Por João Bernardo

O problema com os lugares-comuns é que, de tanto serem repetidos, acabam por parecer evidentes, quando, pelo contrário, eles ocultam aquilo que seria necessário analisar ou demonstrar. Servem para desviar as atenções. É o que se passa com a assimilação da dialéctica ao marxismo.

Na sua forma originária, a dialéctica permite desdobramentos sem fim e, mediante sucessivas mediações, dá azo a uma criação ilimitada de conceitos intermédios. A contradição interna, que é o mecanismo indispensável à classificação de uma forma de pensamento como dialéctico, é geradora de uma instância, ela mesma contraditória, e que portanto se desdobra noutra instância, também contraditória, sem que exista nenhuma necessidade intrínseca de o processo se encerrar. O carácter contraditório é, por si só, promotor de um processo infindável.

Se esta capacidade da dialéctica para gerar um desenvolvimento ilimitado era já perceptível na filosofia de Plotino, atingiu dimensões extremas entre os gnósticos, e através deles penetrou tanto em doutrinas aceites pela ortodoxia da Igreja cristã como em grande parte das heresias, se não em todas elas. No cristianismo o misticismo não era inevitavelmente herético, mas com facilidade deslizava para a heresia, porque admitir a possibilidade de uma relação directa do indivíduo com Deus era, de algum modo, desprezar ou negar a necessidade do clero como intermediário entre o profano e o sagrado. E era o clero quem ditava a ortodoxia. Não é este o lugar para esboçar sequer a evolução e a difusão das heresias na área cristã, tanto mais difícil de seguir quanto as perseguições as votaram à obscuridade e dificultaram a documentação. Mas não quero deixar de notar, desiludindo aqueles que atribuem alguma validade à noção de eurocentrismo, que o cristianismo era uma religião centrada no Mediterrâneo e com um fortíssimo componente oriental, como aliás já na filosofia de Plotino se mesclaram também influências orientais, o que permite entender que a dialéctica dos gnósticos se infiltrasse na religião islâmica, especialmente entre os místicos sufis.

Afinal, todo o misticismo exige a dialéctica. O místico é aquele que pretende alcançar — ou considera ter alcançado — a união com Deus, uma união íntima, directa e pessoal. Mas se Deus é o macrocosmo, como é possível que o ser humano, esse microcosmo bem delimitado, se funda com Deus? Um escrito pseudo-hermético composto no século doze não podia ser mais dialéctico quando classificou Deus como «esfera inteligível cujo centro está em todo o lado e a circunferência em parte nenhuma». Ainda nesse século Alain de Lille empregou a mesma fórmula [1], que trezentos anos depois haveria de inspirar Nicolau de Cusa [2]. Sem a dialéctica não poderia explicar-se logicamente esta geometria da divindade. Num enunciado drástico, a dialéctica é a forma lógica do misticismo.

Para não nos afastarmos demasiado do nosso milagreiro preferido, São Marx, basta-me aqui recordar que na transição do século dezasseis para o século dezassete, na área da cultura germânica, Jakob Böhme reuniu as várias correntes heréticas e concentrou-as num pensamento místico coerente, o que equivale a dizer que conferiu a todas uma mesma dialéctica. A enorme influência de Böhme ultrapassou muito a cultura germânica e contribuiu, por exemplo, para inspirar Newton no seu interesse pela alquimia e pelas especulações apocalípticas e, mais tarde e noutra área cultural, é perceptível, através da intermediação de Saint-Martin, le philosophe inconnu, numa das mais inesperadas obras místicas do século dezanove, La Comédie humaine, de Balzac. Não precisamos de ir tão longe, porém. Basta recordar que Hegel, como qualquer alemão daquela época, conhecia perfeitamente Böhme, e o interesse de Hegel pelo misticismo aprofundou-se ainda quando Baader lhe deu a conhecer a obra de Mestre Eckhart.

Era uma singularidade, esse Franz Xaver von Baader, um dos raros filósofos do romantismo alemão a abraçar o catolicismo e o único que, em vez de ser um mero letrado, era um engenheiro de minas e um administrador. Pois foi a Baader, ele próprio muito influenciado por Böhme, que Hegel disse um dia que considerava Böhme como o mais profundo de todos os filósofos e «o principal filósofo alemão» [3]. Aliás, Gurvitch mencionou de passagem, como uma evidência, que «a terminologia hegeliana» «era também a do misticismo alemão tradicional desde Jakob Böhme» [4]. E assim a dialéctica, enquanto forma lógica do misticismo, tornou-se o fulcro do pensamento de Hegel.

Foi na obra de Hegel que o jovem Marx, antes de ter descoberto a estrada de Damasco, encontrou a dialéctica mística, com o ilimitado desdobramento de mediações e de conceitos intermédios. Até que esse jovem e outro jovem seu amigo procederam a um gesto simples, como são todos os grandes gestos. Alexandre, com a espada, cortou o nó. Siegfried enfiou a espada no dragão. Marx e Engels viraram Hegel ao contrário e puseram-lhe os pés na terra. Mas, que terra era essa?

A terra eram os factos empíricos, experimentalmente verificáveis. A dialéctica, que até então servira para pensar o impensável, a união íntima do ser humano com a divindade, passou a servir para pensar o mundo produtor dos seres humanos e produzido por eles. Esta operação teve sobre a dialéctica consequências drásticas, porque as mediações deixaram de se desdobrar sem limites. O empírico pôs fim a esse desdobramento. De então em diante, a dialéctica cindiu-se em duas vocações antagónicas.

Por um lado, a dialéctica continuou a ser usada como um processo lógico restrito ao plano mental, sem que houvesse qualquer limite intrínseco ao desdobramento das contradições em novas formas. Insere-se nesta linhagem a vocação de misticismo ateu dos marxistas apocalípticos, e quando recordo, por exemplo, que no século treze São Boaventura, por influência de Ibn Gabirol, propôs as noções de espírito material e matéria espiritual, não posso deixar de as assimilar ao tipo de dialéctica exercitado hoje pelos místicos que se reivindicam de São Marx.

Por outro lado, porém, a dialéctica começou a ser usada como instrumento conceptual na análise de factos possíveis de delimitar empiricamente, e os processos lógicos tornaram-se tão circunscritos como a realidade que se destinam a observar. Foi a esta nova utensilagem mental que Engels, numa expressão tão mal entendida e geradora de tantas confusões, chamou socialismo científico.

A expressão é confusa porque o próprio Marx e, depois dele, a maioria dos marxistas se ativeram à noção setecentista, mecanicista, de matéria. À propensão mística da lógica dialéctica opunham-se então as coisas palpáveis e pesadas, que caem com a força da gravidade. Foi este o chão que os dois amigos puseram Hegel a pisar. E foi aqui que se gerou outra bifurcação, entre uma realidade empírica concebida nos velhos termos do materialismo mecanicista, e uma noção de realidade empírica em que os campos de relacionamento social são tão reais como os objectos palpáveis. Vou dar um exemplo.

Num livro escrito em 1975 e 1976, ainda durante a revolução portuguesa, recorri a um exemplo que vou agora remodelar um pouco [5]. Imaginem uma fábrica de gelo em que a electricidade deixa de funcionar. O que sucede então à mais-valia produzida pelos operários dessa fábrica? Será que segue o rumo da água, empapa o chão, some-se pelos canos? Ou é a mais-valia inseparável do processo de trabalho, enquanto relação social? Este caso-limite da fábrica de gelo resume todas as situações de crise, particular ou geral, em que os bens e serviços não encontram comprador no mercado. Naquele livro eu evoquei os percalços do gelo no contexto de um modelo em que a mais-valia é produzida globalmente pelo conjunto de todos os trabalhadores e apropriada globalmente pelo conjunto de todos os capitalistas, só depois ocorrendo a sua repartição entre os capitalistas, o que me permitiu criticar o modelo em que Marx supõe a transformação dos valores em preços. Mas aqui o colapso eléctrico na fábrica de gelo serve-me para evidenciar a realidade própria das relações sociais, que perdura além da realidade material. São estes casos-limite que melhor permitem apreciar a diferença, analisada no artigo anterior, entre a noção mercantilista de dinheiro, a que Marx se encontrava anacronicamente preso, e com ele a maioria dos marxistas; e a moderna noção linguística do dinheiro como transmissor de informações.

Aqueles marxistas que tentam deduzir os valores a partir dos preços, e que por isso — não só por isso, mas por isso também — se dedicam a lucubrações sobre capitais fictícios e a vaticínios sobre a baixa da taxa de lucro, são incapazes de entender o que se passa quando o gelo, devido a uma falha na electricidade, se dissolve em água. Neste caso os preços dissolvem-se também, ou antes, evaporam-se, e os devotos de São Marx bradam então que o apocalipse está próximo, porque a mais-valia se foi pelos canos abaixo. Porém, se recorrermos ao modelo linguístico do dinheiro enquanto transmissor de informações e portanto, como sempre sucede com as palavras, desempenhando ao mesmo tempo a função de indicar e ocultar, vemos que naquela fábrica de gelo o dinheiro serve para ocultar o facto de a mais-valia se ter mantido, mesmo quando os lucros se evaporaram.

É que o capital não é um stock de máquinas e produtos nem um volume de dinheiro nem uma conta bancária. O capital é simplesmente a perpetuação de um sistema de relações de exploração em que uns, os trabalhadores, cedem o seu tempo de trabalho, sobre o qual não têm controle; e outros, os capitalistas (tanto burgueses como gestores), controlam o seu próprio tempo e o tempo de trabalho alheio. O fundamento do capitalismo consiste numa relação entre tempos de trabalho. E o capital é o domínio sobre essa relação, portanto, é a perpetuação dessa relação.

No chão empírico sobre o qual os dois amigos assentaram os pés da dialéctica consideramos a realidade das relações sociais como substrato da realidade dos objectos materiais, a realidade do processo social de trabalho na fábrica de gelo como substrato da realidade sólida do gelo ou da realidade líquida da água. A grande ruptura, a iluminação no caminho de Damasco, ocorreu quando Marx passou da noção de alienação para a noção de mais-valia. A alienação faz parte da constelação de conceitos filosóficos gerados pela lógica infinitamente desdobrável da dialéctica mística. A mais-valia diz respeito à realidade socioeconómica do desfasamento entre tempos de trabalho no processo de produção. Por isso os religiosos laicos se refugiam numa ilimitada cadeia de mediações a partir do conceito de alienação e desprezam tudo o que diga respeito às relações sociais de trabalho e aos prosaicos conflitos que lhes são inerentes.

O marxismo tornou-se irrelevante por vários motivos. Mas um deles, e dos mais poderosos, é a religiosidade laica dos devotos de São Marx. Eles não se encontram nas frentes onde se desenvolve e se renova a sociedade de hoje e se constrói aquela de amanhã. É nos departamentos universitários que se refugiam, sem fazerem mal a ninguém, nem ao capitalismo, a falarem e escreverem uns para os outros. E, tal como sucede numa sala de espelhos, vendo-se só a si mesmos, julgam que vêem tudo, e a sua própria imagem constitui para eles a prova do que dizem. São Marx, rogai por eles.

Ámen.

O artigo São Marx, rogai por nós é composto por três partes:
1) Os apocalípticos
2) Os aceleracionistas
3) Ámen

Notas

[1] Jean Jolivet, «La Philosophie médiévale en Occident», em Histoire de la Philosophie. Vol. I: Brice Parain (org.) Orient, Antiquité, Moyen Âge, Paris: Gallimard, 1969, pág. 1359.
[2] Maurice de Gandillac, «La Philosophie de la “Renaissance”», em Histoire de la Philosophie. Vol. II: Yvon Belaval (org.) La Renaissance, L’Âge Classique, Paris: Gallimard, 1973, pág. 28.
[3] Antoine Faivre, Philosophie de la Nature. Physique Sacrée et Théosophie, XVIIIe – XIXe Siècle, Paris: Albin Michel, 1996, págs. 41 e 76.
[4] Georges Gurvitch, Déterminismes Sociaux et Liberté Humaine. Vers l’Étude Sociologique des Cheminements de la Liberté, Paris: Presses Universitaires de France, 1963, pág. 22.
[5] João Bernardo, Marx Crítico de Marx. Epistemologia, Classes Sociais e Tecnologia em “O Capital”, vol. II, Porto: Afrontamento, 1977, págs. 117-118.

Este artigo está ilustrado com um ovo posto por uma galinha transgénica, alimentada com milho cultivado com auxílio de agro-tóxicos.

11 COMENTÁRIOS

  1. De França,
    Desculpe por esta língua portuguesa pouco utilizada

    O João faz uma observação muito interessante.
    Mas este é quase um velho debate althusseriano (o da ruptura). O conceito de alienação não foi totalmente abandonado no capital. Mesmo estalinistas como Lucien Sève ou André Tosel já há alguns anos que concordavam com isto, quando fizeram os seus mea culpa.

    Eu não sou um grande adepto da metafísica dialéctica. O João sublinha, com razão, muitos pontos fortes que acabam por justificar apenas posições quietistas e o oportunismo político próprio do marxismo universitário, dos ortodoxos e/o dos que gostam dos radiadores…

    Sobre a alienação.
    Há uma nova leitura/tradução dos manuscritos de 44 feitos por Franck Fischbach em França que contrasta com uma interpretação herdada da tradição Lukácsiana (falsa mas importante porque ele não conhecia os manuscritos) sobre a noção de objetivação erradamente assimilada à reificação.
    http://www.vrin.fr/book.php?title_url=Les_Manuscrits_economico-philosophiques_de_1844__9782711619313&search_back=marx&editor_back=%&page=1

    A objetivação (assimilada a reificação) não é um problema no sentido do jovem Marx, o que é problemático é a separação dos meios de produção (ou alienação) e nunca será abandonada no Kapital.

    Quanto ao novo problema nas nossas sociedades, é a subjetivação (individuação) e não, portanto, a objetivação que o capital opera e que é acentuada pela separação, daí o problema com as identidades.

    A objetivação, ou seja, a cristalização de uma forma (trabalho) é algo antropologicamente necessário para a vida.

    O momento anômico que estamos a viver ainda se baseia em parte em formas estruturadas pela tirania do colectivo, o da época das massas.

    O que torna isto terrível é que, neste momento, somos subjetivados pelo capital com base nas bases anteriores.

    Podemos ultrapassar isto? Não sei nada sobre isto…

    É possível lê-lo em termos da extracção de mais-valia e da sua distribuição.

    Mas se a dialéctica tem pouca utilidade excepto procurar possíveis ultrapassagem e imaginários, não será que a contradição acaba por indicar contradição e nada mais?

    A dialéctica na sua procura de uma resolução se pode ser conciliadora e ascendente, propõe uma teleologia, mas indica pelo menos uma forma do possível, mas que se transforma numa religião com os seus santos, como o assinala o João.

    Se devemos perseguir o cientismo (a ideologia da ciência) e todos os mundos invisíveis … Na minha opinião, há ainda um problema que continua a ser um problema primeiro, na melhor das hipóteses céptico e mesmo científico, e portanto filosófico, porque muitas vezes se esquece que os primeiros filósofos foram matemáticos! Não basta sermos sábios… mas cultivarmos uma certa arte da dúvida.

    Paulo

  2. JB CONTINUA SENDO
    Crítico e elucidativo, além de didático, na melhor acepção do termo.

  3. A dialética metafísica, realmente, pode chegar a instâncias alucinatorias. Mas, quando ela se depara, se interpenetra no concreto passa a se referenciar com aquele ser, objeto, ou fenômeno numa dimensão caledescopial, criando mil facetas, e penetrando na verticalidade, e horizontalidade daquela relação.
    Geralmente, o que acontece é que a ansiedade da necessidade da resposta, impede uma maior reflexão. Isto é fruto do Neopositivismo vigente, que confunde a utilização da matemática na instalação da análise.
    Acalmem-se, e não corram para essa visão simplória da realidade, pois ele (o positivismo lógico é, para ser apenas, um instrumento, não totalidade.

  4. Coinerentes e intromisturadas, as singularidades caósmicas (virtual e atual, em pressuposição recíproca) expressam o universal concreto no jogo das concomitâncias e subsequências, modelizado pela geometria pós-euclidiana e randomizado segundo o princípio da incerteza. Q.E.D.!!!

  5. Tenho algum pudor em criticar algumas ideias expressas pelo João Bernardo. Ele revela uma grande erudição nalguns temas e uma cultura muito variada, que se vêem nas abundantes notas, referências e divagações que acompanham os seus textos, e uma retórica vasta que lhe permite ser um escritor prolixo. Ao pudor da crítica junta-se a admiração pela sua superior inteligência, muito acima da do comum dos mortais. Não é sem esforço que os ultrapasso (ao pudor e à admiração) para aventurar-me a criticar algumas das suas ideias sobre a economia-política e a evolução social fundadas no mais prosaico marxismo.
    Corri esta aventura num texto crítico há uns anos (“O comunismo autogestionário de João Bernardo. Duas ou três coisas a propósito”, que os interessados poderão ler aqui: http://aparenciasdoreal.blogspot.com/2014/05/o-comunismo-autogestionario-de-oao.html). E torno a corrê-la agora, desempenhando o papel ingrato de desmancha-prazeres no meio de admiradores seus e dos comentários ditirâmbicos com que costumam acompanhar os textos que publica neste site. Não tomo para tema central deste comentário o marxismo revelado por João Bernardo ao manter-se fiel a uns quantos conceitos fundamentais da obra do Marx, nomeadamente, o de “força de trabalho” (no sentido de ser a mercadoria vendida pelo trabalhador assalariado) e o de “mais-valia” (absoluta e relativa), ou à ideia de “o tempo de trabalho complexo corresponder a mais tempo de trabalho simples”, embora lhes faça referência. Também não abordo a sua “originalidade” de designar o dinheiro como transmissor de informação ou como sendo a própria informação (confundindo o dinheiro, moeda de troca ou mercadoria equivalente geral, com a informação das ordens de pagamento ou da sua escrituração nos balancetes, que a redução da sua utilidade à de meio de pagamento permite). Esses assuntos tratei-os no meu texto citado e, de forma mais extensa, em muitos outros que constam no meu blog dedicado à crítica do marxismo e do comunismo.
    Limitar-me-ei, aqui, a assinalar duas contradições que vislumbro neste conjunto de textos. Uma, eventualmente devida a lapso involuntário, entre a ideia marxista de que a “mais-valia resulta do facto de o tempo de trabalho incorporado na força de trabalho ser menor do que o tempo de trabalho que a força de trabalho é capaz de despender no processo de produção”, que expressa num dos parágrafos do texto 2, com uma outra sua “originalidade”, desta feita, a de a “mais-valia diz(er) respeito à realidade socioeconómica do desfasamento entre tempos de trabalho no processo de produção”, que escreve no texto 3. Eventualmente, ele quereria dizer “diferença”, porque “desfasagem” (diferença de fase) tem outro significado (diferença, no tempo, em que ocorrem determinados valores de grandezas de variação periódica do mesmo tipo ou relacionadas) e empregue aqui pode prestar-se a outras interpretações.
    Mas tanto a ideia marxista como a “originalidade” do João Bernardo acerca da origem da parte do valor do custo de produção das mercadorias apropriada pelos capitalistas que está na génese do lucro são erradas. O trabalhador assalariado não vende a “força de trabalho” (a energia humana) que ele próprio consome e que faz dele um produtor de mercadorias, no caso, o produtor da mercadoria trabalho assalariado; e a parte do valor do custo de produção de que os capitalistas se apropriam não constitui qualquer “mais-valia” (mais valor) criado no processo de produção, porque o valor do custo de produção das mercadorias que dele saem é o mesmo que o valor das que nele entraram. A parte do valor apropriada pelos capitalistas constitui uma diferença de valores, sim, mas uma diferença entre o valor do custo de produção do trabalho que o trabalhador assalariado lhes vende (e, mais grave, que eles o obrigam a produzir para além da jornada e do esforço e ritmo com que foi contratada a sua produção, que lhe aumentam o valor do custo de produção) e o valor do custo de produção que eles lhe pagam (expresso pelo valor do custo de produção das mercadorias compradas pelo salário).
    Trata-se, na realidade, para o trabalhador, de uma “menos-valia” ou de um menos valor que ele recebe em pagamento do valor da mercadoria que vende, pelo que o conceito marxista de “mais-valia”, que o Marx nunca justificou e apenas afirmou numa frase de poucas palavras, não tem ponta por onde se lhe pegue. Admira que o João Bernardo continue a usar um tal conceito e que afirme que a “mais-valia resulta do facto de o tempo de trabalho incorporado na força de trabalho ser menor do que o tempo de trabalho que a força de trabalho é capaz de despender no processo de produção”, como se nos fosse possível determinar qual “o tempo de trabalho incorporado na força de trabalho”, já que o que o trabalhador recebe em troca da mercadoria que vende lhe permite produzir a sua vida e não apenas a “força de trabalho” que usa para produzir o trabalho assalariado que vende.
    A outra contradição respeita ao facto de neste conjunto de três textos ele se dedicar a criticar os “devotos de S. Marx” no que respeita a abordagens que apontam as crises económicas como determinantes para o fim do capitalismo, e que a crise actual, agravada pela calamidade natural da pandemia “covid19”, aceleraria esse fim, cuja importância mesmo no seio do marxismo ortodoxo me parece ser por ele exagerada para assim poder constituir assunto que mereça discussão, continuando ele mesmo, no que é fundamental na crítica da economia-política e na profecia do fim do capitalismo e da implantação do comunismo pela revolução proletária, a ser um “devoto de S. Marx”. No seu caso, ele substitui as crises económicas pela luta dos trabalhadores, um determinismo económico por um voluntarismo proletário. Constato, mas não me surpreendo, porque há muitos anos já lhe ouvi dizer que “o comunismo é uma questão de fé”. Como a realidade se apresenta, direi mesmo que terá de ser uma questão de muita fé, uma fezada!

  6. Lilian,

    O ovo é um volume de grande simplicidade geométrica. Ao mesmo tempo, ele figura um microcosmo (uma coisa bem delimitada no meio de um mundo incomensuravelmente maior e diverso) e o macrocosmo (já que no seu interior contém tudo o que é necessário para uma vida). Assim, o ovo representa a união mística do microcosmo no macrocosmo e, na simplicidade da sua curva, representa um percurso incessante. Por isso o ovo me parece uma excelente figuração da dialéctica mística e das suas ilimitadas mediações, tanto mais que, em confronto com a galinha, há o contínuo vaivém de saber qual surgiu primeiro.

    Ora, tal como Marx e Engels assentaram na terra os pés da dialéctica hegeliana, eu fiz a mesma coisa ao ovo, quebrando-o na frigideira. O ovo estrelado, como se diz em Portugal, ou frito, como se diz no Brasil, pôs fim ao carácter ilimitado do ovo místico.

    Bom apetite!

  7. Pelo menos quando eu era miúdo, também se dizia ovo estrelado no Brasil. Ou é como os cariocas ainda o chamam.

  8. Em primeiro lugar, obrigado sempre ao João Bernardo pelos ótimos textos. Agora:

    Uma pergunta ao João Bernardo e a quem mais quiser me esclarecer. É um esclarecimento quanto à seguinte passagem:

    “O capital é simplesmente a perpetuação de um sistema de relações de exploração em que uns, os trabalhadores, cedem o seu tempo de trabalho, sobre o qual não têm controle; e outros, os capitalistas (tanto burgueses como gestores), controlam o seu próprio tempo e o tempo de trabalho alheio. O fundamento do capitalismo consiste numa relação entre tempos de trabalho. E o capital é o domínio sobre essa relação, portanto, é a perpetuação dessa relação.”

    Nesses termos, o trabalhador não cede o tempo dele também em outros sistemas produtivos? O que diferencia o capitalismo de outros sistemas aqui – a troca do tempo aqui é mediada pelo “mercado” e, portanto, pelo preço da mão de obra, em boa medida, não? No caso do escravismo, ele cede em troca da manutenção da vida dele (no sentido mais básico da expressão, já que o desemprego no limite aponta à mesma ameaça); no feudalismo, em troca do “direito a morar no feudo”, etc. E no capitalismo, em troca do salário. Como diferenciar o capitalismo ignorando o fator preço ao qual se atrela o trabalho?

  9. L de SP,

    O escravismo não foi simplesmente um sistema de exploração. Foi um sistema de relações pessoais que existiu em praticamente todas as sociedades, nos cinco continentes. O que caracteriza todas as modalidades de escravismo é a alienação definitiva da própria pessoa. Nos grandes impérios escravistas os tipos de escravos e as suas funções eram muito variados, desde os escravos das minas até um tipo de escravatura doméstica em que o soberano e as famílias mais poderosas escolhiam entre os escravos os seus homens de confiança, ministros, chefes militares. O que havia de comum entre o miserável escravo das minas e o glorioso general era apenas o facto de terem alienado definitivamente as suas pessoas. Mas as posições sociais que ocupavam eram muito diferentes, tal como o eram as suas relações com o sistema económico. Havia ainda o tipo de escravismo com funções extra-económicas ou até, de certo modo, anti-económicas, por exemplo, quando no império azteca os vencidos nas guerras eram escravizados apenas para serem mortos em sacrifícios religiosos, aniquilando-se a sua capacidade de força de trabalho.

    O escravismo a que os brasileiros geralmente se referem — devido à estranha noção de que o Brasil está no Brasil e não no mundo — foi inaugurado pelos venezianos no seu império mediterrânico, nomeadamente Creta e Chipre, para uma produção destinada ao mercada mundial. Tratou-se de uma forma inovadora porque, por um lado, era um escravismo estritamente doméstico, ou seja, todos os escravos dependiam directamente da domesticidade dos poderosos ou do soberano; por outro lado, enquanto o escravismo doméstico só abrangera, até então, números reduzidos de pessoas, este foi um escravismo doméstico de massas; finalmente, porque a sua produção não se destinava a satisfazer as necessidades estritas de uma dada área de soberania, mas destinava-se ao mercado mundial. Os portugueses levaram para as ilhas do Atlântico este tipo de escravismo inaugurado pelos venezianos, e depois levaram-no para o Brasil.

    O que eu quero aqui sublinhar é a versatilidade de formas económicas cobertas pelo escravismo. Por exemplo, quando os portugueses compravam escravos negros aos potentados negros africanos, e compraram-nos em quantidade sempre crescente, esses escravos saíam dos sistemas de exploração em que haviam sido inseridos em África para se inserirem num novo sistema de exploração. Em suma, o escravismo foi uma forma muito plástica, que abrangeu desde membros das elites até à mão-de-obra mais miserável e que operou em sistemas económicos muito diferentes. Mas aquilo que o caracterizou, em todas estas modalidades, foi a alienção da pessoa, sem que se considerasse o tempo de trabalho.

    Os regimes senhoriais nasceram da fragmentação dos grandes sistemas escravistas, ou seja, resultaram do fraccionamento das grandes famílias amplas. Pelo menos, é esta a tese que defendo na obra que dediquei ao assunto. Note que a noção regime senhorial é preferível à noção feudalismo, porque feudalismo diz respeito à relação entre um senhor e os seus vassalos, portanto, a uma relação no interior da classe dominante. Enquanto regime senhorial diz respeito ao âmago do processo económico, às relações entre senhores e servos.

    No regime senhorial as duas modalidades de exploração eram o tributo em géneros e as corveias, ou os seus equivalentes pecuniários. Os servos tinham latitude para organizar como queriam os seus processos de produção e eram eles mesmos a decidir do emprego do seu tempo de trabalho. Os agentes do senhor limitavam-se a cobrar o excedente, fixado a partir de um certo limite. Em suma, os servos não alienavam as suas pessoas, ao contrário do que sucedia no escravismo, e controlavam o seu próprio tempo de trabalho, ao contrário do que viria a suceder no capitalismo.

    A introdução aqui das categorias mercado e dinheiro confunde tudo, em vez de esclarecer o que quer que seja, porque foram muito raros os sistemas económicos em que não se encontraram formas de mercado e formas pecuniárias. Praticamente cada sistema económico tinha as suas formas específicas de mercado e as suas formas específicas de dinheiro.

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