Entrevista do Invisíveis a um enfermeiro
Conversámos com um enfermeiro do Hospital Federal do Andaraí. Lembrámos que o Brasil é o país onde mais morrem enfermeiros na pandemia de covid-19. O que explica isso? A melhor forma de responder foi colher o depoimento de um profissional da área de um dos hospitais públicos mais renomados no Rio de Janeiro. Na precarização, quem sofre mais e é colocado na “linha de frente” são os trabalhadores da saúde. A gestão dos chefes controlando acesso aos EPIs e testagem mostra a posição de toda uma estrutura de hierarquia nas relações de trabalho.
Invisíveis: Eu estava te perguntando sobre o companheiro de sua colega de trabalho, que faleceu. Daí você disse que o segurança foi o primeiro a pegar a covid-19, entre os que pegaram e faleceram.
Enfermeiro: Não, ele não foi um dos primeiros. Foi uma das pessoas que eram importantes para gente. A gente torceu muito para ele ficar bem. Havia muitos casos no nosso hospital, (só que) não divulgam. A gente sabe por causa do boca a boca. O próprio hospital não divulga nada. Como você sabe que as pessoas têm covid-19 dentro do Hospital? A gente só sabe porque os colegas falam uns dos outros. Antes dele, teve um enfermeiro de outro andar, estava entubado em outro hospital particular. Uma técnica de enfermagem que estava entubada, também em hospital particular. Um médico estava internado e já teve alta.
Invisíveis: Aquele que ficou internado na Zona Sul?
Enfermeiro: Não, esse ficou no Hospital Pedro Ernesto (HUPE), onde fazia plantão. Ele ficou internado muito tempo. No mês passado ele teve alta, graças a Deus, e foi embora. Não foram muitos que tiveram essa recuperação.
O governo dá 14 dias para o pessoal da saúde que está com sintomas de covid-19. Passou esse tempo, voltam para o que chamamos de “linha de frente”: são as pessoas que estão em contato direto com os pacientes com o vírus. E aí, quem já pegou e superou, volta para a linha de frente. Então, muitos companheiros da saúde estão indo para o CTI [centro de terapia intensiva], mesmo que não tenham experiência prévia.
Invisíveis: A quem foi dado o direito legal de se afastar do trabalho?
Enfermeiro: Quem pôde se afastar foi o setor administrativo. Quem trabalha com a parte burocrática pode trabalhar de maneira remota. O problema disso é que as pessoas da saúde que são grupo de risco estavam lutando para serem afastadas, muitas sem sucesso. Isso é um sacrifício consciente dessas pessoas. Eu pedi para ficar numa escala especial, pois temia por minha segurança. Com a diminuição dos ônibus em circulação, em vez de um transporte eu teria de pegar três. Isso me faria andar por ruas desertas e demorar três vezes o tempo habitual. Eu pedi à chefia: “Eu não quero ficar direto com paciente de covid-19, senão vou morrer aqui”. É, porque teve uma pessoa no setor de enfermagem que pegou covid-19 e foi para casa, porque é pegar e ficar 14 dias afastado. Fora essa pessoa, a equipe toda pediu para ficar em casa também. Porquê? Se você trabalha 12 horas por dia com alguém que tem covid-19, a equipe inteira pega. E assim foi acontecendo sucessivamente dentro do Hospital, as equipes foram pedindo isolamento, para ninguém pegar. Houve equipe inteira contaminada. Houve equipe inteira de outro andar. Isso foi em março. Cada equipe disse que soube que teve gente com covid-19 e queria ser afastada.
No meu setor foi diferente, porque todo mundo trabalhava o dia inteiro com uma pessoa que encostava na gente, falávamos com ela que “não pode encostar”, aí ela dizia, “mas eu passei álcool 70%” e mesmo assim ficava abraçando e encostando na gente. Essa pessoa era assim. Trabalhava no meu setor, e também em outro hospital com covid-19. Demorou uma semana trabalhando sem reclamar. Aí, quando todo mundo viu, estava com covid-19 já. Só que no meu setor ninguém foi afastado. Ninguém pediu 14 dias.
Invisíveis: Porquê?
Enfermeiro: Porque no meu setor é diferente, eles não liberam facilmente. Então, as pessoas vão ficando, vão trabalhando, vão saindo. Uns trazem atestado, quando conseguem. Outros continuam trabalhando. Não tem uma coisa certa na cabeça de cada um, não. Então, trabalhou todo mundo. Essa pessoa de que falei ficou 14 dias em casa e depois voltou, graças a Deus.
No meu setor, até agora ninguém foi atingido com gravidade, graças a Deus. Teve outra pessoa que foi a primeira que pegou. A gente trabalhou junto… Quando chegou em casa, à noite, ela começou a passar mal com falta de ar e se sentindo com gripe, do nada. No dia seguinte chegou lá para procurar a médica, já que não trabalhava no dia. Todo mundo ficou assustado. A pessoa chegou, a gente botou numa sala que a gente tem para banco de sangue, que a gente não tem isolamento nenhum. Aí, os colegas botaram a roupa específica. É uma sala improvisada, onde há nosso único banheiro [casa de banho], que por sinal tiraram agora. Porque fecharam metade do nosso setor, tiraram nosso banheiro. Agora, para ir ao banheiro a gente tem de passar por dentro do setor onde ficam os pacientes com coronavírus.
Aí, um médico atendeu a pessoa, foi pedir exame de saturação (mede a capacidade respiratória), porque entende muito desse exame. Ligou-se para um especialista do Hospital para pedir um teste para essa pessoa que parecia estar contaminada. Porque lá tinha 3 testes no hospital, ele recebeu 3 testes em março. Nada mais justo que pedir um teste para essa colega, não é? Para uma pessoa do quadro de funcionários do hospital que está passando mal. Aí, o especialista veio depois questionando, dizendo que não era covid-19 e nem chegou perto. Veio dizendo que não podia usar um dos testes, e que se usasse o teste e desse positivo não ia poder justificar o uso desse teste. Porque os hospitais não iam fazer notificação. É sub-notificação.
Eles são o setor da notificação. Agora o setor recebeu um papel para notificar. Agora! Em abril só! Mas o papel — eu cheguei a ficar com ódio — é o papel da insuficiencia respiratória aguda grave, a SARS. Não da covid-19.
O doutor disse, “mas eu boto código de covid-19”. Eu disse, “mas é só você”. Os outros médicos não vão dizer que é, vão sub-notificar. Não é qualquer um que tem coragem para dizer que é covid-19, porque não tem teste. O exame que tem é a tomografia do pulmão. Tem um tipo de visão do pulmão que chamam de “vidro fosco”, não é qualquer um que sabe ler, mas o pessoal da enfermaria ali sabe ler. Podiam ter feito isso também.
O doutor queria fazer o teste, no caso dessa pessoa de quem estamos falando. Mas nem isso fizeram, porque estava no início. Não podia medicar, porque não sabia o que podia dar. O que a gente fez? A gente deixou a pessoa pela manhã inteira sentada e com falta de ar. Não podia nebulizar, não podia botar na maca, que são coisas que ajudam a respirar, mas os aerossóis saem no ar. Então, a gente improvisa com a sonda de aspiração…
Então, essa pessoa foi a primeira. A chefe disse “dá 7 dias para ele”, mas o médico disse “não, vou dar 14 dias, o máximo que eu puder dar”. Ficou todo mundo indignado. Porquê? Então, essa pessoa foi a primeiro a ter coronavírus. Tinha que dar 14 de afastamento. A gente tinha certeza que era covid. A enfermagem sabe tudo, mas a nossa voz não é ouvida, não é?
Então, essa pessoa foi para casa do pai, e com a filha, que tem asma. E eu fiquei conversando com ela pelo WhatsApp. Eu falei: “toma alho, com gengibre e mel. Bota limão, bota laranja e toma chá, porque é quente e não é bom para o vírus”. Ela ficou em casa 14 dias, houve dias em que piorou, mas conseguiu voltar a trabalhar. Aí, como todo paciente que tem covid-19, é a própria pessoa que vai, porque o EPI é pouco, todo mundo que é funcionário tem medo. A pior coisa é a saturação descer… e aí fica como? A pessoa ia cair dentro de casa, morrer, e ia ficar por isso mesmo.
Outro dia estava lá uma especialista do Hospital, falando que não ia fazer testagem. E ainda teve coragem de dizer que “tiveram uma reunião ontem e falaram que esse vírus vai passar pela classe média, mas não vai matá-la. Porque ela tem como se isolar. Ela tem uma casa, ela tem um espaço, ela tem suite, então ela pode se isolar em um quarto. Ela tem comida e tem dinheiro para comprar até pelo telefone. A classe média vai sobreviver. [Chora.] Aí disse que nós estamos esperando o pior quando esse vírus chegar nas favelas, ele vai dizimar as populações. Porque você sabe como são as favelas do Rio, não é? Esse vírus vai ser um massacre para a população das favelas.”
Aí eu disse, “se vocês tratam um colega de trabalho desse jeito, imagina como vocês vão tratar os pacientes do SUS!”. E essa pessoa é importante, especialista no assunto, de um hospital federal. Teve essa reunião de manhã no início de março com a gestão de várias secretarias públicas para definir como iam fazer as coisas: algumas metas, algumas formas de trabalharem. E disseram que tinham só 3 testes. Aí, cá entre nós, não é? Esses testes devem estar guardados, provavelmente, na sala do diretor, não é? Porque se pegar covid a filhinha, a mulher ou algum parente deles… Aí pode fazer o teste, não é! Porque um colega aqui, funcionário, eles tratam dessa forma.“ Eu tenho nojo de vocês!” Porque eu fiquei conversando com este especialista, que se revoltou. Não pediu para sair. Está de frente para o nosso setor.
A gente estava realmente ao deus-dará, a gente não podia contar com mais ninguém. Depois, outros foram contaminados. Outra pessoa, companheira de colega que trabalhava no setor, pegou. Quando chegou com doente e pediu pelo amor de Deus para alguém nebulizar, o hospital disse “não, não pode nebulizar”. Aí, entrou na sala do setor e no mesmo dia faleceu, porque já não entrou bem.
Invisíveis: Soube de algum outro caso?
Enfermeiro: Houve uma pessoa do setor de macas que chegou lá e não estava doente com gravidade, mas para casa. Qual é a política? Passa azitromicina, passa cloroquina. Manda para casa! Agora passaram para a minha sobrinha um remédio que custa 300 reais no mínimo, como é que ela vai comprar? Houve mais duas pessoas da copa, duas outras do setor de macas, e vigilantes pelo menos três. Fora as pessoas que se internaram e não tinham sequer covid-19 e pegaram lá… Isso é muito sério, não pode acontecer num hospital. E houve parente de colega que deu entrada em outro setor. Ficou internado um tempo. O médico achou que podia ter covid e mandou para o setor. Aí ele ficou 24h no setor de covid e pegou… Veio a falecer uns três dias depois. Entendeu? Ficou do lado dos pacientes entubados. Teve uma arritmia grave e precisava de monitoramento, porque achavam que estava tendo um problema cardíaco sério. Eles deviam ter uma CTI para COVID separada. Então, é assim, a pessoa tem um problema qualquer e entra ao lado [de pacientes com] covid. Então, se não morrer de uma causa, morre de covid. É essa a realidade. Não devia haver pacientes de covid em outra sala. Já há outro tipo de bactéria lá, que a gente considerava grave. Agora, ter covid já é demais.
Foi no início de março. Depois disso que o chefe chegou no nosso andar e disse: “não dá para trabalhar, o Ministério não manda nada para nós. Pede luva, não vem; pede máscara, não vem. Eles têm de pedir e o hospital tem de comprar. Mas tem de comprar superfaturado e ninguém quer assinar nota. Porque você vai assinar e depois você pode ser investigado. Você está acostumado a pedir 1.095 máscaras a um real. Agora você compra a cem reais cada uma, porque subiu de preço. Ninguém quer pagar para botar o seu na reta, para ser investigado depois.” E aí a gente não recebe material. Isso é o que diz o nosso chefe. Até que ponto isso é verdade eu não sei. O certo é que na semana passada a gente trabalhou praticamente sem material.
Qual material que a gente recebe? O que o pessoal tem para trabalhar 12h e jogar fora. Mas não é assim… Tem de trabalhar 12h, pegar, guardar, não deixar amassar para no outro plantão você usar. Porque lá no meu setor tem, mas tem muito pouca, então o pessoal fica escondendo.
Alguns pedem em quantidade roupas de TNT, para ter para as equipes. Sabe aquele macacão [fato macaco] que costumamos ver em filmes? Isso não tem lá, não! Usamos um tecido mais fino, que vai até o joelho no máximo. Essa capa já tinha no hospital e ela não é própria para covid. Pelo que ele ouviu de colegas, soube que no hospital militar há essa roupa adequada. É uma roupa que quem está de plantão fica 12 horas com ela, sem poder tirar até o fim do plantão. Ficam sem ir ao banheiro. Mas lá no Hospital Federal do Andaraí não tem isso. Colocam três roupas finas e guardam a roupa mais grossa, e essa é a única roupa que você terá. Alguns companheiros querem se recusar a entrar porque não têm a roupa adequada. E mesmo essa que não é adequada e é a única disponível, não existe em quantidade suficiente para maqueiro, médico, pessoal da limpeza e copa. E todos eles precisam de entrar. Não há roupa para todos entrarem, então quem você acha que fica sem roupa?
Parentes infectados houve vários, eu já perdi a conta. Quem faleceu foi uma técnica de enfermagem e uma enfermeira. Quem pegou a doença e voltou a trabalhar, eu já perdi a conta. No meu setor são 6 equipes. Uma colega tem três pessoas na família que pegaram, a mãe morreu. Outra colega teve a mãe que morreu e agora a cunhada. Provavelmente mais pessoas pegaram, se a cunhada pegou. Mais outra colega, que perdeu o pai e mãe, conseguiu se recuperar. Um colega que a esposa teve a doença, ficou mal e se recuperou. Uma outra colega que trabalha com transplante, ela e o marido pegaram. Tem gente que não está vendo os filhos, porque tem de se isolar. A maioria morre de medo de pegar o vírus e passar para os familiares.
Essa é a realidade de quem trabalha na enfermagem. As pessoas estão pegando vírus. Lá no meu setor eles deixam só três kits de EPI. Tem de dar para o pessoal da limpeza também. Isso significa que se dá um kit para o médico e deixa dois: um para o técnico e um para o enfermeiro. Na realidade eles têm que se revezar. Um entra, se tiver 10 pacientes na sala vai ter de cuidar dos dez. Nem dá para entrar mais de um ao mesmo tempo.
Então, tem de haver em quantidade suficiente para a copa, para a limpeza. Para o pessoal do laboratório que chega a toda a hora para colher sangue há um pacote mais fino para pequenos procedimentos, que vai sair sangue. Vai fazer uma punção profunda, para não ter infecção. Mas para covid, isso não é nada, porque você tem de botar ele em cima de mais uns dois ou três. Lá não tem como cobrir o corpo inteiro. Esses mais finos servem também para dar banho, fazer curativo, os pequenos cuidados de rotina que se fazem com o paciente. São os pacotes finíssimos de TNT. São o que têm para dar para o pessoal das macas, para as pessoas da copa, para quem passa pelos pacientes suspeitos, mas que não estão internados. O mais grosso é para cirurgia, que não é tão grosso assim, e é o que deveríamos receber para covid-19. A gente passa o dia vendo gente morrer…
A gente trabalha com medo. Não há EPI suficiente, não pode trocar. Vamos fazer o quê? Se faltar, você é negligente. Você tem de cuidar do doente, a enfermagem que tem de se cuidar. Aí, estão botando um monte de máscaras erradas. Aí, você vai trabalhar botando saco de lixo e um capote em cima. Aí, você vê um ministro lutando para botar uma máscara na cara dele. Quer dizer, uma [máscara tipo] N95, nem era para estar na cara dele. Para visitar os hospitais?! Porque se não tem para os enfermeiros, não tinha de ter para o ministro! Tinha de estar só nos hospitais. E a chefia consegue, mas porque eu peço muito material, a chefia também pede. Então guarda, como se não tivesse. Liberando devagarzinho. Quer dizer, fazendo as pessoas reutilizarem. Para mim, isso é ser conivente com a contaminação. Mas a pessoa que está na chefia hoje é uma pessoa que quer manter o cargo. Quer que não falte. Nem que tenha de fazer você usar uma máscara o mês inteiro, para ter uma para te dar quando a sua acabar. Há setores que estão sem máscaras. Mas em outros setores não deixam sem elas. Às vezes fica no nosso setor e eles não recebem. No nosso setor há muita gente contratada, eles não batem de frente…
O nosso setor é dos que não estão com doentes graves de covid-19. Se houver graves, se manda para o outro de novo. Mas os chefes ficam peitando, porque não querem receber, por estarem saturados de paciente. Não há respiradores para todo mundo.