Por João Marques

Uma série de artigos tem sido publicada aqui, no Passa Palavra, buscando contribuir para a compreensão, em suas mais variadas formas, da problemática do racismo, envolvendo os perigos do racialismo [1], os identitarismos [2], o multiculturalismo, o movimento negro no Brasil, o pan-africanismo, o sistema de cotas, as diferenças entre o racialismo no Brasil e nos Estados Unidos, a produção teórica sobre relações raciais e a funcionalidade do racismo na exploração do trabalho pelo capital. No meu entender, algo que une os diversos textos — com todas as ressalvas que uma simplificação possa acarretar — pode ser resumido na compreensão de que, numa sociedade de reprodução do capital, baseada na dominação do capital sobre o trabalho, o racialismo tem contribuído para criar um espaço de tensão, conflito e acirramentos no seio da classe trabalhadora, por meio de identidades difusas — e portanto pouco precisas — que instrumentalizam cisões, que se mostram funcionais para essa estrutura societal.

Em razão disso, críticas severas e fundamentadas têm sido feitas contra os identitarismos. João Bernardo (aqui) observa que a hegemonia adquirida pelos identitarismos no plano sociológico e ideológico é a expressão directa do desaparecimento da classe trabalhadora nesse plano. No seu entender, esta hegemonia é tão completa que a esquerda — ou aquilo a que a desnaturação do vocabulário continua a chamar esquerda — apresenta os trabalhadores como uma outra identidade, que eventualmente se pode acoplar às demais. Assim, para o autor, o desaparecimento sociológico e ideológico dos trabalhadores enquanto classe e a sua inserção no xadrez das identidades representa a maior vitória do identitarismo.

Por outro lado, Nicolas Lorca (aqui) observa que o Movimento Negro — ou parte dele — retornou a um velho hábito, que tende a gerar mais polêmica e fragmentação do que a promover a construção do novo, de relações sociais em que o racismo e a segregação não se tornam aspectos marcantes. No seu entender, falar de critério racial, incorporando somente cor de pele e fenótipos é, mais uma vez, incorrer numa visão colorista da questão. Assim, haveria perigos inerentes a uma compreensão subjetiva de raça, com fortes inclinações ao colorismo e ao racismo científico.

Outra contribuição tem sido dada por Douglas Rodrigues Barros (aqui), ao apontar que, como procedimento político de organização estatal, a ideia de raça está confundida com a textura mesma do pensamento sobre si próprio dessa mesma organização estatal. Para o autor, Raça é um fetichismo, uma fantasia, em suma, uma abstração real […] que promove a exclusão social, que fomenta a economia de mercado, que executa uma organização territorial dos espaços e que dinamiza a relação democrático-liberal.

Esses textos têm o mérito de apresentar uma discussão crítica e aprofundada sobre a problemática do racismo no campo da “esquerda” ou da “luta anticapitalista”, afastando-se da perspectiva do liberalismo black money, que somente reforça a reprodução social do capital, bem como dos identitarismos picaretas, que prescrevem um culturalismo essencialista e voltado para identidades fixas e imutáveis no tempo.

Ilustrativamente, podemos apontar, de um lado, as contribuições de Marcus Garvey, marcadas por um nacionalismo de perfil fascista, por uma estrutura de base capitalista, pela defesa da segregação e da pureza racial e pela formação de uma elite negra; e, de outro, um antirracismo de mercado, de caráter liberal, focado numa representatividade vazia, numa estética bem comportada, na defesa de um individualismo e na preservação da ordem burguesa. Essas manifestações políticas, lidas em seus devidos contextos históricos, ainda que mobilizem grupos com maior ou menor intensidade, não devem carecer de uma crítica voraz, sob pena de validarmos um racialismo que contribui para a exploração do trabalho pelo capital.

Nesse sentido, como debato a temática racial — que está para além de “uma questão do negro” e muito centrada na branquitude como elemento referencial —, senti-me provocado a escrever essas mal traçadas linhas, que, por mero desleixo, fui “empurrando com a barriga” por um bom tempo. Tal lapso se deve, principalmente, a como se compreender adequadamente o racismo para além das próprias tramas do racialismo, que nos induz a reforçar, sistematicamente, os loci do dualismo branco/negro na estrutura social brasileira. Por outro lado, tal compreensão não deve perder de vista a materialidade dessas estruturas sociais racializadas e, principalmente, como propor soluções ou caminhos para a sua superação. Esbravejar contra o racismo sem entender a dinâmica social brasileira limita as potencialidades da crítica radical, colocando numa zona de conforto quem se beneficia, ainda que indiretamente, dessa mesma estrutura. Aqui cabe salientar que tal observação intenta não reforçar “lugares de fala” ou “identidades fixas”, mas sim atrair, para o campo antirracista, quem se propõe a lutar contra a exploração do trabalho pelo capital.

Não pretendo aqui trazer nenhuma novidade teórica ou elucubrações sem base material. Contudo, proponho-me aqui discutir como a problemática do racismo é permeada por vários (des)entendimentos, com a finalidade de buscar o enfrentamento ao racismo na sociedade brasileira. Acredito ser relevante destacar que a crítica radical ao racismo, em suas mais variadas expressões, apresenta-se como um exercício da própria luta política, que deve estar vinculada à concretude das relações sociais, não sendo, portanto, destituída de valores ou sem finalidade específica. Nessa linha, a crítica radical ao racismo impõe-se como uma crítica radical à sociedade de reprodução do capital.

Veja que, na sociedade de reprodução do capital, ocorre uma perpetuação de um sistema de exploração do trabalhadores pelos capitalistas, por meio da apropriação do tempo de trabalho no processos de produção, norteada pela mais-valia. Esse é o ponto de partida da presente estrutura societal. Por outro lado, acredito — e ciente de divergências neste aspecto — que o capitalismo é indissociável do racismo como fenômeno histórico, razão pela qual compreender a dinâmica da estrutura racializada fornece subsídios para uma crítica mais consistente sobre aquele.

Nessa linha, as minhas preocupações centram-se na constante inquietação sobre os limites e artimanhas do racialismo, contudo sem perder a compreensão de que, de um lado, na sociedade de reprodução do capital, se constitui como um elemento de cisão no seio da classe trabalhadora, e, de outro, causa efeitos concretos na repartição da riqueza social e no acesso diferenciado aos serviços públicos, intensificando a exploração do trabalho pelo capital. Veja que o racismo, numa sociedade de base escravocrata e de capitalismo dependente, é uma manifestação concreta e medidas de enfrentamento devem ser adotadas, para mitigar os seus efeitos. Assim, enquanto a raça for um marcador relevante na sociedade brasileira, não pode ser desconsiderada tão somente pensando-se nos perigos da racialização ou de um colorismo abstrato — que existem — e, muito menos, de uma igualdade universal também abstrata. Tal preocupação não impede, paralelamente, de afastarmos os identitarismos que reforçam perspectivas coloristas e racialistas.

Diante dessa tensão, Paul Gilroy [3] observa uma profunda transformação na maneira pela qual a ideia de raça é entendida e praticada, bem como a mudança nos mecanismos que governam como as diferenças raciais são vistas, como elas aparecem para nós e incitam identidades específicas, criando uma crise da raciologia. Por essa razão, o autor pontua que a renúncia deliberada da raça deve preservar as preciosas formas de solidariedade e comunidade que têm sido criadas em virtude de sua prolongada subordinação de acordo com as linhas raciais. Como contraponto, Antonio Sérgio Alfredo Guimarães [4] se indaga quando, no mundo social, poderemos dispensar o conceito de raça. No seu entender, somente quando estiverem conjugadas três condições: a) quando não houver identidades raciais; b) quando as desigualdades, as discriminações e as hierarquias sociais efetivamente não corresponderem a esses marcadores; e c) quando as identidades e discriminações forem prescindíveis em termos tecnológicos, sociais e políticos, para a afirmação social dos grupos oprimidos.

Não sem razão, Frantz Fanon, em Peles Negras, Máscaras Brancas, já observara que o Negro é um homem negro, que, devido a uma série de aberrações afetivas, se fixou no centro de um universo de onde é preciso tirá-lo, razão pela qual é necessário libertar o homem de cor de si mesmo. Em razão disso, o autor pondera que é imprescindível lutarmos para a destruição total desse universo mórbido, no qual o indivíduo deve assumir o universalismo inerente à condição humana.

Nesse sentido, como então se desprender dos limites e artimanhas do racialismo, enquanto retórica e prática sociais, sem perder de vista os efeitos concretos, materiais e simbólicos, que engendra na sociedade brasileira, em termos de repartição social da riqueza e acesso diferenciado aos serviços públicos? Em outras palavras, o abandono do racialismo nos permitiria constituir uma identidade de classe trabalhadora mais profícua na luta capital / trabalho ou, no caso brasileiro, é necessária também uma restruturação do debate de classe, considerando as especificidades das relações raciais entre nós?

Seria satisfatório afastar-se das tramas do racialismo brasileiro, enquanto marcadores socais atestam, sob as mais variadas formas, dinâmicas de exclusão material e simbólica fundadas em critérios raciais? Estariam as análises de base materialista somente destinadas a denunciar o racialismo ou teriam a contribuir com algo a mais?

Em suma, argumento com a existência de uma histórica fragilidade, de uma tensão mal resolvida e de um quadro de conflitos entre o debate racial e a discussão de classes no Brasil, que tem sido pouco criativa para a construção de uma articulação profícua para o enfrentamento do modo de reprodução social do capital. Tentativas bem sucedidas tiveram seu espaço nesta empreitada, de variadas perspectivas e com maior ou menor intensidade, a exemplo de Florestan Fernandes, Octávio Ianni, Clóvis Moura e, mais recentemente, Sílvio Almeida, razão pela qual é possível imaginar criativamente essa articulação.

* * *

No mundo atual, em que se entrelaçam inúmeras particularidades, tensões, conflitos e silenciamentos, derivados das complexidades e dos enredos da sociedade capitalista, em sua racionalidade neoliberal, se acirram problemáticas socioeconômicas e culturais que expõem iniquidades estruturais de um modelo societário que não abarca condições de reprodução da vida para todo o conjunto da população. Nesse sentido, o horizonte sociopolítico passou a ser gerido, cada vez mais, pelas certezas das políticas neoliberais, pautadas pela inevitabilidade da austeridade econômica, pela destituição das políticas de proteção social, pelo consenso hegemônico de medidas restritivas de atuação do Estado, pela financeirização da vida social e pelo império da necropolítica. Tal contexto parece nos conduzir inexoravelmente para uma distopia social delimitada pelo ethos do mercado, no qual a selvageria do capital se sobrepõe como expressão de um mecanismo social de regulação da vida.

Veja que racismo e capitalismo são frutos da modernidade, sendo, portanto, imprescindível pensá-los como intrinsicamente articulados no sentido de cumprirem papéis específicos nas tramas expressas pelas relações coloniais. Inexistiriam as condições básicas da acumulação primitiva de capital se não tivesse havido a empreitada colonial, a qual permitiu a expansão hegemônica do modo de reprodução do capital, sob as bases de um racialismo. Assim, pensar a modernidade é centrar-se na articulação dinâmica entre o capitalismo e o racismo, de modo a subsidiar a compreensão das especificidades das relações raciais num país de capitalismo dependente, como é o Brasil. Não por acaso Silvio Almeida [5] observa que a raça emerge como um conceito central para que a aparente contradição entre a universalidade da razão e o ciclo de morte e destruição do colonialismo e da escravidão possa operar simultaneamente como fundamento irremovível da sociedade contemporânea.

Nessa linha, é relevante pontuar que raça e racismo são conceitos relacionais, razão pela qual a existência do ser “negro” e do ser “branco” é dependente de circunstâncias históricas e políticas específicas, sendo, no primeiro caso, circunscrito ao mundo mórbido, e, no segundo, decorre de um pacto narcísico da branquitude. Em outras palavras, pode afirmar-se que o racismo é, notadamente, uma relação de poder determinada historicamente.

Em sociedades de base escravocrata e de capitalismo dependente, a reprodução da vida torna-se um sortilégio para impor o gerenciamento da privação da existência humana para determinados segmentos sociais, por meio do controle de sua história, dos seus corpos e de suas mentes, num continuum da violência colonial ressignificada. Nessa linha, a sociedade brasileira apresenta uma estrutura marcada pela trama do racismo com o capitalismo, que intensifica a superexploração do trabalho e promove marcadores sociais delineados por critérios raciais, o que complexifica as tensões e conflitos decorrentes. Assim, o enfrentamento de tais questões nos força a pensar criticamente e, portanto, de forma criativa, como construir entendimentos e perspectivas políticas que forneçam caminhos para a superação do racismo.

Para Florestan Fernandes [6], as estruturas econômicas, sociais e políticas da sociedade colonial brasileira não só moldaram a sociedade nacional subsequente, mas determinaram, a curto e longo prazo, as proporções e os alcances dos dinamismos econômicos do mercado mundial. No seu entender, a dominação burguesa se associava a procedimentos autocráticos, herdados do passado ou improvisados no presente, e era quase neutra para a formação e a difusão de procedimentos democráticos alternativos, que deveriam ser instituídos — na verdade, eles tinham existência legal ou formal, mas eram socialmente inoperantes.

Dessa forma, os hábitos, padrões e comportamentos institucionalizados pela ordem escravista conservaram-se na nova sociedade competitiva e as suas funções foram readaptadas a partir de determinados elementos ideológicos. Assim, tal ethos do antigo regime não apenas transplantou-se para a nova ordem, mas também definiu as oportunidades sociais dos negros e a sua inserção limitada na sociedade de classes. Não se estabeleceram, portanto, as possibilidades de uma integração do negro na sociedade de classes sem a permanência nociva de um aparato social próprio do mundo escravista, devidamente metamorfoseado para a nova realidade.

Nessa linha, a sociabilidade capitalista emerge sob determinadas condições históricas e adquire diferentes formas, dependendo da trajetória econômica e política do capitalismo e da luta dos trabalhadores em cada realidade social. Adalberto Cardoso [7] procura reconstruir o drama da sociabilidade capitalista na realidade brasileira com o objetivo de problematizar a permanência secular de uma ordem profundamente desigual, em muitos sentidos hostil à maioria da população. Aduz o autor que em torno da escravidão se construiu uma ética do trabalho degradado, uma imagem depreciativa do povo, uma indiferença moral das elites em relação à carência da maioria e uma hierarquia social de grande rigidez e vazada por grandes desigualdades. No seu entender, esse conjunto multidimensional de herança conformou a sociabilidade capitalista no país.

Nessa trilha, o referido autor aponta cinco desdobramentos relevantes para a configuração social que deu sentido às relações de classe tecidas nos inícios da constituição da ordem social competitiva no Brasil. Primeiro, sinaliza que a opção paulista pela imigração como solução para o “problema da mão de obra”, em detrimento do elemento nacional, é expressão patente da grande inércia da estrutura social em crise. Segundo, a degradação do trabalho manual pela escravidão. Terceiro, o aparato de financiamento, reprodução, supervisão e repressão do trabalho escravo, altamente descentralizado e com frouxos controles por parte do Império português e depois brasileiro, consolidou um padrão de violência estatal e privada que sobreviveu ao fim da escravidão, transferindo-se para diversas esferas da relação entre o Estado e o “mundo do trabalho”. Quarto, a visão do escravizado como potencial inimigo coletivo. Quinto, as expectativas dos trabalhadores acerca de seu padrão de vida foram interditas pela rígida hierarquia social.

Nesse sentido, o racismo é estruturante das relações sociais no Brasil, conformando a sociabilidade brasileira, o modo de atuação do aparato estatal, as relações entre as classes sociais, a repartição do poder e da riqueza social e a delimitação da estrutura jurídico-política. Por outro lado, o país é inserido em um capitalismo dependente, diante da divisão internacional do trabalho, o que acaba por intensificar a exploração dos trabalhadores e das trabalhadoras, notadamente negros e negras. Veja que os indicadores sociais (aqui e aqui) evidenciam desigualdades entre brancos e negros no país, no tocante aos rendimentos médios, remuneração por hora trabalhada, índices de informalidade, educação, violência, distribuição de renda e condições de moradia. Tais indicadores precisam ser enfrentados quando nos deparamos com os efeitos concretos do racialismo e as suas respectivas possibilidades de superação. Ficamos indiferentes, em virtude de perspectivas coloristas e racialistas, ou podemos ir além, dialogando criticamente acerca da dinâmica racial brasileira e enfrentando os desafios que se põem concretamente na exploração do trabalho pelo capital numa sociedade de capitalismo dependente?

Veja que a dinâmica racial brasileira precisa ser compreendida em toda a sua extensão para nos mostrar toda a miríade do racialismo. Aqui é muito comum setores da “esquerda” ou da “luta anticapitalista” reivindicarem a existência de uma cultura miscigenada, uma certa dificuldade de definir quem é negro ou não e a ausência de um conceito claro de negritude, como pode ser visto recentemente por aqui. Curioso é perceber que essas defesas se circunscrevem no espectro do racialismo, embora não se assumam como tais, no meu entender.

Nas palavras de Kabengele Munanga [8], a pluralidade nascida do processo colonial representava, na cabeça dessa elite, uma ameaça e um obstáculo no caminho da construção de uma nação que se pensava branca. Portanto, a posição dos mestiços é realçada como objetivo de exercer função desagregadora, comparativamente ao seu grupo de origem — africanos escravizados — e funcionar como uma dobradiça amortecedora das contradições da sociedade escravista. Tal posição era realçada não para permitir a inclusão efetiva daqueles no seio da referida sociedade, mas para criar mecanismos ilusórios de pretensa ascensão social que, em profundidade, não representava ameaça real ao quadro do status racial dos não-negros. Assim, o debate acerca da mestiçagem, dentro deste contexto histórico, estava intimamente ligado à questão da construção de uma nacionalidade ou à definição do brasileiro enquanto povo e do Brasil como nação. Por essa razão, a mestiçagem assume papel relevante como elemento ideológico em vista da inserção do negro na qualidade de liberto e posteriormente como cidadão na conjuntura da transição para a sociedade de classes.

Dessa forma, a miscigenação não democratizou, em momento algum, o campo das relações sociorraciais entre brancos e negros, servindo no seu aspecto cultural para criar mecanismos sociais e simbólicos de dominação como uma tendência de fuga da realidade. Nessa linha, afirma Clóvis Moura [9] que a realidade étnica não iguala pela miscigenação, mas, pelo contrário, diferencia, hierarquiza e inferioriza socialmente os não-brancos, que criam uma realidade simbólica onde se refugiam, tentando escapar da inferiorização. No seu entender, o que se tem é a identidade étnica substituída por mitos reificadores.

Veja que essa dinâmica racial brasileira também se manifesta na forma como se estruturou a sociedade do trabalho no Brasil e o seu modo de regulação social como experiência histórica. De modo exemplificativo, podemos apontar: a) a construção de uma narrativa que desconsidera, para o âmbito do Direito do Trabalho, quase que completamente, os ex-escravizados como força de trabalho no país, trabalhadores estes que eram a base do modo de produção escravista, sem os quais seria impensável a inserção do Brasil no processo de transição para a sociedade de classes; b) a não universalização dos direitos sociais trabalhistas, no sentido da construção duradoura e consistente de uma patamar civilizatório mínimo para o conjunto da classe trabalhadora no Brasil, que permitisse a quebra do padrão de inércia social como realidade objetiva, impondo uma deficiente — mas bem direcionada — proteção social, com marcadores racializados; c) a formação de um padrão de marginalidade e informalidade do mercado de trabalho brasileiro, flutuante de acordo com as vicissitudes da economia e tendente ao empobrecimento e miserabilidade da população em geral, que atinge negros, majoritariamente.

Nesse sentido, Silvio Almeida [10] observa que, se é pretensão do materialismo histórico dar conta da realidade concreta, tendo como ponto de partida relações sociais igualmente concretas, o racismo é um fenômeno que não pode ser desprezado, razão pela qual é necessário entender: a) a forma social do racismo ou, em outros termos, como o racismo se objetiva e se reproduz em relações relativamente determinadas pela sociabilidade capitalista; b) se o vínculo entre o processo de valorização do valor e as práticas racistas é estrutural ou simplesmente circunstancial.

Na compreensão do referido autor, para entender as classes em seu sentido material, portanto, é preciso, antes de tudo, dirigir o olhar para a situação real das minorias, sendo que tratar o racismo como reflexo mecânico da luta de classes, sem que mediações históricas sejam estabelecidas e sem a devida compreensão da lógica que governa a sociabilidade capitalista, seria recair no economicismo, que tanto prejudica o entendimento da sociedade pelos próprios marxistas.

Nesse sentido, o que se pretende explicitar é que o racismo, numa sociedade de capitalismo dependente e de base escravocrata, fornece ou intensifica o sentido, a lógica e tecnologia para a estruturação de padrões de desigualdades e violências, materiais e simbólicas.

Em razão disso, é necessário compreender o estado da arte no qual as tensões e conflitos decorrentes da articulação racismo/capitalismo nos é apresentado, nos demandando certa retirada da zona de conforto para apreendermos a multiplicidade de perspectivas teórico-políticas que se apresentam como instrumentos de luta e enfrentamento ao racismo. Nesse sentido, pensar sobre essa multiplicidade pode ser uma diretriz para uma construção coletiva que avance para além de respostas açodadas, irrefletidas e temerárias, que se fundamentam numa dinâmica acelerada do tempo, característica da era digital.

Nesse sentido, indaga-se: em que medida raça e classe se articulam dinamicamente na sociedade brasileira? Perspectivas antirracistas expressam todas as potencialidades de enfrentamento das complexidades sociais brasileiras? Em que medida o debate de classe pode oferecer respostas adequadas às problemáticas raciais?

São tais questões que necessitam ser efetivamente aprofundadas, se pretende-se uma perspectiva crítica anticapitalista e antirracista. Dessa forma, finalizo com a seguinte ponderação, que sintetiza as minhas preocupações com as mal traçadas linhas do presente texto: um posicionamento crítico demanda uma postura de mediação ativa, construindo junto a todos os lutadores a outra sociedade que queremos[…] Não entender que a reflexão crítica é, por si mesma, propositiva significa cair no dogmatismo, que consiste na escolha de ideias já feitas (aqui).

Notas

[1] Entende-se por racialismo uma perspectiva que postula a existência de “características hereditárias” nos seres humanos que permitem dividi-los em um pequeno número de raças cujos membros compartilham “certos traços e tendências” entre si que não compartilham com nenhum membro de outra raça. Tais traços e tendências formariam a “essência racial” dos grupos humanos; “essência racial” que vai além das características fenotípicas. (APPIAH, Kwame A. Racisms. In: Goldberg, D. T. (Org.), Anatomy of racism. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1990, p. 4-5).
[2] Sinteticamente, o identitarismo é uma ideia de que a identidade é algo estanque, imutável e que precisa permanecer higienizada, como exposta, por todos (aqui).
[3] GILROY, Paul. Entre campos: nações, cultura e o fascínio da raça. São Paulo: Annablume, 2007.
[4] GUIMARÃES, Antonio Sergio Alfredo. Classes, raças e democracia. São Paulo: Fundação de Apoio à Universidade de São Paulo; Ed. 34, 2006.
[5] ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.
[6] FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. 5 ed. São Paulo: Globo, 2006.
[7] CARDOSO, Adalberto. A construção da sociedade do trabalho no Brasil: uma investigação sobre a persistência secular das desigualdades. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010.
[8] MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2004, p. 54.
[9] MOURA, Clóvis. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Ática, 1988.
[10] ALMEIDA, Silvio Luiz. Estado, direito e análise materialista do racismo. In: Celso Naoto Kashiura Junior; Oswaldo Akamine Junior, Tarso de Melo. (Org.). Para a crítica do direito: reflexões sobre teorias e práticas jurídicas. 1. ed. São Paulo: Outras Expressões; Dobra universitário, 2015, p. 747-767.

O artigo foi ilustrado com obras de Melvin Edwards (1937 -).

4 COMENTÁRIOS

  1. Caro, excelente texto! Embora tenha percebido uma certa alfinetada em alguns momentos, acho que suas palavras colocam pontos bastante interessantes e que poderei me aprofundar.

    No entanto, você escreve uma coisa que me deixou em dúvida. Em certa altura você pontua que “Veja que o racismo, numa sociedade de base escravocrata e de capitalismo dependente, é uma manifestação concreta e medidas de enfrentamento devem ser adotadas, para mitigar os seus efeitos. Assim, enquanto a raça for um marcador relevante na sociedade brasileira, não pode ser desconsiderada tão somente pensando-se nos perigos da racialização ou de um colorismo abstrato — que existem — e, muito menos, de uma igualdade universal também abstrata. Tal preocupação não impede, paralelamente, de afastarmos os identitarismos que reforçam perspectivas coloristas e racialistas”. A minha dúvida é: de que modo podemos, enquanto anticapitalistas, defender essas medidas de enfrentamento sem cair na “picaretagem identitária”? Para além disso, se cotas raciais podem ser consideradas como maneiras de “mitigar os efeitos do racismo” e que existe um discurso identitário que entrelaça esse processo, como podemos entender a caça aos falsos cotistas?

  2. Caro Nicolas Lorca,

    não receba as linhas do meu texto como certa alfinetada, seja em que sentido for. Particularmente, os seus textos, embora discorde de certos aspectos, apresenta questões relevantes, razão pela qual serviram também como fundamento para a escrita do meu presente texto. Como você se debruçou mais detidamente sobre a temática, acabou que o meu texto é, também, uma diálogo com os seus. Veja que isso é verdadeiro, pois as suas observações aqui me colocam numa certa encruzilhada, o que, de certa forma, é o que pretendi com o que escrevi.

    Note que a sua primeira pergunta é exatamente o que devemos responder coletivamente, numa perspectiva anticapitalista. Todas as nossas ações perante o conflito capital – trabalho são confrontos exatamente anticapitalistas, ou existe uma certa margem na qual ganhos materiais à classe trabalhadora são necessários durante este enfrentamento? Em razão disso, sem uma resposta direta à sua pergunta, acredito sim que o enfrentamento das desigualdades materiais provocadas pelo racismo devem ser objeto da luta anticapitalista, nos limites de nossas possibilidades. E isso se articula com a sua segunda indagação.

    A caça aos falsos cotistas, que é uma aberração – no modo feito atualmente, que coloca a autodeclaração do IBGE em confronto com a heteroidentificação dos comitês raciais -, justifica desconstituir o sistema de cotas, por exemplo, ainda que saibamos que essa política é liberal? Como então enfrentar a disparidade de acesso ao ensino superior entre brancos e negros, que possui reflexos na renda e melhoria das condições de vida, como apontam todos os indicadores sociais? De outro modo, por que apoiamos a luta dos trabalhadores por melhorias salariais e por condições ambientais adequadas para o exercício de suas atividades, e as divulgamos então?

    Por fim, talvez pensar a identidade como algo interior às determinações materiais da vida social seja o fundamento para destituí-la como base para as políticas identitárias, fugindo das fantasmagorias das identidades fragmentadas. Em suma, o que queria apontar também é que o que transforma sujeitos em “negros” e “brancos” é uma estrutura político-econômica subjacente ao racismo e, sem enfrentá-las, a luta anticapitalista, numa sociedade como a brasileira, perde muito de suas possibilidades transformadoras.

    Um forte abraço,
    João Marques

  3. Já que foi mencionado acima o sistema de cotas e seu caráter capitalista liberal, convém conferir o pensamento de um dos principais órgãos do capitalismo liberal sobre o assunto. No artigo “The social experiment” (The Economist, 9-15 de maio de 2020, p. 20), The Economist argumenta que, para muitas pessoas nos Estados Unidos, a solução para alcançar uma maior equidade no ensino superior reduz-se às políticas de ações afirmativas, mas há alternativas menos controversas e funcionais, como o programa ASAP (Accelerated Study in Associated Programmes), que ajuda jovens de famílias pobres de Nova Iorque a obterem diplomas universitários. Segundo The Economist, um jovem pobre que termina apenas o ensino médio tem 50% de chances de continuar na pobreza na vida adulta, contra 17% entre aqueles que obtêm um diploma universitário. Os participantes do ASAP recebem um auxílio financeiro, incluindo dinheiro para livros e uma espécie de cartão de vale-transporte, e precisam reunir-se várias vezes ao mês com tutores acadêmicos e profissionais. E são monitorados para que uma eventual precarização em sua situação social seja identificada antes da evasão. O resultado tem sido uma taxa de conclusão de curso de 53%, quase o triplo da média nacional. Além disso, The Economist acrescenta que a ajuda financeira aos estudantes beneficia as universidades, aumentando sua receita. Outros programas semelhantes vêm sendo testados em Ohio e Chicago.

    Por outro lado, no artigo “Slow progress” (The Economist, 6-12 de junho de 2020, p. 32), abordando a questão da violência policial contra negros, The Economist afirma que episódios recentes, geradores de grande comoção social, ocorreram em locais com um forte histórico de segregação. Com a migração em massa de negros no início do século XX, do sul rural para o norte urbano, os brancos reagiram impondo bairros segregados, impedindo uma dispersão equitativa dos negros pelas cidades. Em 1973, o índice de segregação era de 93%, caindo muito pouco em 2010, para 70%. Apesar de a segregação ter sido abolida nas instituições de ensino, foi mantida a segregação no quesito habitação; e as disparidades entre brancos e negros, de qualquer modo, tanto no quesito educação quanto no quesito habitação, persistiram. Além do mais, a desigualdade social aumentou. A taxa de pobreza entre os negros caiu de 47% para 27% entre 1970 e 2014, mas a quantidade de americanos pobres morando em áreas de pobreza concentrada, lugares onde mais de 1/5 dos moradores estão abaixo da linha da pobreza, aumentou 57%, e as crianças negras têm 7 vezes mais chances de experimentar uma situação de pobreza extrema. Assim, os negros continuam tendo piores resultados em educação, saúde e correm maior risco de encarceramento. E o número de homens negros empregados, com idade acima de 20 anos, caiu de 80%, em 1972, para 67% antes da covid-19 e 63% depois. Soma-se a isso a instabilidade dos arranjos familiares: os nascimentos fora do casamento subiram de 40% para 70% entre os negros, e 70% dos relacionamentos terminam 5 anos depois de a criança nascer. Ou seja, a segregação, a concentração espacial da pobreza, o desemprego e a instabilidade dos arranjos familiares criam, todos esses fatores juntos, sérios problemas, que repercutem no encarceramento e na violência policial.

    Por fim, no artigo “The new ideology of race” (The Economist, 11-17 de junho de 2020, p. 7-8), são sugeridas políticas de enfrentamento ao racismo alternativas ao identitarismo, de um ponto de vista capitalista liberal: investir em políticas sociais baseadas na pobreza, não na cor de pele, como o programa ASAP, mencionado acima; combater a segregação nas cidades, alterando leis de zoneamento e concedendo vouchers para subsidiar aluguéis, na medida em que bairros racialmente integrados teriam escolas também integradas, resultando em mais dinheiro investido na educação de crianças negras e numa melhoria dos serviços públicos, além de uma redução da violência; bolsas de estudo e programas de aconselhamento; um benefício por filho para famílias pobres; e a ampliação do programa Earned Income Tax Credit.

    Ou seja, sinteticamente, The Economist defende o combate à segregação geográfica, ao lado de políticas de combate à pobreza (desde programas de auxílio financeiro para famílias pobres até programas de inserção de jovens pobres nas universidades, que vão além do mero sistema de cotas), como as verdadeiras soluções para a diminuição da violência contra negros e para o combate ao racismo e ao encarceramento. Entretanto, por outro lado, me parece que as pessoas têm um interesse muito grande em promover o sistema de cotas como a única solução possível nos marcos de uma política capitalista liberal, quando, na verdade, existem soluções tão ou mais efetivas, que, como afirma The Economist, ficam “fora do radar”. Isso porque, creio eu, o sistema de cotas é muito mais facilmente instrumentalizado pelos identitários na perseguição do seu projeto político de renovação das elites no capitalismo. É claro que as soluções propostas por The Economist partem de uma análise circunscrita aos Estados Unidos, mas os artigos mencionados acima ajudam a refletir sobre as possibilidades de combate ao racismo nos marcos do capitalismo liberal.

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