Por Rafael Ouriques

Eram exatas dezessete horas quando o ministro do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello, liberou os aguardados trechos do vídeo da reunião entre Bolsonaro e seus ministros. Data e hora estavam marcados há dias, alimentando o suspense. Como tudo na internet, rapidamente as cenas se espalharam na rede. O plantão da emissora de maior audiência no Brasil interrompe sua programação usual. Edições recortam os “piores momentos”, fazendo parte da esquerda vibrar. No submundo do Bolsonistão, os “melhores momentos” incendeiam a claque. Não é difícil entender o paradoxal efeito causado pela divulgação daquilo que seria, segundo a defesa de Sérgio Moro, “uma das provas cabais da interferência do presidente na Polícia Federal afim de proteger a si e aos seus”. Ambos os lados, civilização e barbárie, comemoraram simultaneamente porque enxergam e escutam aquilo que querem.

É verdade que poucos apostavam numa bala de prata a essa altura, mas o estrago produzido pela divulgação do vídeo foi abaixo da expectativa. Era improvável que fosse diferente, visto que o acusador, nesse caso, mantivera uma cumplicidade canina com o acusado enquanto estivera à frente do Ministério da Justiça por exatos quinze meses. Para não entrar explicitamente como associado nos crimes, Moro tem se mostrado cauteloso em suas denúncias [1].

A boa recepção nos dois polos antagônicos revela o óbvio: que o fascismo bolsonarista cria uma realidade paralela em que o mundo concreto é irrelevante, pois ele se constitui quase exclusivamente de percepções “internas”, tecidas numa complexa e contínua rede de ódio, alimentada por fake news. É o extremo de “o mundo é minha representação”, como inicia Schopenhauer a sua obra magna [2]. Não estão cegos, mas programados para enxergar de modo completamente diferente. Por este motivo, os que ainda estão hoje ao lado de Bolsonaro são inalcançáveis. Como apontou o economista Ladislau Dowbor:

[…] a direita usa argumentos e sentimentos que colam fundo nas pessoas, pois mais fortemente ancoradas nas emoções, nos sentimentos de grupo, coesão, bandeira, religiosidade, autoridade e obediência. São mensagens que ecoam mais fortemente no emocional do que no raciocínio, e que em particular permitem dar uma aparência de legitimidade ética ao ódio [3].

Nos últimos tempos, tem sido comum a proliferação de textos de desabafo e fúria com tudo isso. Ao expor o ódio às “minorias”, o vídeo da reunião gerou ainda mais revolta. Mas o que há de novo? Nada. É preciso ter a consciência de que o apoio atual a Bolsonaro, a esta altura, é mais às ideias que ele personifica do que ao indivíduo. Essa divisão não é tão simples, mas demonstra que o fascismo no Brasil é maior do que o sujeito, por isso terá vida própria após o declínio do líder. Ele representa uma visão de mundo que podemos adjetivar negativamente o quanto quisermos, que o núcleo da base não mudará sua opinião. Não existe cegueira que supere todos os indícios fortíssimos dos graves crimes cometidos pela famiglia do presidente, por ele mesmo e por seus amigos, inclusive de corrupção, “mal” que tanto alarde hipócrita causa entre seus seguidores. A verdade, ao que parece, é que enquanto Bolsonaro for um símbolo do que é, continuará tendo apoio irrestrito. Sobre os que escolhem deliberadamente a cegueira, disse o escritor português José Saramago, “penso que não cegamos, penso que estamos cegos, cegos que vêem, cegos que, vendo, não vêem” [4].

Trata-se de um projeto de sociedade que não esconde seu desejo na destruição de absolutamente tudo que não seja seu reflexo. Daí seus esforços em parir um mundo onde inexistem serviços públicos essenciais, com pessoas armadas até os dentes, meio ambiente solapado, trabalhadores sem direitos, extermínio de quilombolas e indígenas, vigilância de opositores, censura e submissão a milicianos e evangélicos fanáticos. Como disse Bolsonaro em 2017, “as minorias se adequam ou simplesmente desaparecem”. Entretanto, essa vontade de potência ainda está limitada pela realidade que demonstra ser, na melhor das hipóteses, 25-30% os brasileiros que querem um país nesses termos. Todavia, não nos esqueçamos que até 1932 os nazistas não tinham a maioria, e apenas uma pequena parcela no parlamento aceitava suas propostas.

Diante de tudo, algumas das questões colocadas para o futuro são: mesmo após o ocaso do “Messias”, que fazer com seu legado maldito? É possível conviver com essa gente de ação e discurso odioso? Podem fazer parte do jogo? Que garantias teremos de que esse rebanho não será conduzido por outro pastor falando o que querem ouvir, unindo os fascismos difusos que sempre estiveram em nossa sociedade?

A cada novo gesto, discurso e acusação de que tomamos conhecimento, acumula a vontade de apontar o dedo para os que votaram nele. Todos temos casos na família ou entre amigos. Contudo, cada novo ato público de bolsonaristas revela uma fissura entre seus apoiadores. Também é notório que parte da classe média e da direita rica — seus pilares desde o início — já desembarcou. Muitos estão indecisos, outros apenas não se arrependeram publicamente, seguem calados. Devemos julgar que essas pessoas ainda possam estar em disputa, mesmo que de forma limitada às pautas muito específicas. A história é repleta de casos em que, contra um poderoso inimigo comum, a esquerda buscou aproximação com grupos divergentes. O que seria da Resistência italiana na sua luta antifascista sem a frente ampla formada por católicos, comunistas, liberais, socialistas, monarquistas, anarquistas, entre outros? Associaram-se, inclusive, àqueles que em um primeiro momento apoiaram a ascensão de Mussolini ao poder. Como o filósofo Marcos Nobre observou:

Não pode acontecer de uma parte do sistema político entregar a outra para os leões e transformar o jogo político em um jogo de destruição do adversário. O que precisa voltar é a regra de convivência. Isso é o que permite um impeachment que nos livre de Bolsonaro. Caso contrário a estrutura fica igual e vai continuar produzindo outros Bolsonaros [5].

Tal pacto não significa minimizar o voto na chapa Bolsonaro-Mourão em 2018. Diferente do estelionato eleitoral sofrido por parte da esquerda após a eleição de Dilma em 2014 — que venceu com um programa garantidor de direitos, mas na prática aplicou reformas neoliberais —, Bolsonaro sempre foi muito claro nos seus propósitos. Nenhum eleitor dele jamais poderá afirmar que foi enganado. Não podemos negar, inclusive, que ele tenta entregar tudo aquilo que prometeu em campanha. Quem ver o vídeo da reunião e reler seu “programa” enquanto candidato, verá um esforço contínuo para realizá-lo ponto a ponto, algo que toda classe política, especialmente a esquerda, deve tomar como reflexão. É preciso reconhecer, também, que foi o não cumprimento de promessas de campanha que ajudou a sedimentar a crença geral de que “político promete, mas não cumpre” — nos trazendo até aqui, à beira do abismo.

Bolsonaro é, sob qualquer ponto de vista, um ser ignóbil e ignorante, mas não estúpido. Sua carreira como militar — ainda que pífia —, o preparou para matar, não para construir, assim como para combinar estratégia e improviso. Por isso, um ano após sua eleição ele não entrega nada além do desmonte do SUS, da educação pública, da cultura, da economia, da Amazônia, da República, e da própria Democracia. Nada mais ele sabe fazer. Entretanto, sua relativa perícia em se colocar e sair de saias justas aponta que a superficialidade de uma reunião teatral como a que vimos, mais semelhante a uma peça de propaganda, com seus discursos prontos, parece, sob muitos aspectos, jogada ensaiada. Como escreveu o poeta e dramaturgo alemão Bertolt Brecht, “um bom propagandista transforma um monte de esterco em local de veraneio” [6].

O que foi dito naquela reunião pode ter causado revolta entre seus opositores, mas foi música para os ouvidos de seus apoiadores. Vimos sua base atiçada após a divulgação do vídeo. É provável, inclusive, que o mesmo consiga reter parte daquele sutil, mas contínuo, derretimento verificado na aprovação do governo desde a saída de Sérgio Moro. Nada inédito além da habitual idiotia bolsonarista, mas o fato de a expressar em conversa interna — e oficial — pode atestar uma espontânea “vontade sincera” em “mudar o país”, cujo impacto é ainda maior do que ver e ouvir as mesmas coisas em lives ou no cercadinho em frente ao Alvorada. Ainda assim, a impopularidade tenderá a crescer na medida em que, infelizmente, mais vidas sejam ceifadas pelo vírus e pela política genocida do presidente, sobretudo após a brutal crise econômica prevista.

Quanto aos efeitos do vídeo, o jornalismo — grande ou pequeno — está sendo o grupo que, no momento, melhor uso tem feito do material, apontando o desgoverno com edições bombásticas e descrições minuciosas do que foi dito e intencionado. A linguagem obscena empregada — de envergonhar até Dercy Gonçalves — também contribui para o espetáculo. Há espaço para investigar crimes graves conforme a disposição do STF e da PGR — do indicado Augusto Aras. A oposição, afastada das ruas pela necessidade de evitar a já dramática propagação do vírus, deve encontrar formas de mobilizar sua revolta pelos meios disponíveis: nas redes sociais, nas varandas e janelas. Mesmo confinados, é possível perturbar a ordem, fazer barulho, pressionar. O momento é oportuno para a construção de novas estratégias de luta nos meios digitais — e que serão úteis para quando pudermos novamente ocupar as ruas, como diz a canção do Clube da Esquina, num “rio de asfalto e gente, gente, gente, gente, gente…”

Rafael Ouriques Vasconcelos de Moraes é mestre em História Social da Cultura pela UFRPE. Graduado em História pela UFRPE. Também é professor no Ensino Básico da rede privada. E-mail: [email protected].

Referências

[1] Sobre o embate entre Sérgio Moro e Jair Bolsonoro, ver o meu artigo “Moro versus Bolsonaro: um embate mortal e inevitável”, Passa Palavra, 12/05/2020. Disponível aqui.
[2] SCHOPENHAUER. Arthur. O Mundo como Vontade e Representação. São Paulo: Contraponto, 2001.
[3] DOWBOR, Ladislau. “Esquerda e Direita diante da Ética contemporânea”. Outras Palavras, 03/05/2014. Disponível aqui.
[4] SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira: romance. São Paulo: Cia. das Letras, 1995.
[5] BETIM, Felipe. “Nobre: ‘As chances de Bolsonaro são baixas. Quando Roberto Jefferson entra, é o beijo da morte de qualquer presidente’”. El País, 26/04/2020. Disponível aqui.
[6] BRECHT, Bertolt. Poemas 1913-1956. São Paulo: Ed. 34, 2000. p. 196.

As obras escolhidas para ilustrar o artigo são da autoria de Maurizio Cattelan (1960-).

6 COMENTÁRIOS

  1. “A oposição, afastada das ruas pela necessidade de evitar a já dramática propagação do vírus,”

    A esquerda já estava afastada das ruas e por motivos endógenos. Quem lê acha que a esquerda estaria nas ruas se não houvesse epidemia. Se não esteve nas rua na reforma da previdência, agora que não estaria.

    Aliás, na tal reunião Guedes se gabou disso, de ter aprovado a reforma da previdência no Brasil enquanto na França havia passeatas.

  2. Uma esquerda que deixou de ser perigosa,tem como principal marca a ausência das ruas.

  3. Se um dia foi perigosa -haja controvérsia!- a esquerda (de quem ou em relação a quê?) está mais para periguete, sequelada pela doença senil do leninismo e suas inúmeras mutações. Red-brown inclusa.

  4. DEMANDA AO PP: Vamos debater a questão da(s) Frente(s) Antifascista(s): Quem entraria numa Frente contra os Fascismo,quem deve ficar de fora,até onde iria nossa “unidade” antifascista? Frente de Esquerda,como ficam os Anti-Capitalistas? Esse é um debate sempre necessário.

  5. Joelda,

    Frente supõe a existência de movimentos e organizações efetivas.
    O que falta na esquerda são lutas, movimentos. Primeiro que se crie isso para depois se pensar em pontos de unidade.
    Frente Antifascista é o que na prática no Brasil atual? Uma Frente pra derrubar Bolsonaro?

    Bastante abstrato isso se a questão econômica e o neoliberalismo são deixados de lado. Na atualidade brasileira é impossível separar neofascismo e neoliberalismo, e nisso o PT na oposição tem tido razão.

  6. Sobre Domingos antifas no se esqueçam do protetor solar

    O chamado para o debate sobre “Frentes” vem na esteira do sucesso pop do momento, os “antifas”, moeda em alta no mercado de postagens do vício digital reinante. De Lives a textos, uma infinita procissão de art designer tornou o termo mais ambíguo do que já era. Talvez a catarse brasileira pelo salvador tenha no antifa a nova figurinha mitológica pós pós pós qualquer coisa.

    Pois bem vamos aos fatos inexoráveis da vida:

    Esperar pelos antifas para desatar o nó da estrutura social abjeta deste país é o mesmo que esperar por óvnis no fim da tarde.
    Pensar que “antifas anarquistas” serão capazes de algum gesto organizador,apenas evidencia o Momentum confusione reinante,pela direita,na esquerda e mesmo entre os anarquistas.
    Esperar que o Domingo Antifa tenha algum dedo anarquista,como nos EUA, é conhecer pouco a realidade, e a realidade do anarquismo atual no país. Vamos falar sério: Anarquistas estão para a realidade brasileira como takions estão para a física,sabemos que eles existem,mas não sabemos se eles existem.
    A esquerda partidária,um walking dead eleitoral,mal tem energias para escapar das arapucas que ela mesmo semeou. Lhe falta o ativo material, àquela substância capaz de dar forma e conteúdo a algum evento real. Neste caso a esquerda é uma não presença da cena,apenas está lá. Ela ser a favor ou orientar a não ida para o Domingo é mais como a prédica de levar o guarda chuvas ao sair,pois pode chover,como não.

    As tais Frentes pela “superação Bozo” tem sua própria agenda de reorganização do capital, e sua reprodução. Mais focada em modernizar o extrativismo que extinguir as condições reinantes.

    Se a esperança é movimento,como queria Bloch, um domingo na Av Paulista dificilmente será capaz de acender o fósforo contra a dominação molecular predominante,no limite, irá alimentar o já saturado campo simbólico das redes sociais,sem tornar real uma pedagogia emancipatória.

    As Torcidas dos times irão? Decerto que sim. E os Bozos também irão? Duvido que não, o chefe Bozo já assumiu que todos que fazem manifestações são terroristas,e como cópia ruim vai disputar o espaço ocupado pelos corpos a favor de sua lógica.

    O dilema não é entre ir ou não ir ao “Domingo Antifa”,o real problema está no que fazer na segunda-feira.

    Ziq

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