Por Guilherme Cogo, Giovanna Borges Bortotto e Arnon Manhães Ceolin

Durante os primeiros meses deste ano tivemos a apresentação do Big Brother Brasil que, com os efeitos da quarentena, tornou-se símbolo do entretenimento, mas quais questões podemos abordar acerca do sucesso do BBB e dos reality shows em geral? Convido você a pensar junto comigo no decorrer desse pequeno e singelo texto acerca dos reality shows.

Bem, começo com uma frase que me fez refletir bastante acerca do sucesso e da popularidade que foi alcançada. A frase é da socióloga Silvia Viana [1], autora do livro Rituais de Sofrimento [2], e diz que: “Os reality shows são mal-estar enlatado para consumo, e isso só é possível em uma estrutura social que já não se preocupa com autolegitimação alguma” [3].

Interessante para pensarmos juntos com ela a respeito de como esse tipo de entretenimento e seu modelo vencedor — afinal não há como chegar a vinte edições, como o BBB, sendo um fracasso — se assemelha ao modo de produção capitalista com a adoção do capitalismo de acumulação flexível em que a todo momento nós temos de ser fortes, temos de superar qualquer tipo de dificuldade desde as mais básicas às mais complexas para sobrevivermos. Durante uma entrevista para a IHU On-Line [4], Silvia Viana coloca: “O assustador é que essa mesma estrutura organiza nossa existência no atual modo de produção: trabalhamos para arrumar mais trabalho, para não sermos demitidos, para sobrevivermos… e se retirarmos essa fantasia que organiza nossa existência, o que resta é o ‘Truman Show’, o tédio insuportável da vida desprovida de sentido”.

Fiquei refletindo sobre essa passagem e buscando compreender por qual razão, ou por quais variadas razões, a edição comemorativa de número 20 do BBB fez tanto sucesso. Essa edição não foi como as outras por um motivo inicial. Houve a divisão entre os participantes considerados “pipoca” e “camarote”. Explico: os participantes do grupo pipoca eram inscritos e não-famosos; já o grupo camarote era formado por subcelebridades diversas como influenciadores digitais, atletas, cantores e atores.

Entretanto, acredito que um conjunto de fatores contribuiu — sorte da Rede Globo — para o sucesso deste empreendimento televisivo. O principal que destaco neste texto é ter Jair Bolsonaro como Presidente da República. Outros temas de destaque podem ser indicados, como o levantamento das pautas feministas — dentro do espectro do feminismo liberal —, o levantamento de pautas ligadas ao racismo e uma busca de vingar acontecimentos do cotidiano, dentro do contexto do neoliberalismo e do capitalismo de acumulação flexível de forma estrutural.

O neoliberalismo e sua escola foi gerado durante o Colóquio Walter Lipmann em Paris no ano de 1938, com a intenção de buscar a superação do velho liberalismo econômico e a oposição ao coletivismo que naquele momento estava em voga. Após quase uma década, a partir da Société du Mont Pèlerin, fundada em 1947, busca-se restabelecer preceitos liberais e internacionalizar tais pensamentos, defendendo que o intervencionismo, e não o conjunto das políticas liberalizantes, é responsável pela Grande Depressão e que as medidas liberais asseguram o Bem-Estar de forma natural, repudiando a atuação do Estado. Isso se dá em dissonância com o que foi defendido por Keynes em sua Teoria Geral, que marcou época na era posterior à 2ª Guerra Mundial, uma era que ficou conhecida como os Trinta Anos Gloriosos ou “era de ouro do capitalismo”. Keynes fez germinar os princípios do Estado de Bem-Estar Social [5], em que o Estado toma maiores proporções de gestão, atuando no equilíbrio econômico e social, gerindo inclusive a reprodução da força de trabalho [6], garantindo estabilidade econômica, investimentos nos mais diversos setores e o “pleno” emprego. O Estado atua também na área de proteção social, e diversas políticas sociais são garantidas, mobilizando cobertura social à educação, saúde e previdências de toda sorte.

Entretanto, os gastos militares dos EUA no fim da década de 1960 provocaram uma forte crise fiscal e dificultaram a manutenção de princípios estabelecidos na Conferência de Bretton Woods. Assim, a década de 1970 é marcada por instabilidade e queda nas taxas nacionais de crescimento, afetando as nações de forma generalizada, tanto centrais como periféricas [7] (GOWAN, 2003) [8].

Dessa forma, as ideias dos pensadores chamados neoliberais voltaram à superfície das discussões políticas e econômicas e as políticas de redução do déficit público e dos gastos estatais são linha de frente da agenda neoliberal, implementada especialmente a partir do Consenso de Washington. Mas não apenas o Consenso de Washington reúne medidas de restrição fiscal, como também dá o pontapé de partida neste novo movimento de políticas neoliberais, permanecendo nas próximas décadas (1990, 2000 e 2010) majoritariamente como bastião das “saídas” encontradas por diversos países às crises financeiras que se deflagraram.

Mas o que isso tem a ver com o sucesso do BBB 20?

Podemos avaliar que gerações nasceram e vivem durante este período neoliberal. Afinal são três décadas inteiras dentro deste modelo e caminhando para a quarta década de neoliberalismo, que está para além de um ordenamento econômico, mas é o molde de um sujeito. O neoliberalismo passou a ser uma racionalidade e tem como mote produzir sujeitos que internalizem sua vida com a de empresas sempre em concorrência e que veem nas outras pessoas apenas competidores a ser superados custe o que custar.

Podemos fazer essa conexão com os participantes e com o modelo de programa em si, que é um reality show que humilha, vigia e faz os participantes sofrerem. Tudo baseado no vazio da existência humana, uma situação que necessita esvaziar o ser humano da compaixão para assistir a um reality show e considerar normal o que acontece lá dentro, torturando os participantes e retirando direitos humanos e violando o Estado Democrático de Direito, quando os colocam em situação desumana de privação de sono e privação alimentar, por exemplo, em nome do entretenimento.

A última coisa que importa no reality show é a vigilância com as câmeras. O que mais importa para um reality show é o entretenimento na humilhação. A necessidade de fazer o outro se esforçar para alcançar o nada. Se manter vivo e aniquilar o outro. O “Grande Mestre”, que no caso é o Tiago Leifert, e a produção do programa, representada pelo Boninho, se omitem de qualquer responsabilidade de agressão em relação aos participantes. Quem tem de fazer o trabalho sujo são os participantes votando entre si, se eliminando, tudo em prol de uma sobrevivência de uma semana, no máximo. É por conta disso que vêm as justificativas vazias, que apontam as faltas de afinidade e não comprometimento com o jogo, por exemplo, já que só com essas justificativas vazias o psicológico entende que aquilo é necessário, mas não é. Por isso, quando a participante Manu Gavassi apertou o botão do quarto branco — episódio de tortura — com tamanha rapidez “foi sem graça”. Porque a humilhação e a tortura acabaram rápido. Afinal, ela desvendou a ideia do “Grande Mestre” e a findou.

A vigilância pouco importa, porque a vigilância em si mesma é sacal [maçante, maçadora]. Não importa. Um exemplo disso é o filme Show de Truman. Qual a graça de filmar uma pessoa o dia inteiro? No dia a dia já é infernal. A pessoa acorda, escova os dentes, vai ao banheiro, toma café, dá um beijo na família, sai para trabalhar, trabalha durante 8 ou 10 horas na frente de um computador, volta para casa, dá um beijo na família, toma banho, janta e vai dormir. A vigilância por si só não basta. O que prende é a humilhação, a necessidade de se sentir pertencente e decidir a vida do outro através das votações, a aniquilação, a eliminação. O sadismo por trás dos reality shows prende a atenção e as pessoas se tornam descartáveis.

As pessoas são tão descartáveis que se eu pedir para você, que está lendo este texto, citar 10% do número de participantes dos BBB, você não vai conseguir. E 10% de participantes, considerando que as edições têm 20 pessoas e que foi a vigésima edição, significa que tivemos 400 participantes. Você não consegue elencar 40 pessoas. Você não consegue elencar quiçá 5%, que são 20 pessoas. As pessoas pouco importam. O que importa é o descarte. Por isso as pessoas vão sendo eliminadas, canceladas ou qualquer outro termo que se queira usar, mas o produto Big Brother permanece cada vez mais forte. Todo mundo sabe o que é o Big Brother. Todo mundo sabe quem é o Pedro Bial, quem é a Marisa Orth e quem é o Tiago Leifert. Todo mundo sabe quem é o Boninho. Todo mundo sabe o que é A Fazenda, quem é Britto Jr. ou quem é Marcos Mion. O produto se fortalece, mas há um esvaziamento total do ser humano em si, já que você o elimina, aniquila e descarta.

A partir disso, aponto como hipótese que o sucesso do BBB 20 também é uma forma de suportar o dia a dia e se sentir pertencente a algo, já que ter Jair Bolsonaro na Presidência da República é o que há de mais repugnante no cenário brasileiro, em decorrência do que ele significa e é, praticando uma forma de gestão da morte, nos termos daquilo que Mbembe (2018) [9] conceitua como necropolítica e necropoder. Esta potencialidade necrótica é uma das características fundamentais da forma contemporânea de Estado, que emerge no contexto do neoliberalismo, e que se expressa no alargamento das malhas punitivas, no recrudescimento penal e policial, no encarceramento em massa, no genocídio da juventude negra e periférica e afins. Esta forma de Estado se intensifica em um período pandêmico pela gestão da morte, matando e deixando morrer. Fica evidente uma política de controle social que no Brasil tem vasta historicidade, uma vez que é um país estruturado com base no racismo e no patriarcalismo, que produz cotidianamente um conjunto de práticas e relações sociais desiguais, sendo o 7º país mais desigual do mundo em termos de renda (tendo como base o coeficiente Gini [10], que mede desigualdade e distribuição de renda) e cujos sujeitos sofrem a ação de precarização de suas vidas, seguindo critérios de classe, raça e gênero.

Guilherme Cogo é Graduado em Ciências Sociais e Mestrando em Política Social pela Universidade Federal do Espírito Santo

Giovanna Borges Bortotto é Bacharel em Relações Internacionais pelo IERI-UFU, Mestranda em Política Social pelo PPGPS-UFES

Arnon Manhães Ceolin que é Graduado em Ciências Sociais e Mestrando em Política Social pela Universidade Federal do Espírito Santo

Notas

[1] Professora de sociologia na Fundação Getúlio Vargas (FGV) e doutora pela USP.
[2] RODRIGUES, S. V. Rituais de sofrimento. São Paulo: Boitempo, 2013. 191 p.
[3] Reality shows: uma reprodução do capitalismo. Entrevista especial com Silvia Viana.
[4] Reality shows: uma reprodução do capitalismo. Entrevista especial com Silvia Viana.
[5] Esta terminologia foi escolhida em tradução do termo welfare state.
[6] Trata-se de um período de expansão da lógica fordista de trabalho, especialmente com a hegemonia estadunidense e sua forte produção industrial. O Estado garante um conjunto de políticas de cobertura de riscos sociais (desemprego, adoecimento, etc.), além de um aumento real dos salários, transformando os trabalhadores em consumidores. A obra de Gramsci (2001) traz insights importantes sobre a reprodução do trabalho neste contexto, especialmente com a ideia de que há uma “nova socialização”, um novo tipo de homem em voga a partir da estrutura industrial e do trabalho que se impõem. O aparelhamento do trabalho e o desenvolvimento das forças produtivas só é possível com o nascimento de uma nova ideologia, que nasce no interior da fábrica e a ultrapassa, dominando as outras esferas da vida humana.
[7] Com o “Choque Volcker”, em 1979, numa tentativa dos Estados Unidos de recuperação do dólar, inicia-se uma fase de forte impacto sobre as economias periféricas, em especial as latino-americanas, irrompendo uma severa crise das dívidas públicas nestes países. Diversos países latino-americanos declaram moratória por incapacidade de pagamento destas dívidas, distinguindo os rumos de um novo modus operandi do capitalismo, especialmente para a periferia do Sistema Capitalista. As transformações vistas a seguir no contexto brasileiro são de extrema relevância para o tema deste artigo, já que acentuam o caráter de redução da atuação estatal.
[8] GOWAN, Peter. A Roleta Global. Rio de Janeiro: Editora Record, 2003.
[9] MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. São Paulo: n-1 edições, 2018.
[10] Por que o Brasil é o sétimo país mais desigual do mundo.

Ilustram este artigo fotografias de Tyler Callahan

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