Por Miguel Serras Pereira
1.
Talvez valha a pena explicar aqui que Le chasseur français, que serve de título a esta canção de Marcel Mouloudji, editada pela primeira vez em 1976, é o nome de uma revista de caça e pesca francesa, tendo por segunda especialidade — para alguns primeira, decerto — uma rubrica de correio sentimental ou pequenos anúncios amorosos, extremamente frequentada e abundante. Desafiando a prudência, tentei, de tanto que a canção insistia em não me sair da cabeça, transpor para português cantável as paroles de Marcel Mouloudji, transformando o nome da revista francesa no de uma inexistente, mas verosímil, sua congénere portuguesa, que se chamasse A Voz do Caçador. O resultado é o que se pode ler infra.
A Voz do Caçador
Versão livre da canção de Marcel Mouloudji e de (para a música) Jean Musy, Le chasseur français (1976)
Às vezes lembro-me ainda do tempo em que te amava
O caçador não sabe em que bosque está só
nem eu se ardia em febre ou esperava as tuas cartas
e a voz desconhecida que pus na tua voz
O meu nome de guerra foi lobo à tua espera
o teu rola que assombra o bosque com o seu choro
Era ingénuo era estúpido como foi conhecermo-nos
pelas páginas de anúncios d’A Voz do Caçador
A tua letra enorme ressumava loucura
com vírgulas e pontos tão sem eira nem beira
que para te responder eu plagiava a literatura
que se escreve a vermelho e dispensa o tinteiro
Inventei o teu corpo o teu rosto o teu riso
e a vida verdadeira ao longe onde moravas
do outro lado dos riscos e das trocas de sílabas
ou da fúria à deriva com que dizias amar-me
Mas que vias tu em mim que só fui afinal
um poeta de domingo sem ousar a aventura
de não contar o tempo ou de voar mais alto
fugindo às armadilhas que os dias nos urdem?
De manhã acordava e olhava para a porta
à procura no chão da bomba dos teus beijos
quando a não tinhas posto suicidava-me à hora
ou passava o dia todo a namorar o carteiro
Mas as paixões contidas são dédalos errantes
e romeu e julieta por uma vez razoáveis
morrem a lume brando nessas postas restantes
onde as cartas de amor já não salvam nem matam
Muitas vezes contudo ao acaso de um livro
uma súbita frase devolve a meio da página
ao fim da minha vida todo o tempo perdido
da tua luz de outrora na luz da paisagem
2.
Para completar esta evocação que, aderindo a uma sugestão do meu amigo João Bernardo, assim quis aqui deixar de Mouloudji — esse “écrivain de chansons”, como um dia lhe chamou J.-B. Pontalis — faço seguir à minha versão do seu Le Chasseur français um poema que escrevi em sua homenagem, e que retoma à minha maneira, e por minha conta e risco próprios, certas atmosferas, certos estados de humor e certos registos de Eros que me parecem característicos da sua arte.
Des beaux week-ends
(Tombeau de Marcel Mouloudji)
Nesses fins de semana morreríamos talvez
mil vezes por segundo à ideia somente
de esquecermos um dia a salamandra acesa
em cuja boca ardia o sem-fundo do tempo
De manhã à janela grandes frémitos plácidos
envolviam-nos aos dois no estranho nevoeiro
que bebíamos friorentos para espantar a ressaca
de nos termos bebido tanto a noite inteira
Horas fora partíamos de amor morto em mar morto
reiterando no sono o corpo a corpo extremo
do auge alagado que num trôpego torpor
nos extenuava as pernas até adormecermos
Outras vezes esperavas que eu sucumbisse enfim
para melhor me espraiares de rojo entre os joelhos
as nádegas e as ancas e a cintura e os rins
na embriaguez do triunfo sobre a arena desfeita
Na penumbra da sala ao sabor das marés
ardia no espelho escuro o brilho de uma lâmpada
à luz de cuja febre ficávamos de pé
arrostando onda a onda os espasmos da dança
Durante as horas mortas do meio da semana
na cama eu acedia a incendiar um bombeiro
que me assaltava as coxas com arroubos de insânia
como se me outorgasse a paixão dos teus seios
Mas quando regressavas morríamos outra vez
de mil vidas ardidas no brilho intermitente
da breve luz eterna na salamandra acesa
que aos teus pés irrompia do sem-fundo do tempo
SEMPRE VIVA
Biscoito fino.
Revérbero (proustiano?) de Juliette Gréco.
Saúde & Alegria