se por detentores de um grande conhecimento, clamam para um tal despertar de consciência individual, como se cada indivíduo isolado pudesse e tivesse possibilidades de reverter quadros graves e, mais do que isto, como se fossem os grandes responsáveis por tais quadros por falta de “consciência”. Como disse um em rede nacional, “existe o ignorante por escolha”. Desprezam completamente as condições em que estes ditos indivíduos estão colocados dentro do seio social e que a saída não pode ser outra, senão coletiva, alterando a totalidade de uma sociabilidade que suprime os efeitos das ações destes mesmos indivíduos. Mas, se eu os imitasse, como me pleitearam amigos(as) que respeito muito, o que eu diria para a maioria da população? Quais palavras de conforto posso trazer para aqueles que citei no decorrer deste singelo escrito? Como posso “orientar” que fiquem em quarentena se as condições objetivas não lhes permitem fazê-lo? Escreverei lindas grafias ou bradarei vocábulos para quem e para o quê? Pensar no outro amplia o horizonte da nossa ótica e nos demonstra que a realidade é muito mais dura do que apenas “conselhos” em “redes sociais” às quais grande parte da população brasileira nem tem acesso, com base no que explicitei num artigo em 2018 que, em termos de dados, deve estar impreciso e desatualizado por poucas frações, já que publicado há quase dois anos. Vejamos: “quando mais de 70 milhões de brasileiros não têm sequer acesso à internet […] segundo estudo da União Internacional de Telecomunicações, e de acordo com a Internet.org, cerca de 4 bilhões de pessoas no mundo não têm nenhuma forma de conexão, o que significa mais da metade da população mundial” (CRUZ, 2018, p. 440-441). Evidentemente que não são ações totalmente inválidas e devem continuar, entretanto são apenas grãos de areia perante a imensa montanha que teremos de escalar e desbravar daqui em diante.

Para eles, os desvalidos, não há nada mais a dizer, pois estes já não têm mais nada a perder, aliás nunca tiveram. Só há uma única coisa que o nosso povo tem e, sobre esta referida coisa, eu confio cegamente que é uma ótima escolha perdê-la, são as suas correntes, os seus grilhões, as suas amarras sociais.

Contudo, apesar dos pesares, dos amores e das dores, tenhamos persistência neste momento de calamidade pública. Avançaremos e superaremos mais este caos. O gênero humano, creio eu, ainda está em fase germinal, viveremos muito mais para poder criar outro mundo. Quem sabe mais solidário, comunitário, onde possamos dispor de toda nossa plenitude, desenvolver todas as nossas capacidades individuais sem que sejamos limitados pelos condicionamentos concretos. Socialmente iguais e individualmente diferentes. Um mundo onde todos possam lutar em conjunto, com as mesmas armas, contra as pandemias. Que nossos problemas sejam somente orgânicos e que não sejam agravados pelos problemas sociais, mas sim solucionados. A individualidade, a particularidade, não pode engolir a coletividade.

Essa é a grande reflexão que devemos fazer. Não só agora, mas em especial neste momento em particular isto se torna mais evidente. Afinal, estaríamos tendo tanta dificuldade em lidar com estes problemas se estivéssemos noutra sociedade, numa economia planificada, racionalizada com planos coordenados? Com intensivos investimentos na área da saúde e ciência? A importância desta reflexão é compreender como determinada sociabilidade pode agravar um problema que seria da ordem exclusivamente orgânica, biológica. Como poderemos lidar de forma precisa e cirúrgica com esta crise orgânica/biológica que agora também chegou ao Brasil, por exemplo, com a imposição do teto de gastos, a EC 95? Com uma economia privada, onde não há racionalidade estrutural dos atos em escala global, mas sim uma anarquia econômica em que os donos dos meios de produção, per se, definem de que forma utilizaremos a ciência, os medicamentos e a que preço os comercializaremos sem maiores intervenções planejadas, centrados nas leis de acumulação do capital, estes precisam ser regulados imediatamente para uma possível redução de danos, em conjunto com um forte investimento público que traga ampliação da proteção social e a revogação urgente da esdrúxula EC 95, para que se possa remanejar mais recursos aos setores necessários. Deve-se realizar, também, a estatização dos setores industriais estratégicos para a produção farmacológica.

Portanto, este é um momento muito grave, mas, também, muito singular para aqueles que refletem sobre a realidade em que estão inseridos. Escancara para nós a forma desigual e injusta em que estamos organizados socialmente. Um filósofo húngaro que não está mais entre nós afirmava que estamos imersos dentro de uma crise estrutural que não pode mais se resolver dentro das balizas do sistema capitalista.

Bom, amigos(as), camaradas, força nesta batalha barbarizante que estamos enfrentando, cuidem-se muito, porém estas angustiantes palavras foram as únicas que eu pude repassar para vocês neste momento. Forte abraço a todos e, quem sabe, venceremos! Não só o vírus, mas, também, a sociedade cruel que o recepcionou.

Referências

CRUZ, Caique. A subsunção do real ao estético, a miséria do pós-modernismo. REBELA – Revista Brasileira de Estudos Latino-Americanos, v. 8, n. 3, 2018.

ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2010.

Caique de Oliveira Sobreira Cruz é graduado em Direito pela Universidade Católica do Salvador e pós-graduando em Sociologia pela Estácio. Endereço eletrônico: [email protected].

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