Por Pedro Mauad
Desde que Jair Messias Bolsonaro assumiu a presidência, nunca esteve tão encurralado e vulnerável. Imaginar sua queda já não exige muito esforço. Não parece mais ser questão de se, mas quando e como. Entretanto, não podemos nos iludir, o fim de Bolsonaro será apenas o início de nossos problemas. Caso esse fim signifique, por exemplo, um governo interino comandado pelos militares, teremos de lidar com uma administração mais equilibrada e coesa, com políticas mais bem pensadas e postas em prática com maior eficiência, com capacidade de recuperar a legitimidade perdida por Bolsonaro sem precisar abrir mão da ideologia autoritária e obscurantista do bolsonarismo, até porque parte fundamental dessa ideologia vem dos porões da ditadura militar [1]. A queda de Bolsonaro também representaria um fortalecimento da candidatura de Sérgio Moro, que já é o principal possível adversário de Bolsonaro em 2022 [2]. Porém, gostaria, aqui, de me deter em um problema específico: o sucesso do bolsonarismo em acessar e seduzir a subjetividade, o núcleo da política contemporânea. Para tanto, terei como pano de fundo duas perspectivas indissociáveis: a crise do mundo capitalista e a impotência contemporânea da esquerda.
No dia 14 de fevereiro de 2014, Bolsonaro disse que o beijo gay da novela “Amor à vida” é um “marco na depravação da sociedade” [3]. Depois desse dia, o nome de Jair Bolsonaro nunca mais deixou de ser pesquisado no Google [4]. Em outubro do mesmo ano, Jair Messias Bolsonaro se elege como o mais votado deputado federal do Rio de Janeiro. Não custa lembrarmos que no ano anterior a tudo isso, em junho de 2013, ocorreram as maiores manifestações de rua no país desde o impeachment de Collor, em 1992. Para além da massificação que as jornadas de junho adquiriram no dia 17, o que mais me impressionou foi a pulverização de reivindicações. Naquela segunda-feira, cada brasileiro protestou contra aquilo de que não gostava e reivindicou aquilo que achava melhor, até quem não foi para a rua participou, porque, daquele dia em diante, a rua também passou a ser as timelines das redes sociais. Não seria exagero dizer que nesse dia o enigma da política nacional foi revelado, quem o decifrasse não seria devorado pela esfinge do descontentamento e da revolta. Junho de 2013 oficializou o casamento entre a internet e a política no Brasil, para usarmos uma expressão do político brasileiro que melhor conseguiu decifrar o enigma. Se Getúlio Vargas inventou a campanha política no rádio, Fernando Collor na TV, Jair Bolsonaro foi quem a consolidou, definitivamente, nas redes sociais. Com o rádio e depois, mais ainda, com a televisão, o discurso político ultrapassou a barreira espacial do espaço público e passou a acessar as casas dos milhões de cidadãos, mas com as redes sociais o acesso passou a ser às próprias subjetividades desses cidadãos. Na internet, o político se mistura ao subjetivo ao ponto de suspender a instância de mediação vigente no rádio e na TV. Tudo isso permite que o mecanismo libidinal que cria a identificação entre as pessoas e os agentes políticos atue de maneira muito mais intensa e eficiente, fazendo com que não só o político consiga uma maior capilaridade entre o eleitorado, mas também que as subjetividades, em suas particularidades, se infiltrem no campo político de maneira talvez inédita e prenhe de consequências ainda desconhecidas. É importante fazer uma ressalva, no entanto, pois não pretendo afirmar que Bolsonaro fez tudo e se tornou quem hoje ele é de forma consciente; há também aquilo que em Bolsonaro, ao se tornar o Mito, é muito mais do que ele mesmo; o indivíduo Jair Messias Bolsonaro, de certa forma, também é refém do ídolo que se tornou.
A espinha dorsal ideológica que levou Bolsonaro ao poder e o mantém lá até hoje pode ser dividida em três partes, como proposto por Gabriel Feltran [5]: “i) o militarismo das Forças Armadas e das polícias militares, que agem como seu braço armado e orientam as ações de seus jagunços; ii) o anti-intelectualismo evangélico, que há muito é majoritário nas periferias e mobiliza moralmente as massas em direção contrária à da racionalidade moderna, dos argumentos, e a orienta na direção do totalitarismo; iii) o empreendedorismo monetarista de parcelas do mundo popular que consideram que você é o que você tem, simplificando bastante a teoria dos capitais”. Nos jargões do próprio Bolsonaro, é o combate ao “comunismo”, as citações exaustivamente repetidas de passagens da Bíblia em sintonia com as cruzadas moralistas contra o “marxismo cultural”, e a diminuição do Estado, bem como o afrouxamento de leis trabalhistas, que estabelecem o vínculo entre o governo e uma grande parte da população brasileira. E não é porque Bolsonaro seja atualmente o representante de tal ideologia que ele seja o único capaz de defendê-la: ela já existia antes dele se tornar o Mito e continuará existindo mesmo depois que ele for desmistificado. No entanto, o que chama atenção nessa combinação ideológica é a capacidade que ela tem de dialogar com os problemas da sociedade capitalista, principalmente em períodos de crise. Ao mesmo tempo em que ela é parte da manutenção da crise capitalista, ela satisfaz, subjetivamente, os problemas gerados por essa crise da qual ela faz parte.
O sistema de reprodução do Capital impõe modos de sociabilidade que, por contraditórios que sejam, aos poucos rasgam o tecido social, corroendo os vínculos coletivos e impondo regimes de competitividade de forte apelo individualizante; as subjetividades contemporâneas são, com isso, atravessadas por uma hostilidade sistêmica que as explora ao mesmo tempo em que as constitui. No que tange ao progresso, porém, nos deparamos com novos mecanismos de comunicação, informação, criação de conteúdo, lazer, interação etc., que a digitalização da esfera social proporcionou. Nossas ações, deslocamentos, preferências, sentimentos e linguagem tornaram-se dados passíveis de ser analisados e utilizados para prever nossos comportamentos e influenciá-los. Com isso, as forças econômicas e políticas do mundo atual cada vez mais se servem desses mecanismos para antever tendências e anseios e, assim, manipular o desejo e o imaginário de grandes segmentos populacionais — no Brasil, Bolsonaro e seus filhos, sabemos bem, foram os que, até hoje, mais se aproveitaram disso.
O processo de decomposição do tecido social intensificou e foi intensificado pelas tecnologias de compartilhamento, que geraram novos mecanismos de concorrência e produção de valor. Não nos faltam exemplos de simulacros de vidas autênticas que são expostos aos montes nas redes sociais, e a nova seletividade do trabalho e do consumo que se baseia em avaliar quantitativamente e qualitativamente os perfis. Além disso, onde antes parecia ser o paraíso do multiculturalismo e da autoafirmação, revelou-se como o inferno das bolhas, terreno por excelência das “guerras culturais”. As subjetividades contemporâneas são paulatinamente atrofiadas por um ciclo vicioso de retroalimentação de uma visão unidimensional entre pares concordantes, substrato principal da lógica das fake news. Mecanismos de compensação psicológica e excitação, que são a base das dinâmicas de redes como Instragram e Facebook, hoje também dão eficácia para as máquinas de fake news. A árida realidade que vivemos nesse deserto brasileiro do real não permite a ninguém mais imaginar e propor alternativas concretas. E a esquerda segue impotente em criar soluções à altura dos atuais problemas paradigmáticos que vivemos. Curioso coincidir nossa atual incapacidade de orientação política nesse novo mundo precisamente quando temos esse mundo na palma de nossa mão.
Ao mesmo tempo, existe uma grande população periférica que foi e continua sendo espoliada pelo processo cego de auto-reprodução do Capital. Entre essa população, o número de evangélicos é cada vez maior, e como muito bem observado, mais uma vez, por Feltran, “no cotidiano das periferias, as mães dos filhos assassinados pelas guerras do mundo do crime tiveram suporte das igrejas evangélicas, não das políticas públicas. (…) Se a guerra pelo lucro dos mercados ilegais opunha polícia e ladrão nas favelas e quebradas, como tese e antítese, as igrejas evangélicas de práticas disciplinares mais estritas se tornavam a síntese redentora. Nelas, policiais corruptos e bandidos arrependidos, ameaçados ou reformados poderiam aceitar Jesus e, convertidos, esquecer o passado de guerras. As igrejas pentecostais se apresentaram como aptas a refundar uma vida degenerada e torná-la uma nova vida, ritualizada a cada novo testemunho na igreja”. Nem é preciso dizer o quanto Bolsonaro soube se aproveitar disso tudo. Há de se notar, no entanto, como essa população tem algo de não-contemporâneo, mas que, ao reivindicarem crenças e morais que para muitos são vistas como ultrapassadas, também revelam a expressão latente de seu pertencimento ao contemporâneo, uma reação ao modo como as atuais dinâmicas econômicas, políticas e tecnológicas reestruturam e geram novas formas de produção e de compartilhamento do sentido. São pessoas que permanecem vinculadas a valores superados, ou que ocupam lugares que são tornados obsoletos pela aparição de novos meios de produção e novas dinâmicas de reprodução do capital. Vivem em uma sociedade que já não se adequa a seus princípios e acepções de mundo e vida, ou que as exclui do processo de criação de valor: a grande massa de desempregados, por exemplo, ou outras tantas que acreditam que a família está ameaçada etc. Todas elas têm muitos motivos para se revoltarem e projetarem na figura de um “salvador” a solução de todos os problemas; as sociedades capitalistas do presente estão aniquilando muitas formas de vida ao mesmo tempo que criando novas, mas também passando por uma revolução tecnológica que está modificando substancialmente hábitos, costumes e os próprios limites do que se entende por vida. A precarização dessa massa de “supérfluos” é a norma do próprio processo auto-reprodutivo do Capital, pois é dela que se extrai mão de obra barata para se obter maiores lucros — o Capital precisa dessa massa, ela é o famoso proletariado do século XIX, dito precariado agora no século XXI. A diferença é que as novas dinâmicas do Capital excluem, cada vez mais, essa massa do centro que ocupava na produção, relegando-a a um lugar secundário e instável. Terceirização, flexibilidade e informalidade tornaram-se a solução, porque assim é possível manter sempre uma reserva de mão de obra barata, que se reveza em diferentes empregos informais, em bicos, em tudo de onde é possível ganhar algum dinheiro. Simultaneamente a isso, no entanto, ocorre uma compensação subjetiva, onde a possibilidade de aquisição da boa mercadoria faz valer a exploração no trabalho ruim. Na ordem do consumo e da circulação de mercadorias, esses trabalhadores sem classe e sem emprego, atomizados, participam, então, do desejo social através da relação subjetiva eu-mercado-mercadoria, que muitas vezes acaba por legitimar, para o próprio explorado, o sistema de exploração. O capitalismo se sustenta, assim, por um discurso duplo: o da absoluta impossibilidade do “não há alternativa” conciliado com o “tudo é possível”.
Parte da eficácia do governo Bolsonaro, mas que pode ser replicada por qualquer outro que queira ocupar o seu lugar, vem de compreender que a descrença na política e a obscura incerteza sobre o futuro servem de vantagem. Fazer da política um estranho teatro de encenações ambíguas e muitas vezes contraditórias, onde ninguém mais consegue discernir a mentira da verdade, tornou-se a regra. A percepção do mundo é cada vez mais minada por fatos inexistentes ou forjados, e com isso ninguém tem certeza do que de fato está acontecendo. Uma estratégia de poder que deixa a oposição cada vez mais confusa. Uma infindável mudança de forma, que é inexorável porque indefinível. Basta lembrarmos as vezes em que alegações polêmicas e contraditórias eram ditas pelos escolhidos de Bolsonaro, para que logo em seguida ele aparecesse para fazer declarações que desmentiam a polêmica e reforçavam sua imagem de líder dotado de autoridade. Bolsonaro e seu filhos podem estar fazendo escola. E a esquerda até hoje não conseguiu fazer nada que se contrapusesse de forma efetiva a essa nova dinâmica operacional, principalmente a esquerda institucional representada pelos partidos. Ao contrário, todas as nossas esperanças contra o atual governo derivam do aparato jurídico que até a eleição de Bolsonaro era visto com enorme desconfiança por causa da Operação Lava Jato. Ou seja, nos restou torcer para que os tribunais federais tenham a mesma vontade de condenar o presidente Bolsonaro que tiveram ao condenar o ex-presidente Lula, o que nos mantém no campo e gramática da direita, isto é, o punitivismo penal. Enquanto isso, entretanto, nos âmbitos mais radicalizados da esquerda, a oposição a esse projeto não consegue ultrapassar os limites da simples recusa, e com isso paga o preço de ser deixada de fora dos “futuros possíveis” das demandas populares. Algo que se assemelha ao que Hegel, na Fenomenologia do Espírito, chamou de “Bela Alma”. A bela alma, não custa lembrarmos, ao se orientar por uma certa pureza em seu agir, perde as condições de efetividade da ação, e com isso vive o impasse permanente de seus ideais serem sempre elevados demais para convir à realidade em que se encontra.
A principal questão que deveríamos nos colocar, portanto, enquanto esquerda, é como tornar visível o real motivo da precarização, da exploração, da violência e do próprio sistema político corrupto. Ou seja, como explicitar para esses sujeitos que a pauperização a que eles estão submetidos faz parte da própria lógica e dinâmica das sociedades capitalistas. Pois penso que, por mais que haja entre as camadas populares de baixa renda certo conservadorismo, existe também revolta e, acima de tudo, desespero, angústia e sofrimento. Há disposição para a mudança e preocupação com problemas fundamentais como saúde, alimentação, educação e segurança, que são constantemente afetados pela crise do capitalismo. Questões sempre muito caras ao discurso de esquerda, e do próprio marxismo, que foram abandonadas em prol de uma nova linguagem, mais sofisticada, sem dúvidas, mas também mais distante e impalpável para aqueles que vivem em primeira mão, na pele e no cotidiano difícil, o que significam as crises. Assim, arriscaria dizer que as condições necessárias para que o discurso fascista do governo Bolsonaro cative as massas são geradas no interior das crises do capitalismo, precisamente no momento em que uma transformação mais radical da sociedade é propícia a ser levada a cabo, como já nos alertava Walter Benjamin ainda no século XX. Seria oportuno refletir, desse modo, quais os sentidos ainda possíveis de ser vislumbrados no que foi o acontecimento político de Junho de 2013. Acontecimento extremamente complexo, sem dúvidas; momento de reformulação dos padrões de comportamento político dos brasileiros, certamente. Mas também uma expressão clara de insatisfação com o establishment político e seu modelo de conciliação neoliberal. Não basta derrubarmos Bolsonaro se nosso horizonte a oferecer forem fantasias de retorno a um passado que não existe mais, se é que um dia realmente tenha existido do modo como hoje é nostalgicamente lembrado; ou então continuarmos a nutrir um gozo oculto em que a marginalidade e pureza de nossos ideais confirmem nossa posição: a correta. Não é mais suficiente dizer o que não queremos, é preciso disseminar e construir aquilo que queremos, além de percebermos que a política contemporânea é produzida em diferentes esferas, sob pressão de forças diversas, e que a institucionalidade estatal é só uma delas. Mais ainda, talvez fosse o caso de percebermos que, muitas vezes, as pessoas já têm as respostas aos problemas, elas só não sabem as perguntas para as quais elas têm e são a resposta; e a nós, então, caberia propor questões para essas respostas.
Notas
[1] “Quanto maior o colapso do governo, maior a virulência da guerra cultural”, diz pesquisador da Uerj.
[2] Sergio Moro desponta como principal adversário de Bolsonaro em 2022.
[3] Bolsonaro diz que beijo gay de novela é um ‘marco na depravação da sociedade’.
[4] O momento em que Jair Bolsonaro virou um fenômeno eleitoral.
[5] Formas elementares da vida política: sobre o movimento totalitário no Brasil (2013- ).
O artigo foi ilustrado com obras de Liliana Porter (1941-).