Por Nicolas Lorca

Existe uma discussão muito frequente dentro do movimento negro brasileiro, que trata de uma compreensão sobre o potencial organizativo das comunidades negras brasileira e americana. Este aspecto chama a atenção, sobretudo pelas recentes manifestações do movimento negro estadunidense e a reação a que este é condicionado dentro da violência racial.

Nesse sentido, compreender as diferenças entre o movimento negro no Brasil e nos Estados Unidos coloca em primeiro plano uma discussão sobre as formas de constituição do racismo nestes dois lugares. Posteriormente, torna-se necessária uma verificação da compreensão das relações inter-raciais e do processo de constituição de frentes e movimento organizados.

Com base nisso, busca-se apresentar uma discussão de maneira dimensionada, apresentando a relação entre estes aspectos e desembocando numa questão mais geral, ou seja, as diferenças entre o movimento negro no Brasil e nos Estados Unidos.

Racismo e identidade

Compreender as diferenças entre o movimento negro americano e o movimento negro no Brasil, sem observar as diferenças que o racismo impôs em cada lugar, cria, mais uma vez, uma ideia fragmentada da questão racial. Mais do que nunca, é importante observar que o processo de construção do negro estadunidense se deu de maneira distinta da ocorrida no Brasil [1]. O racismo nos Estados Unidos pautou-se numa diferenciação que Lélia Gonzalez chamou de racismo aberto [2].

Este conceito permite compreender de maneira objetiva a constituição do racismo nos Estados Unidos. Em primeiro lugar, pela compreensão do negro enquanto aquele que “tem sangue negro nas veias”. Dentro dessa lógica, a miscigenação é compreendida enquanto processo repulsivo, tanto do ponto vista das comunidades brancas e, mais ainda, dentro das comunidades negras. Destarte, o racismo nos Estados Unidos criou uma diferenciação muito clara entre espaços para brancos e espaços para negros.

Embora as lutas por direitos civis em 1960 tenham produzido um largo avanço no que diz respeito à integração do negro na sociedade estadunidense, as diferenças encontram-se igualmente postas no fundo. A formalidade criou um aspecto onde negros e brancos podem utilizar o mesmo espaço, frequentar as mesmas escolas e trabalhar no mesmo local. Por outro lado, do ponto de vista das relações sociais, encontram-se ainda lugares negros e lugares brancos. Nesse sentido, verifica-se a existência de comunidades negras, os bairros, as escolas, as igrejas etc. Essa dinâmica não é apenas fruto da segregação, mas de uma divisão racial fundada na perspectiva de que o negro isolado corre risco de vida, perde suas origens e é assimilado às dinâmicas do “mundo dos brancos”.

Concomitantemente, o negro nos Estados Unidos encontra-se numa condição onde suas comunidades possuem uma forte retomada às “tradições”, uma busca pela ascensão de classe e construção de uma “identidade negra” frente à sociedade. Por outro lado, embora os negros sejam minoria nos Estados Unidos, essa segregação implícita — que falei anteriormente — ecoa nas relações entre comunidades negras e violência de Estado.

Diferentemente dos negros brasileiros, nos Estados Unidos, a violência racial toma uma proporção maior. Partindo não somente de uma compreensão estatística, onde o negro nos Estados Unidos representa 12,3% da população, pode-se observar que as comunidades negras assumem um papel muito importante na luta antirracista. Nesse sentido, é importante destacar a resposta dessas comunidades aos recorrentes casos de violência racial (aqui e aqui).

Por outro lado, no caso brasileiro, observa-se outro tipo de racismo. De acordo com Lélia Gonzalez, o racismo implícito ou racismo por denegação [3] recebe forte influência das teorias de branqueamento social, da miscigenação, da assimilação e de democracia racial. Nesse sentido, o negro brasileiro não pode ser compreendido enquanto minoria étnico-racial, mas sim como maioria.

O racismo no Brasil organiza-se de maneira distinta do racismo nos Estados Unidos. Em primeiro lugar, pela influência do processo de colonização que criou a necessidade de um modelo de estratificação social não pautado no racismo aberto, pois as influências da cultura Ibérica permitiram o desenvolvimento de uma perspectiva onde “cada um tem seu lugar”.

Nesse sentido, Lélia Gonzalez (1988, p. 73) argumenta que:

“[…] as sociedade Ibéricas estruturaram-se a partir de um modelo rigidamente hierárquico, onde tudo e todos tinham seu lugar determinado (até mesmo o tipo de tratamento nominal obedecia às regras impostas pela legislação hierárquica). Enquanto os grupos étnicos diferentes e dominados, mouros e judeus eram sujeitos a violento controle social e político. As sociedades que vieram a constituir a chamada América Latina foram as herdeiras históricas das ideologias de classificação social (racial e sexual) e das técnicas jurídico-administrativas das metrópoles ibéricas. Racialmente estruturadas, dispensaram formas abertas de segregação, uma vez que hierarquias garantem a superioridade entre brancos enquanto grupo dominante”.

Por outro lado, para além do ponto de vista das relações coloniais que estão inseridas no processo de constituição do racismo à brasileira, observa-se que a ausência de um modelo estritamente segregacionista criou uma ideia de harmonização entre brancos e negros no Brasil. Consequentemente, a “democracia racial” encontra-se como o maior exemplo desse processo.

A luta por direitos civis dos negros brasileiros na década de 70 não se dava apenas pela perspectiva de igualdade de direitos, mas pela quebra de uma perspectiva de que no Brasil não havia racismo, que brancos e negros conviviam harmoniosamente.

Nesse sentido, o racismo no Brasil apresenta-se de maneira radicalmente distinta do racismo nos Estados Unidos. A ausência de um pertencimento étnico-racial, os impactos da miscigenação e a forte influência da democracia racial criaram, ao menos em parte, um distanciamento entre negros e luta antirracista. Por mais que sejam nitidamente visíveis os esforços do movimento negro em construir mobilizações raciais no Brasil, essas prerrogativas se encontram em refluxo: primeiro por não existir uma associação entre negro e identidade negra; segundo pelos impactos do racismo implícito.

Movimento negro e violência policial

Dentro da mesma dinâmica apresentada anteriormente, o surgimento do movimento negro nos Estados Unidos encontrou como pungência o racismo aberto — que criava formas de segregação entre negros e brancos — e a violência policial que crescia radicalmente. Nesse sentido, todo o movimento pelos direitos civis na década de 60 encontrou como pauta uma luta contra as formas de racismo institucionalizado ou, mais ainda, contra o racismo legal.

Do ponto de vista da violência racial, encontrou-se como fundamento a autodefesa do povo negro, desembocando nas ações do Black Panther Party. Ao longo das lutas raciais nas décadas de 70 e 80, observa-se o fortalecimento da cultura afro-americana, o desenvolvimento das comunidades negras e uma crescente busca por integração e ascensão social.

Esse aspecto torna-se manifesto quando observamos, por exemplo, a forte influência negra nos espaços antes reservados apenas para os brancos. Do ponto vista cultural, verifica-se o expressivo crescimento da cultura negra, seja através de produções próprias — como as séries de televisão Cara Gente Branca, BlackAF, Atlanta — quanto na cena musical representada por Beyoncé, Rihanna etc.

A cultura negra cresceu exponencialmente nos Estados Unidos, sobretudo por fruto dessa busca por ascensão de classe e integração do negro no mundo dos brancos. Esse efeito produz uma perspectiva dúplice: em primeiro lugar, a ampliação do movimento cultural, que buscou afirmar a cultura negra na cena estadunidense enquanto reforça a força política das comunidades negras; em segundo lugar, por dar condições concretas para a ascensão desses grupos às classes dominantes.

Com base nisso, a violência policial toma maior expressão, pois as comunidades negras entendem que este aspecto trata-se de uma retomada do processo de segregação e de extermínio que suas comunidades sofreram ao longo dos anos. Ao passo que a integração desses grupos sociais encontra-se solidificada dentro de um espectro mais geral.

Destarte, pode-se observar, por exemplo, as manifestações em reposta ao assassinato de George Floyd (aqui). As comunidades negras estadunidenses possuem uma enorme força de articulação política e conseguem promover mobilizações mais radicais. Igualmente, a crescente influência de cultura negra e do debate racial cria condições para que indivíduos não negros participem e se mobilizem em conjunto.

Em contrapartida, o movimento negro brasileiro surge igualmente de uma luta contra a violência racial. No entanto, o aspecto formalista não se encontrava inserido nessa questão. A luta do movimento negro brasileiro pautou-se muito mais pela destruição da ideia de “democracia racial” do que puramente pela busca de direitos sociais, políticos etc.

A luta contra a democracia racial encontrava-se na ordem do dia. De maneira formal, compreendia-se que a relação entre brancos e negros no Brasil se dava de maneira harmoniosa. No entanto, a violência policial e o racismo encontravam cada vez mais expressão e evidenciava os problemas do “paraíso da democracia racial”. Nesse sentido, luta contra a democracia racial era, acima de tudo, denunciar a violência racial e o racismo.

Diferentemente do negro nos Estados Unidos, a integração racial no Brasil se deu de maneira contrária. Por muitos anos os negros ficaram relegados na indústria cultural, suas comunidades tornavam-se difusas e fragmentadas. Por fim, a cultura negra, enquanto identidade tornou-se algo indefinido, maleável e foi assimilada dentro dos grupos da elite branca.

Ademais, a constituição do racismo no Brasil, diferentemente dos Estados Unidos, não criou aspectos formalistas de distinção de identidade, ou seja, os espaços brancos e negros não eram definidos de maneira formal. Isso produziu, ao longo dos anos, uma dinâmica de intensa troca cultural, de assimilação e apropriação. Não trato do sentido pan-africanista do termo “apropriação cultural”, nem tampouco de uma visão reducionista ou pós-moderna da perspectiva de que as apropriações culturais não devam existir. O que quero discutir é simples: o racismo no Brasil criou uma perspectiva onde os aspectos culturais dos negros foram assimilados pela elite branca e ressignificados.

Ao contrário dos Estados Unidos, os negros brasileiros não constituíram comunidades próprias, a sua cultura tornou-se pulverizada e encontrou novas dimensões dentro da democracia racial. Dentro disso, a violência racial encontra-se justaposta à idéia de racismo por denegação, onde a questão racial é fundamento, mas no discurso formal encontra-se suprimida.

Destarte, os aspectos da violência racial no Brasil e nos Estados Unidos não podem ser compreendidos apenas do ponto de vista estatístico, mas compreendidos igualmente do ponto de vista da constituição e da manifestação do racismo em cada lugar, de suas inter-relações e desdobramentos regionais e internacionais.

Nesse sentido, o movimento negro brasileiro não encontrou o mesmo horizonte de atuação em que se encontrava o movimento negro estadunidense. As condições do capitalismo e do racismo eram distintas, sobretudo pela integração dos negros na sociedade de classe, a assimilação cultural e o fortalecimento das comunidades negras no plano político.

Destarte, o horizonte de atuação do movimento negro brasileiro se deu através de uma luta contra a democracia racial e os impactos desta na violência racial. Com base nisso, observa-se uma ausência de alternativas à atual dinâmica de organização da luta antirracista.

Uma última coisa…

É impossível abarcar todas as questões inseridas nessa dinâmica sem esbarrar-se com o entrave do identitarismo. Apresentar uma discussão entre os impactos organizativos dos negros e do movimento negro no Brasil e nos Estados Unidos coloca como fundamento uma compreensão da constituição do racismo e suas particularidades regionais.

Nesse sentido, uma compreensão estatística auxilia num dimensionamento da questão, mas não permite compreender as particularidades que se encontram nas margens. Com base nisso, a violência racial nos Estados Unidos apresenta uma reação diferente, pois as comunidades negras, o forte debate racial e a integração do negro criou um espectro de atuação maior. Por outro lado, a violência racial no Brasil encontra-se uma perspectiva muito mais radical, sobretudo pela “compreensão” de que negros são potencialmente violentos, que precisam ser controlados etc. Apresentar essa discussão envolve a compreensão de inúmeras variáveis que, se observadas de forma rasa, não permitem uma discussão completa do problema.

Notas

[1] ANDREWS, George. O negro no Brasil e nos Estados Unidos. Lua Nova: revista de cultura e política, v. 2, n. 1, 1985.
[2] GONZALEZ, Lélia. A categoria de político-cultural na Amefricanidade. Tempo brasileiro, v. 92, n. 93, 1988.
[3] GONZALEZ, 1988, pp. 72-3.

As imagens que compõem a ilustração desse artigo são do pintor Doug Ohlson (1936-2010)

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